Nedko Solakov
(continuação....) Chegamos então a lugar central deste ensaio, enunciada que está a responsabilidade dos intelectuais na manutenção da liberdade de espírito, condição essencial para a prossecução das respostas à questão que foi central no iluminismo; a felicidade terrena e universal. Tudo isto parecerá épico e fora do lugar a quem estiver à procura de material de reflexão sobre as artes, mas, na realidade, é este e a traços largos, o pano de fundo onde se joga toda a teleologia da produção artística. Um forte fundamento contra esta visão corresponde à defesa de uma posição de isolamento. Há sem dúvida o direito essencial de quem não deseja este confronto com a experiência crua do mundo, uma experiência realizada ao corpo descarnado que forçosamente leva à mortificação, à revolta e talvez à melancolia lutuosa. Há razões para a apologia de toda essa maioria que constrói uma redoma de conforto, um retiro quotidiano fruto do da convicção do direito adquirido ou talvez do assumir da impotência, da desistência pelo cansaço. Há o direito à sobrevivência, ao emprego e à submissão às leis do senso comum. Por fim há também a possibilidade moral de um retiro monástico do mundo turbulento para o lugar afastado do estúdio recluso, da obra fechada em si mesma, aberta apenas a uma estreita faixa de incentivos.
O problema está no lugar preciso em que a tomada de consciência nos impele à luta. Benjamin colocou nas suas “teses” o lugar exacto dessa responsabilização, não pelo futuro, mas pelas esperanças do passado. A nossa responsabilidade sustenta-se em todo o sofrimento que se calou na extinção dos séculos que nos precederam. Somos os herdeiros em quem os despojados de 1789, 1840, 1871 e 1917 lançaram o ardor, a capacidade de despoletar esse segundo messiânico por onde passa esse Angelus Novus, o anjo da história (Benjamin).
O que se passa no lugar específico das Artes no que diz respeito á contestação? É esta a questão fulcral. A primeira instância a investigar passa por saber que condição terá a liberdade, equacionada com a qualidade do que se exprime. Localizando esta questão no nosso país teremos então de nos interrogar sobre a qualidade dessa mesma liberdade no mundo especifico da arte portuguesa. Para as respostas possíveis temos de voltar ao modelo de análise das relações de produção aplicada agora ao subsistema artístico. Chegamos rapidamente à conclusão de que o modelo é perfeitamente adaptável isto, claro está, porque o subsistema do mundo da arte não é mais do que mais um dos subsistemas do grande sistema sociedade de consumo. Existem produtores, empresas e “operários”, consumidores de vário tipo (público e público-coleccionador), entidades de distribuição, creditação e legitimação (critica especializada), banca (as grandes instituições e o museu) e por fim o alto patrocínio do estado. Como em todos os subsistemas este tem fortes ligações ao sistema central; é também ele um sistema servomotor (Flusser).
O mundo empresarial, a banca e o estado acabam por participar como os lugares que confirmam e reinvestem internacionalmente os valores. Dois campos de valores concorrem nem sempre na mesma direcção; o primeiro, imediata e localmente determinante é o do mercado e do investimento financeiro - aqui a coisa funciona muito como no mercado de acções; o “jogo” é livre, emocional e muito pouco ligado á efectiva qualidade ou significado profundo do que se transacciona. A segunda instância de valoração é lenta, de contornos menos manipuláveis por um ou outro indivíduo. Trata-se da valoração histórica e da construção de mitologias ou visões comuns do passado. É esta a mais importante no nosso ponto de vista por corresponder a uma sedimentação largamente intersubjectiva e trans-épocal, ou seja, por corresponder a uma valoração resultante de uma conflitualidade historicizada, fruto desse mundo relacional das instâncias produtivas.
Cabe fazer aqui um parêntesis e sublinhar que é justamente do modelo analítico marxista das relações de produção e de todas as suas actualizações que Bourriaud e Gillick retiram as premissas da chamada Estética Relacional, no momento em que aplicam este modelo à interacção do mundo da arte com o mundo da relações humanas. Daqui sucede que, sendo o mundo das relações humanas exactamente o mesmo mundo onde se joga a conflitualidade das relações de produção e não se podendo conceber uma esfera privada inteiramente dissociada das consequências dessas relações, todas as obras de arte por inerência são, entendendo-as como produto e mercadoria, objectos que possuem um papel próprio e específico nessa relacionalidade observada do lado da estética. O que existe sim, é um tipo de produção artística que pretende levar em linha de conta, como objecto de representação, o mundo das relações humanas na sua materialidade e modo de transmissão e difusão. Toda a arte é então um produto relacional e é o seu modo preciso de relação intersubjectiva que, sendo sujeito a uma avaliação moral, se torna passível de ser avaliado politicamente.
Marcel van Eeden
Da observação do estatuto dos vários papeis dos intervenientes; artistas, coleccionadores, críticos, galeristas, curadores e outros, percebemos que a liberdade crítica não se pode conceber, tal como noutros sectores da sociedade, apartada dos papéis sob os quais cada um dos intervenientes joga. Em Portugal uma figura trans-funcional como por exemplo a do já citado Liam Gillick, ou como o protagonista do sonho de William Morris em News from Nowhere (aplicado justamente como crítica social ao lugar fixo do operário na cadeia de produção), é ainda difícil de se manifestar em plenitude porque justamente, entraria em conflito directo com as prerrogativas de cada um dos campos funcionais neste sistema de relações. É neste sentido que lemos a observação de Alexandre Pomar relativa ao “anonimato” ao momento do lançamento deste blogue, no momento em que coloquialmente se refere ao mundo da arte português como um “quintal armadilhado”.
A possibilidade singular de romper as cadeias de especialização da fábrica (o significado real e cru da expressão “industria cultural) e transgredir por várias actividades entra facilmente em colisão com os territórios tradicionais de cada um dos campos profissionais intervenientes no sistema. Normalmente num sistema estratificado, as diferenças encontram-se perfeitamente delimitadas ao nível dos vários estratos produtivos. É importante referir aqui, que, visto o sub-sistema de relações de produção do mundo das artes ser quase absolutamente solidário com o sistema económico dominante, é a presença, ora do capital político ora ainda mais importante, do capital financeiro, a criar a força deste ou daquele interveniente, tanto ao nível horizontal (dentro de cada área profissional) ou vertical (na estruturação hierárquica dos vários estratos profissionais entre si). No primeiro caso verifica-se essa hierarquização, por exemplo, na influência e preponderância de galerias com capitais e apoios importantes como parte da sua base de sustento ou de determinados curadores que trabalham para fundações ou para o estado sob nomeação política. No caso dos artistas, o facto de estarem associados a estes projectos mais fortes é sempre um indício da possibilidade de promoção do trabalho e logo, da aquisição do imediato sucesso ou seguindo o raciocínio de Benjamin, da formação da aura. No segundo caso, o vertical, a estratificação é imediatamente reconhecível a partir do acto elementar no qual um artista vai mostrar o seu portfólio a um galerista. Na maior parte dos casos os galeristas não têm um discurso crítico suficiente informado para avaliar com profundidade o que lhes é mostrado; no entanto o artista sujeita-se constantemente a ser tratado por vezes de forma humilhante. Obviamente que os papéis se podem inverter. Um artista muito conhecido pode jogar com o concurso ao seu trabalho de várias galerias. Este factor, do qual falámos aqui, prestigio ou aura, é um valor essencial e imaterial e que é literalmente “adquirido” no processo mercantil do mundo da arte. Tudo aqui se assemelha muito ao modelo das trocas agonísticas inter-tribais; o potlacht como descrito por Mauss ou Malinowski. O valor aurático, psicologicamente sensível, adquirido pela dissipação do capital em arte confere ao coleccionador legitimidade “mágica”, mítica e indestrutível, para uma afirmação sua de liderança social. (Continua...)