terça-feira, 30 de junho de 2009

Pina Bausch (1940 - 2009)













Pina Bausch morreu hoje aos 68 anos.

terça-feira, 16 de junho de 2009

A Paixão de Molder segundo Pinocchio






















“(…) Depressa compreendi estar perante um trabalho que ganhava autonomia, que o meio começava a conformar um fim.” – É assim que Jorge Molder traça a génese desta ideia. A partir da observação dos “replicantes”, copias do próprio corpo (expostas por duas vezes em Espanha) e do seu processo de fabrico, compreendeu a força própria destas imagens. Com estas decidiu realizar o seu mais recente projecto, em exposição no espaço Chiado 8, ao qual chamou “Pinocchio”. Somos levados a percorrer com o olhar, uma série de impressões fotográficas das máscaras e dos moldes realizados para o fabrico destes “duplos” como lhes chama Bruno Marchand, o autor de um dos textos do catálogo. Como em outras séries fotográficas, Molder confronta-nos aqui de novo com a estranheza de um corpo reificado, como natureza morta. Este, “de novo”, reporta-se à própria natureza lutuosa do registo fotográfico. Nas anteriores series, como em Secret-Agent a mise-en-scéne e a artificialidade produzida no auto-retrato poderiam ter já esta leitura; por outro lado poder-se-ia também ler nesses trabalhos dos anos noventa, manifestações complexas de narcisismo, teatralidade, personificação de uma alteridade. Na presente série, paradoxalmente, ao representar-se uma máscara (suposto objecto de ocultação) sente-se a presença mais forte do auto-retrato de Molder na sua verdade possível. Tal acontece porque Jorge Molder acaba por realizar máscaras mortuárias de si próprio e o confronto com a morte provoca o desabar do jogo dos espelhos. A chave deste confronto é o próprio autor que nos indicia, no pequeno trecho do seu texto aqui citado. O convivio com o simulacro do seu rosto morto induziu-o à execução de uma vanitas peculiar, a uma seria conversação mal justicada na encenação retórica ou teatralização funerária comum a muita arte contemporânea. Molder já não teatraliza: negoceia com a morte, como o cavaleiro no filme de Bergman. O confronto joga-se na inquietante brilho dos olhos de vidro numa pele de gesso indistinto, no desalinho de cabelo de um moribundo, na fotografia escolhida para o outdoor.

Ao percorrer a exposição surgiu-me imediata na memória o retrato de um romano com os bustos dos seus antepassados e por associação toda a história dos preceitos fúnebres, desde as máscaras de Fayum, ex-votos de cera, o gesso retirado das faces dos grandes homens (Beethoven, Napoleão) após a morte, para que fossem eternizados em mármore. É a fotografia a preencher hoje essa memória dos que passam.

















É uma obra a um tempo tremendamente clássica e cutâneamente pessoal. Um gesto gigante.

São tremendos auto-retratos. E sente-se o homem, o florentino, o aristocrata, e o veneno da melancolia sorrir por detrás deles. Pinóquio.

sábado, 13 de junho de 2009

António Variações

(e agora algo completamente diferente)



Faz hoje, dia de Santo António, 25 anos que António Variações morreu.
Há 3 anos li a sua biografia (António Variações - entre Braga e Nova Iorque, Manuela Gonzaga, Âncora Editora, 2006) e fiquei tremendamente impressionada.
Depois ouvi tudo o que havia para ouvir, prestei atenção ás letras, e cheguei mesmo, nesse verão, a fazer um desvio nas minhas férias para no Minho profundo procurar a casa onde cresceu. Tive que lá ir, não conseguia compreender como é que alguém que nasceu naquele contexto social e cultural se tenha tornado nesta figura fora do tempo, fora de todos os tempos talvez.
A resposta é avassaladoramente simples: António Variações já nasceu artista. Não é um artista à força, não começou a cantar por capricho ou por vaidade, sempre cantou e sempre quis cantar. Toda a sua vida (desde que saiu sozinho aos 12 anos em direcção a Lisboa para trabalhar numa mercearia) foi guiada pela intuição e por uma enorme urgência em deixar uma obra feita, em fazer parte da História. Mas até chegar á música António passou vários anos a apreender o mundo; estudou, trabalhou, esteve no Ultramar, viajou, passou por Londres (onde visitou “do museu à discoteca”), viveu na Holanda, aprendeu a arte de cabeleireiro… sempre ávido de conhecimento, de renovação e de mudança.
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Num percurso de enorme solidão, cheio de tentativas, decepções e sacrifícios, António consegue em 1978 assinar um contrato com a editora Valentim de Carvalho, mas foram precisos 5 anos para que gravasse o 1º albúm. A verdade é que era difícil situá-lo, enquadrá-lo e como não sabia tocar nenhum instrumento nem lia pautas, dependia de uma nova geração de músicos que o pudessem acompanhar. António Variações, músico autodidacta, cantor desde sempre, tinha bem definido como é que a sua música deveria soar e descrevia essa sonoridade aos outros músicos através de figuras de estilo como: ”algo entre Nova Iorque e a Sé de Braga”, “algo que faça o chão tremer”, “algo que ponha toda a gente a cantar”.
As "partituras" de António eram umas cassetes gravadas em casa, apenas a sua voz e uma caixa de ritmos manhosa, quase nada mas tudo ao mesmo tempo.
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A palavra Variações segundo ele “é uma palavra extremamente elástica, portuguesa e que não me deixa limitado a uma área musical, é o nome adequado para fugir à rotina, é um nome que não me escraviza e não me deixa comprometido com rótulos, o que é excelente para mim.”
Em relação à sua figura excêntrica ele diz:
“ tem a ver com a minha liberdade. Visto-me assim diferente e colorido, porque me sinto bem. No entanto, nunca me preocupei com a moda. Preocupo-me sim, com a estética”.
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Amália terá sido, sem sombra de dúvida, a maior inspiração para António Variações mas também encontramos na sua eleição os Beatles, Roling Stones, Talking Heads, Roxy Music, David Bowie, OMD, New Order. Não interessa tentar rotular o que não é etiquetável (nem o quer ser), a música de António Variações é a sua identidade, as letras autobiográficas (tão particulares mas universais na compreensão da natureza humana), o colorido, o folclore, o rock, a fusão do passado e futuro e a energia são de quem sente a vida a latejar.
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António Variações era um homem comprometido apenas com a liberdade do seu espírito, viveu intensamente como só as pessoas sem medo vivem. Segundo relatos sobre a sua maneira de ser e estar encontramos adjectivos tão extremados como: provinciano, mais animal que racional, anarquista, pacifista, curioso, insatisfeito, tímido, satírico, perfeccionista, trabalhador, autoritário, doce, secreto, calmo, por vezes intratável, carinhoso, simples, extravagante, introvertido, um anjo mal disposto, uma ave rara.

E o que é que isto tem a ver com arte? Muita coisa.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Rouge de Veneza
















Inaugurada que está a Bienal de Veneza deste ano e após a polémica versada sobre a escolha para a representação Portuguesa, o resultado é visível para todos. É de altíssimo nível a qualidade da proposta de João Maria Gusmão e Pedro Paiva. Sente-se um forte sentimento de realização nas palavras dos que participaram. De todo o lado chovem elogios. Como admirador de longa data do trabalho de ambos não me admirei com o resultado mas fico feliz. Neste dia 10 de Junho, sinto-me feliz por uma vez ou outra a representação cultural deste país lá fora não envergonhar. Para uma situação que se partidarizou em prós e contras e simplesmente por achar o trabalho de ambos muito bom não me foi muito difícil tomar uma posição.

Ao longo do processo, particularmente após o momento em que se soube da escolha final da dupla para Veneza e de Natxo Checa, fui lendo na imprensa e noutros canais críticos as reticências expressas sobre a decisão. Fazendo um vol d’oiseau sobre as argumentações percebe-se claramente que incidem sobretudo no modo como se foi desenrolando o processo de decisão, mas não apenas. Algumas das críticas incidiram veladamente sobre a escolha em si. Foi esta a razão que me fez querer escrever sobre o assunto. O ponto central da minha argumentação é simples: Um dilema corrente da ética questiona se um fim justificará os meios. No caso presente, neste caso presente, o fim justificou plenamente os meios. Os meios serão neste caso o processo tal como foi dirigido pela Direcção Geral das Artes (DGA) e Jorge Barreto Xavier, vulgo – “O Estado” (!) e Natxo Checa. O fim é o fruto (a exposição) obtido com o trabalho de JMG e PP.

A crítica que se acirrou sobre a escolha teve três alvos à escolha. A DGA, Natxo Checa e os artistas propriamente ditos. Partiu também de um pressuposto que me parece excessivamente empolado. A Bienal de Veneza entendida como uma espécie de instância consagradora de carreira. Começo por aí; não me parece que a Bienal seja assim tão fundamental, ou melhor; não o deveria ser. É uma exposição importante, mais ou menos como uma espécie de festival da canção para a Arte. O grande e evidente problema parece ser mais, no meu ponto de óptica, a falta de promoção que o Estado português (e privados, porque não?) faz dos esforços criativos portugueses inter pares, ou seja; - lá fora. A Bienal de Veneza apenas, é muito pouco. E era por aqui que a crítica deveria por começar a fazer a guerra. Alguns fazem.

A questão por detrás do debate aceso é que na verdade, é mais importante a visibilidade nacional que a Bienal dá a um artista do que a visibilidade internacional. Para consumo interno é um marco, como um prémio independentemente da qualidade do que se exponha; internacionalmente os frutos dependem muito da força do trabalho em si. É aqui que a importância da Bienal se deve colocar e relativizar.

Portugal participa, desde há alguns anos, sempre, mas nem sempre bem e quase sempre com polémicas mais ou menos insignificantes. Esta, aliás, em face dos bons resultados visíveis, foi mais uma delas. A participação na Bienal de Veneza não pode ser entendida como um prémio de carreira mas sim como uma embaixada de promoção real das artes portuguesas (e que falta faz!). Que vão lá os realmente melhores ou trabalhos que provoquem e influam e não fetiches locais que não vão fazer nada mais do que nivelar consensos ou servir para consumo interno de sensibilidades de alguns coleccionadores e eminências pardas.

Outro lugar comum é o da associação da ideia de consenso democrático à de res-publica; uma das razões mais invocadas pelo lado do desacordo teve a ver com o modo como se chegou à escolha final. Questiona-se sobre a pertinência ou perigos de uma mão presente do estado na escolha dos artistas. É uma falsa questão. Uma escolha é sempre um acto autoral e autoritário, seja ela oriunda do Estado, leia-se agora Barreto Xavier, ou de qualquer outro agente privado delegado para o fazer. Mais uma vez. Importa antes e sempre avaliar a qualidade da escolha.

O que é que a democracia tem a ver com qualidade poética? E consenso? Nada disto me parece simples - Neste caso prefiro a ideia de uma autoridade que se exibe como tal e se responsabiliza por uma opção. Se a DGA tivesse nomeado um qualquer outro campeão de carreiras artísticas e este por sua vez escolhesse de novo um consagrado valor daqui, para que ninguém pudesse dizer mal e sair bem na fotografia, provavelmente tinha havido menos latim deitado à rua. O reverso da medalha, seria quase de certeza, uma exposição invisível no conjunto do concerto das nações. Era isto que no final era importante evitar e salvaguardar a melhor participação possível face aos olhos exteriores. Note-se; uma relativa viabilidade comercial lá fora nada tem a ver com a qualidade efectiva de um trabalho necessária aos objectivos de uma bienal como a de Veneza.

A polémica começou com a escolha de Pedro Costa. Sendo realizador, tal escolha motivou uma onda de protestos de ordem corporativa. Depois, quando esta opção deixou de ser viável a seis meses da abertura da Bienal, caiu-se em cima da DGA que deve ter reunido imediatamente o gabinete de crise. Deixava-se a questão num ar já com um aroma de irresponsabilidade; quem aceitaria ir à Bienal nestas condições? A decisão foi uma surpresa para todos. Talvez também por isso mesmo, pelo inédito, esta tenha criado tantas resistências.

O resultado conjunto das circunstâncias foi a acusação posterior dirigida a João Maria Gusmão e Pedro Paiva terem apressadamente aceite e assim “salvado a face” do governo para em pouco, muito pouco espaço de tempo montar um projecto. Em suma; foi feita uma acusação velada de oportunismo e isto apesar do artista “ser um bom artista”. Mas porque não salvar a face ao governo, Estado, DGA, Barreto Xavier ou seja lá quem for? Porque não aceitar um desafio e uma oportunidade importante de impulsão internacional de carreira? - Penso que Pedro Paiva e JMG fizeram muito bem em aceitar. Exactamente por serem bons e terem consciência disso. Além disso quem não aceitaria? Talvez e apenas, por escrúpulo profissional, quem nada tivesse preparado para o fazer. E não era de todo esse o caso.

Outra Polémica; - quem nomeou quem? Foi Natxo Checa que escolheu JMG e PP ou foi a dupla que escolheu Natxo Checa? Foram escolhidos os três ao mesmo tempo? Na verdade esta questão pouco me importa ou incomoda. A origem da decisão, evidentemente, esteve numa das melhores (segundo alguns, a melhor) exposições de 2008 em Portugal; a Abissologia na Cordoaria. Foi produzida pela ZDB e comissariada por Natxo Checa. Desde o início da década que os dois artistas e o director da Zé Dos Bois colaboram com frutos evidentes. A escolha deste trio para representar Portugal foi quase, logo ali, uma aposta ganha. Porém o director da ZDB foi um dos alvos preferenciais da crítica. Porquê? Nunca se percebeu bem. Tem mau feitio, é um facto. No entanto à frente da ZDB, tem quase 14 anos de experiência de produção e comissariado. Poder-se-á não gostar do estilo de coisas que a ZDB opera. Mas há um cunho autoral forte em quase tudo o que o Natxo dirigiu nesta associação. Foi mais do que justa por si só a sua nomeação como comissário para a Bienal. Quanto a separar as águas? Quem terá capacidade, autoridade intelectual, para o nível destas escolhas, dizer e decidir quem é capaz ou não, quem tem qualidade ou não? Mais vale que seja alguém do governo a quem os decretos conferem, por lei, esses poderes. Eu não sou de certeza. Limito-me a ter preferências e gostos. Inclinações veementes, no máximo.

O elo mais difícil de atacar pelos críticos do processo foi mesmo o dos artistas e do seu trabalho. Acusou-se João Maria Gusmão e Pedro Paiva de serem novos, de não terem maturidade suficiente e serem devedores de trabalhos de outros (e quem não é?). No fundo de constituírem ambos uma escolha desadequada para o cadafalso da consagração, como se na realidade alguém se consagrasse por decreto, como com uma medalhinha do 10 de Junho. Nada nem ninguém tem nada a ver com isso ou então somos todos que temos a ver com isso. É o trabalho de ambos que os vai consagrar, diga-se ou escreva-se o que se escrever. Tal é inevitável.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

O fim da Buchholz (III - conclusão)














Quando realizei um texto para a exposição “Anos 60 – Anos de Ruptura” (Ed. livros horizonte, Lisboa, 1994) e do qual retirei as citações que se seguirão, referi-me à vinda de Buchholz para Portugal como uma “fuga” do nacional-socialismo. Compreende-se melhor agora que tal fuga terá sido motivada pela impossibilidade de continuar o seu projecto de vida em Berlim devido à guerra. Para lá da polémica importa sublinhar que ao abrir a livraria em Lisboa, Buchholz terá tido sempre em mente a anexação de uma galeria de arte. Dividido em vários pólos internacionais e a residir em Bogotá (Colômbia), Buchholz confiou a Catarina Braun a gerência da livraria-galeria que no início se situou na Avenida da Liberdade. Este modelo de livraria-galeria dominou o panorama artístico português nos anos 60. Foram os exemplos notáveis para além da Buchholz, a Livraria Divulgação no Porto e em Lisboa (sob a direcção de Fernando Pernes), a Quadrante (sob a direcção artística de Artur Rosa), que não sobreviveram e por fim, a 111 (Manuel de Brito).

Em 1965 a livraria alemã reabre na sede definitiva onde hoje ainda se encontra, na rua Duque de Palmela, 4. Talvez devido às ligações sul-americanas (e expressionistas) de Karl Buchholz, a primeira exposição que aí se realiza é da escultora peruana Maria Nunez del Prado. A linha sul-americana de exposições prossegue nesse ano com o colombiano Botero entre nomes menos conhecidos. Talvez pela fraca receptividade, a direcção da galeria decide contactar para funcionar como director artístico, Rui Mário Gonçalves, critico emergente e um dos mais importantes de então, que aceita. A partir de finais de 1966 foi ele que de facto orientou a política expositiva da galeria e que a transformaria no projecto do género mais importante desse final de década. “O projecto centrava-se sobre a qualidade das obras apresentadas, sem estarem em jogo quaisquer interesses comerciais. Aliás essa era uma das condições propostas pelo novo director artístico, ao aceitar o cargo, condição essa que foi respeitada (…) A buchholz tornou-se nesses anos, num exemplo que até hoje permanece solitário, ao ser a única galeria a tornar possível perspectivas abertas e polémicas sobre a globalidade da história da arte moderna portuguesa.

A primeira exposição, uma espécie de “Lá Fora” chamou-se “6 Pintores de Paris” e justapunha trabalhos de René Bertholo, Lurdes Castro, Eduardo Luiz, Escada, Jorge Martins e Cargaleiro. A qualidade das obras era desigual, mas em 1966 pretendia-se mostrar “uma visão de conjunto de “exilados”, que apenas no exterior, em contacto com a realidade de uma grande metrópole cultural tinham conseguido desenvolver “um mais profundo reencontro com a sua individualidade autónoma”.(Pernes, Colóquio Artes 12/1966). Seguiu-se a primeira retrospectiva de Mário Cesariny “Vinte anos de surrealismo em Portugal” e de seguida “Novas Iconologias” onde se justapõem novas vias de figuração na pintura com os muito jovens e emergentes Álvaro Lapa, Areal (menos jovem), Palolo, Batarda, Calvet, Paula Rego, Noronha da Costa, Lurdes Castro entre outros. “esta última exposição, independentemente dos seus elos mais fracos, tem como grande originalidade ter sido organizada em função de uma ideia programática que pretendia colocar em confronto a abstracção e o neo-figurativismo”. Este neo-figurativismo era então a tradução nacional da figuração Pop, da qual Palolo, Lurdes Castro, Bertholo e Batarda eram epígonos.

Em 1967, a secção nacional da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte) reestruturou-se e a Buchholz, devido ao papel central de RMG nesse processo, transformou-se numa plataforma experimental, nomeadamente ao passar a ser a sede da exposição dos prestigiados prémios SOQUIL (mais ou menos os EDP de então) cujo júri era organizado pela secção nacional AICA. Para comemorar o 1º encontro de críticos de arte portugueses, RMG organiza uma exposição de um tipo inédito numa galeria; “Meio Século de Pintura Portuguesa (1900-1950)”. Com este projecto afirmou-se o propósito da Buchholz ser uma plataforma, não de promoção, mas de perspectivação polémica sobre arte contemporânea. Sem novos pintores mostrava-se a evolução de Amadeu ao abstraccionismo de Lanhas ou Nadir Afonso. A galeria publica também relatórios dos programas realizados com o fim didáctico de explanar a coerência do programa e das suas implicações.

Foi também na Buchholz onde Helena Almeida, Artur Rosa ou Cruzeiro Seixas realizaram as primeiras individuais. (1967). Costa Pinheiro apresentou aí a série dos “Reis”, o trabalho que mais o notabilizou. Areal expõe no seguimento do que fizera com a extraordinária “Dramática história de um Ovo”, objectos ironizando o ícone “Demoiselles” de Picasso. Em 1968, para além de uma individual de Calvet, é o Porto que está presente com Ângelo de Sousa, Jorge Pinheiro (e os seus “shaped canvases”) e José Rodrigues. Em Outubro Noronha da Costa realiza uma exposição, considerada uma das mais importantes da década, que, ao focar-se na reflexão sobre a natureza da imagem, constitui-se como uma das primeiras manifestações maduras de conceptualismo em Portugal.

Em 1969 uma nova retrospectiva, desta vez monográfica, dedicada a Dacosta. O surrealismo é então perspectivado como precursor das actuais formas figurativas. A seguir é a vez de Amadeu de Souza-Cardoso. Destacam-se desse ano as individuais dos novos artistas, Eduardo Nery e Álvaro Lapa. Em 1970, António Areal expõe em textos dactilografados montados sobre cartolinas negras, considerações sobre sociologia de arte – uma anti-exposição ou exposição manifesto. Conceptualismo rigoroso que acabou por criar escândalo. Em 1971 talvez um dos últimos grandes momentos da galeria é o surgir da revelação holística de Alberto Carneiro com “Uma Floresta para os Teus Sonhos” e o protótipo de uma arte processual, de contornos performativos e xamanistas a prefigurar já o que seria em 1972 a Documenta 5 de Szeemann.

Foi assim, na viragem da década que o programa experimental da Buchholz iniciou o seu declínio. Naturalmente, tal sucedeu com o surgir de um fenómeno que hoje nos parece a todos natural. O mercado de arte incipiente nos anos 60 irrompeu com força no optimismo gerado pela curta primavera marcelista. Com a descoberta do ouro surgem galerias maioritariamente organizadas como projectos comerciais que têm na exclusividade com artistas o garante de uma solidez de volume de negócios. Foi esta imposição de exclusividade, aliado à então total inexistência de uma ética comercial que gerasse algum consenso (ou seja; - uma primeira eclosão de liberalismo selvagem) a impedir finalmente a liberdade de circulação e acesso aos trabalhos e contribuições dos artistas mais promissores. A Buchholz foi o último e talvez o melhor exemplo de experimentalismo galerístico em Portugal, e esta sim, com um verdadeiro programa curatorial, discutível, como o são todos os programas que claramente assumem os seus contornos e objectivos.

Em 1975 já depois da Revolução, Rui Mário Gonçalves, sem dúvida com pouco espaço de manobra, abandona a galeria à data da sua extinção. No espaço que esta ocupava foram colocados os discos e as edições de música que acabaram por fazer as alegrias de muitos melómanos de Lisboa. O resto já se sabe. A conjuntura, neste ano de 2009, acabou por tornar insustentável o próprio modelo livraria - lugar de encontro de ideias, sentimentos e modos de os exprimir - insustentabilidade representada na extinção de um dos seus melhores exemplos.

Retrospectivamente a queda do projecto galerístico da Buchholz, não foi obviamente o fim das exposições independentes ou do experimentalismo em galerias em Portugal. O papel da Buchholz foi tomado apenas e nem mais nem menos que pela Gulbenkian, a qual, após a inauguração em 1969 do seu edifício-sede, foi preenchendo metodicamente a responsabilidade e necessidade de uma programação retrospectiva sobre a arte moderna portuguesa. Independente de grandes instituições porém, tal programa não se repetiu, a não ser muito limitadamente, com os acervos próprios, pouco representativos ou orientados para a problematização, das galerias comerciais mais importantes.

A programação problemática e polemizante está hoje largamente nas mãos de pequenas estruturas, sem grandes meios, mas que mesmo assim podem servir de veículos para sustentar discursos perspectivos e prospectivos originais ou mesmo urgentes. Mas faltam ainda programadores e programas com a extensão, coerência, acuidade, persistência e sobretudo liberdade, que caracterizaram noutros tempos, politicamente bem mais adversos, o projecto da livraria alemã.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

O Fim da Buchholz (II) Um passado obscuro.











Foi editada recentemente uma biografia de Karl Buchholz em alemão da autoria da filha, Gundula Buchholz. Esta biografia, naturalmente laudatória, surge paralelamente ao recente surgir de polémicas relacionadas com o destino das obras de arte confiscadas pelos Nazis num período que se estendeu sensivelmente entre o ano de 1935, o início da kulturkampf, até 1944. Vão-se avolumando processos contra instituições e museus (principalmente norte-americanos) por parte de famílias judaicas desapossadas, ou mesmo da parte de autoridades europeias que pretendem agora reaver este espólio que consideram roubado. A Galeria Buchholz não teve um papel menor neste processo. A descoberta progressiva mesmo que indicial, do montante e extensão da participação de Karl Bucholz neste processo fazem com que este artigo, que pretendia no início ser meramente uma memória sobre o papel cultural da Galeria-livraria em Lisboa escorregasse involuntariamente para um ensaio de literatura de espionagem.


A história da livraria Buchholz (ou das livrarias) flui no rio da história e isto não é um eufemismo. Em Berlim, nos anos 20, a par da maré da inflação e com a introdução do Reichmark, fundou o jovem Karl Buchholz a sua primeira livraria. Dez anos mais tarde, em 1934, após a subida de Hitler ao poder, realiza um sonho. Na Leipziger Straße, no coração da cidade, abre uma grande livraria com uma galeria de arte anexa, que em breve será uma das mais importantes da cidade. Porém, os artistas que expõe são aqueles que em breve o novo regime ostracizará sob o epíteto de “degenerados”. Max Beckmann, Karl Hofer, Schmidt-Rottluff, Käthe Kollwitz, Georg Kolbe, Gerhard Marcks e Renée Sintenis foram alguns dos nomes com os quais organizou exposições.


Numa época terrível para livreiros e galeristas de arte moderna, Buchholz soube ir mantendo uma difícil posição de compromisso; Se por um lado participava nas acções de propaganda do regime por outro, sendo perito na pintura alemã de vanguarda da época. No texto citado na parte 1, sobre esse passado, lê-se somente: "a relação de Buchholz com o regime era algo dúbia pois tanto compactuava em manobras de propaganda alemã como salvava da fogueira obras de Picasso e Braque, condenadas pela fúria nazi." O conteúdo desta frase diz muito pouco sobre a verdadeira natureza desta colaboração dando ênfase ao salvamento a destruição das obras. A realidade dos factos parece, no entanto, ser outra.


Buchholz realmente vendeu muitas das mais famosas e importantes obras de "Arte Degenerada" mas a sua acção não terá sido tanto a de um salvador à imagem de um Schindler a la Spielberg. Karl Bucholz foi, de facto, um dos raros marchands a ser indicado pelo regime para comerciar tais obras. Conseguiu ou melhor, permitiram-lhe desse modo, resgatar muitos trabalhos que eram retirados dos museus e aparentemente evitar a sua destruição. A vantagem para ele era dupla. As obras iam sendo vendidas fora da Alemanha e desse modo, Buchholz conseguiria para além de bons negócios, construir uma rede internacional de contactos que lhe seria útil mais tarde.


Segundo Stephanie Barron (Modern Art and Politics in Prewar Germany in (ed. S. Barron Degenerate Art: the fate of the Avant-Garde in Nazi Germany, LA county Museum of Art, 1991) a exposição Entartete Kunst (Arte Degenerada) de 1937, montada em Munique a par da exposição de "Grande Arte Alemã" na Haus der Deustche Kunst, mostrava apenas uma pequena parte do que foi nesses anos confiscado a colecções públicas e privadas (judeus). The comission (nomeada por Goebbels e que incluia um official das SS) revisited most of the museums later in the summer and selected additional works, so that a total of sixteen thousand paintings, sculptures, drawings, and prints by fourteen hundred artists were confiscated and shipped to Berlin to await final disposal.(…)


A comissão extravasou-se e incluiu na selecção, não apenas obras anteriores a 1910 como outras da autoria de estrangeiros-não judeus, como Gauguin, Braque ou Picasso. “(...) The works not included in Entartete Kunst and those from the second round of confiscations were sent to Berlin and stored in a warehouse on Köpenicker Strasse where they were inventoried. Those of “international value” that could be sold outside Germany for substantial sums were later weeded out and sent to another facility at Schloss Niederschönhauser.” Aqui foi nomeada uma segunda comissão que preparou um enorme leilão. E foi aqui que entrou Karl Bucholz ao lado de uma casa leiloeira suíça e de três outros marchands. “In 1937, (sic.)Heinrich Goebbels ordered that all works of painting and sculpture created after 1910, which did not conform to the Nazis esthetic standard, be collected from German museums in order to be shown in a big exhibition "Degenerate Art" in Munich. Later, in 1939, four art dealers and a Swiss auction house were commissioned to sell the works. (The four art dealers were Ferdinand Möller, Bernhard Böhmer, Karl Buchholz and Hildebrand Gurlitt). - German Law Journal No. 10 (1 October 2006)


Buchholz foi instrumental neste processo. Teria de possuir capacidades de distribuição que assegurassem o sucesso da operação. Em 1939 a Alemanha prepara-se para a guerra e as receitas das vendas dessa "Arte Degenerada" de alta cotação internacional seriam bem recebidas e Buchholz tinha uma relação previlegiada com Nova Iorque, na pessoa de Curt Valentin. Valentin, judeu, igualmente comerciante de Arte, tinha iniciado a sua carreira com Buchholz em Berlim. Em 1937 emigra na companhia de muitos artistas plásticos (incluindo Grosz) para os EUA. Em Nova Iorque funda uma nova galeria à qual chama Buchholz em honra de Karl, de quem chegara a ser sócio.


Curt Valentin, era uma personagem controversa, defendida em 1942 por Alfred Barr director do MOMA como um bom americano. Mr. Valentin is a refugee from the Nazis both because of Jewish extraction and because of his affiliation with free art movements. banned by Hitler. He came to this country in 1937, robbed by the Nazis of virtually all possessions and funds” (na imagem). No website do MOMA lê-se também - “Widely respected as one of the most astute dealers in modern art, Valentin organized influential exhibitions and attracted major artists to his Gallery. His enthusiasm for sculpture is obvious from the artists and exhibitions he selected. Valentin also published several distinguished, limited edition books in which the writings of poets and novelists were "illustrated" by a contemporary artist.”


No entanto hoje sabe-se que Valentin não tinha o currículo assim tão limpo como Barr quereria fazer crer. On November 14, 1936, the Nazi Reich Chamber of Fine Arts gave a secret written authorization to Curt Valentin, Alfred Flechtheim’s former assistant, to –… make use of your connections with the German art circle and thereby establish supplementary export opportunities, if [this is done] outside Germany. Once you are in a foreign country, you are free to purchase works by German artists in Germany and make use of them in America.” [translated from original]. (Exhibit 10). Na imagem (…)Following his appointment as a Nazi agent, Valentin established the Buchholz Gallery in New York. The gallery was associated with Galerie Buchholz in Berlin, perhaps the largest and best-known dealer in Nazi-confiscated artworks.” (texto do processo de acusação de Martin e Lilian Grosz (herdeiros de George Grosz) contra o MOMA)

Sabe-se então hoje que Valentin emigrara já como espião. Em 1944, porém, todo o recheio da sua galeria seria confiscado pelas autoridades americanas como propriedade do inimigo. By 1942, Barr certainly knew that his statement on Valentin’s behalf was completely false. Clearly, Barr was protecting MOMA’s source of Nazi-looted artwork. (…) On September 16, 1944, as published in the Federal Register, the U.S. Alien Property Custodian seized the artworks and assets of Buchholz Gallery in New York as property of Nazi Germany under the Trading with the Enemy Act.” (idem.) Valentin reabriria a galeria sob o seu próprio nome já no pós-guerra e viria a morrer com um ataque de coração em Italia em casa do escultor Marino Marini.

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Sobre a natureza da relação de Buchholz e Valentin, um relatório do Philadelphia Museum of Art sobre a proveniência do Proun 2 (1920) de El Lissitsky, refere que; “Four prominent German dealers were appointed to market the inventory of confiscated works, including Karl Buchholz. (…) this painting (a de Lissitsky) was assigned to Buchholz, owner of the Buchholz Gallery in Berlin. He was the mentor and pre-war partner of Curt Valentin (1902-1954) who named the New York gallery he opened in 1937 in Buchholz' honor. Between 1934 and 1937 Valentin ran his own gallery in Buchholz' dealership in Berlin (…). Valentin, a German citizen, left Germany in 1937 to go into exile. However, he maintained contact with Buchholz, frequently travelling to Germany, where he acquired works from the Schloss Niederschönhausen and the Lucerne 1939 auction. According to Nicholas (refere-se aqui o livro The Rape of Europa: The Fate of Europe's Treasures in the Third Reich and the Second World War de Lynn H. Nicholas) he "was able to obtain from this source [Germany] much of the inventory which established him as a major New York dealer. Hüneke, (refere-se aqui o livro de Andreas Hüneke - Die faschistische Aktion "Entartete Kunst" 1937 in Halle) underscoring the connection between Buchholz and Valentin, refers to the latter's New York gallery as "a ready-made platform from which Buchholz could sell to America”. Receipt from the Buchholz Gallery/Curt Valentin to Gallatin (o comprador do quadro de Lissitsky) dated August 24, 1939, for purchase of both the Lissitzky and Mondrian's "Composition with Blue" (stamped "Paid" August 31, 1939).


Neste relatório, verdadeira ponta de iceberg, percebe-se de uma só vez, não apenas a importância das obras que neste período dramático passaram pelas mãos de Buchholz e o networking internacional que criou mas também e ao mesmo tempo a dúbia posição que este ocupava então na vida cultural alemã. As suas acções trancenderam claramente a mera "propaganda".


Todas as histórias podem ser lidas por varios lados pelo facto simples que a verdade dos factos produz multiplos significados. Por isso, se por um lado o livreiro-marchand pode claramente ser acusado, no minimo de oportunismo, tal atitude permitiu a subsistência de um ilhéu de sanidade mental no meio do horror. A livaria Buchholz era, nas palavras de Werner Haftmann, “um oásis miraculoso no meio do abominável clima cultural da Berlim de então, na qual as pessoas se podiam refugiar um pouco do poder omnipresente e inflexível, através da liberdade criativa e a sensação de conforto. Os artistas e apreciadores de arte que viveram em Berlim durante esses terríveis anos têm hoje da galeria uma agradecida memória.” (Haftmann, para além de um especialista em arte moderna alemã, foi sob a direcção de Arnold Bode o responsável teórico das três primeiras Documentas).


Veio inevitavelmente a guerra e com a guerra, para além do fim da possibilidade de negócios, vieram os bombardeamentos. Em 1943 a livraria foi bombardeada e Buchholz saiu da Alemanha. De Bucareste, capital de um país aliado, passou para Lisboa. E aqui fundou uma nova livraria. (continua...)