sexta-feira, 31 de julho de 2009

Nozolino e um Algarve que anda leiloado em conjunto com a ética


«EXERCÍCIO DO DIREITO DE RESPOSTA AO ABRIGO DA LEI DE IMPRENSA N.º 2/99 DE 13 DE JANEIRO E RECTIFICAÇÃO DE 9/99, CAPÍTULO V, SECÇÃO I

Como autor da fotografia Lagos 1979 indevidamente publicada na capa e no editorial da vossa revista n.º 19, de Junho de 2009, venho pois exercer o meu direito de resposta.

I – Uma prova desta fotografia, exemplar único em platinotipia sobre papel de arroz japonês, pertence à colecção do C.A.V., Coimbra. Os direitos de reprodução da mesma são e serão sempre meus. No entanto, um ficheiro em alta definição da minha obra foi enviado à vossa redacção, a vosso pedido, para utilização da mesma como capa, não tendo eu sido contactado nem pelo C.A.V., nem pela Artes & Leilões, a fim de conceder ou não autorização para publicação.
Este abuso revela uma falta de ética inaceitável.

II – Fui confrontado com a capa da revista já impressa utilizando não só a minha fotografia na vertical (horizontal no original), reenquadrada e sobre a qual foram inscritas as chamadas de capa a cor-de-rosa!!!
Não vejo como um gráfico profissional possa ainda cometer devaneios deste tipo, nem vejo como pode escapar a um editor de uma revista de arte semelhante deturpação de uma imagem.
Reina em todo este processo a total irresponsabilidade, o maior desprezo pelos meus direitos de autor e pela minha obra. Quando confrontei o director da revista, foi-me dito com condescendência que deveria “estar contente com a publicação em capa da imagem” e que o mesmo facto “faria subir a minha cotação no mercado” (!?!). Tudo isto com a maior das ingenuidades, atributo da prepotência vigente.

III – No interior do dito n.º 19, na página 5, aparece de novo a fotografia, desta vez, a ilustrar o editorial. Vejo-me pois obrigado a contestar o uso da mesma à luz do conteúdo do texto que passo a citar: “Da primavera aos pares, de beijos húmidos, de arte no quarto, passamos ao verão colectivo, de abraços abrasadores nas feiras, de arte ao sol.” (…) “E, como os tempos quentes são tempos de eleição, tempos de arte na praia, fomos todos ao Algarve, ao novo Hotel Tivoli Victoria, em Vilamoura, para um Debate Papo sobre o turismo cultural, em antecipação do Art Algarve 2009…”
Oponho-me a que a minha fotografia ilustre tão leviana prosa.

IV – Finalmente, não posso deixar de me demarcar do evento cultural em que fui envolvido à minha revelia. O Art Algarve, subsidiado pelo Ministério da Economia via Turismo de Portugal, parece estar preocupado com tudo menos com arte. A Arte, tal como eu a vivo (parte dos três grandes A: Amor, Amizade, Arte) só o pode ser verdadeiramente não estando vinculada a qualquer poder. Não é aqui o caso, pois a promiscuidade entre instituições bancárias, política, gastronomia, museus, hotelaria e colecções privadas deixou de ser invisível. Mais, é motivo de orgulho e de progresso! Serve para dar de comer a comissários, directores de museus, de revistas, promotores imobiliários, chefes de cozinha, enólogos, jornalistas e toda uma fauna social faminta de protagonismo.
Demarco-me de tudo isto. Estou do outro lado da barricada. Não vou a banhos ao Algarve, não aceito almoços gratuitos, nem estou presente nas inaugurações sociais. A realidade que vejo e fotografo é infelizmente bem mais pobre. É para mim obsceno ouvir falar de mais um hotel de 5 estrelas, de mais um campo de golfe, de mais uma pousada num monumento nacional, num país onde a fome já não pode ser ignorada, tudo isto a bem da visão economicista da cultura.
A fotografia Lagos 1979 foi como a data indica tirada há 30 anos. Representa a mãe do meu filho na água de um Algarve infelizmente perdido. É grave que uma imagem do paraíso sirva para promover o inferno do betão povoado de turistas tatuados cuja única preocupação é bronzear, beber cerveja e bovinamente contemplar plasmas de televisão depois do pôr-do-sol.
Espero que estes abusos de utilização não se voltem a repetir, nem comigo, nem com os artistas que não ousam reclamar.
Paulo Nozolino

“Nada falta ao triunfo da civilização.
Nem o terror político nem a miséria afectiva.
Nem a esterilidade universal.
O deserto não pode crescer mais: está por todo o lado.
Mas pode aprofundar-se.”
(Appel, Edições Antipáticas, Abril 2008)
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domingo, 19 de julho de 2009

Malevitch: Utopia não é um conceito de Esquerda.

Por entre tamanha obsessão por utopias, ou mais precisamente pelo falhanço das mais variadas propostas utópicas, maioritariamente modernistas - como se a utopia se circunscrevesse a tal e não a toda a modernidade - talvez devesse-mos focar-nos mais na realidade crua da desilusão ou do retorno à ordem (uma e outra realidade não são o mesmo) do que propriamente na proposta utópica.

No Città di Como, onde não há muito que fazer caso não se avance a Norte onde os Alpes se dramatizam mais e a comparação é feita ao lago de Garda, deparei-me inesperadamente com a ausência de pinacotecas mas em contrapartida com uma tocante exposição dedicada à vanguarda russa de princípios do séc. XX, nomeadamente Chagall, Kandinsky e Malevitch.

Fechando a exposição encontravam-se cerca de vinte pinturas de Malevitch. Expostas em painéis de demasiada presença - relembrando-me estar em Itália - no interior de um salão oitocentista que em tempo albergou Garibaldi - relembrando-me estar em Itália - a escolha das pinturas estendia-se de princípios da década de 10 à ascensão de Stalin na transição da década de 20 para 30. Entre estas encontravam-se pinturas suprematistas justapostas com o figurativismo abstracto que Malevitch inicia após a revolução - ceifeiras e camponeses – e, fechando a exposição, o retorno ao realismo das pinturas tardias, como por exemplo o auto-retrato de 1933. Ver o percurso de Malevitch concentrado numa única sala a meia luz foi uma experiência tocante, devo confessar. Há muito que esperava ver pinturas abstracto-figurativas como "Mulheres no Campo" e "Cabeça de um Camponês" (ambas de 1928-30). A verdade é que reprodução alguma lhes faz justiça.
















Mas não foi somente a pintura em si mesma (as cores; a pincelada; as formas) que me marcou e me demorou na sala, mas a densidade do conjunto e a transparência melancólica da passagem da revolução suprematista à representação do movimento comunista presente no figurativismo abstracto. Ou seja, a adesão de Malevitch à necessidade de um conservadorismo, devolvido à representação do mundo e da vida, para a compreensão da revolução.

É precisamente o reconhecimento do paradoxo encontrado neste ponto de viragem que não cessa de me pesar: a necessidade do conservadorismo na representação ou de um regresso ao figurativo e ao reconhecível - nas formas e na leitura, em suma, na passagem do conhecimento e das propostas - para a ocorrência da revolução.

É certo que a mudança que se dá na pintura de Malevitch durante a década de 10 se encontra imbuída das condicionantes políticas; que o suprematismo e a concretude dos quadros negros/ vermelhos, não podia prosseguir em simultâneo com a revolução; que Malevitch teve, para prosseguir enquanto pintor e sob perigo de exclusão, de aderir ao movimento. Mas é precisamente a transformação na sua obra o que revela e torna tocante (humana, demasiado humana) a relação entre a Arte e a Política. Malevitch acompanha radicalmente a revolução, a queda de Lenin e a ascensão de Stalin e o consequente fim da terceira internacional. É aqui que a melancolia se abate sobre as pinturas de Malevitch; que a Cabeça do Camponês ganha introspecção, e a religiosidade, tão presente na tela, transborda.



















Escondidas a um canto e dirigindo-se para a porta de saída encontravam-se duas pinturas realistas de Malevitch datadas de 1933 - retratos sobre fundo negro. A um outro ponto da sala, fechando a exposição, também uma pintura inicial - "Banhistas" de 1908 - reconhecendo subtilmente a circularidade do percurso de Malevitch. Transposta de 1908 a 1933 (Malevitch morre em 35) as banhistas, colocadas naquele ponto da narrativa expositiva, não me puderam senão funcionar como a devolução da revolução modernista iniciada por Cézanne nas banhistas de 1906, contrastada agora pelo recuo ou esvanecer das figuras, na desilusão do necessário falhanço da vanguarda para o sucesso da ascensão de um ideal.



















Retomando, talvez nos faça falta, perante tanto entusiasmo por utopias e o seus falhanços, perante o reactivar de planos não realizados ou pelo seu imprevisto cessar prévio, entender a constante iminência do retorno à ordem, quer queiramos quer não, compreensível histórica e contextualmente. A utopia não é um conceito de Esquerda - nem de Direita - e a sua relação com o Presente, que se quer capaz de utopia, não é sinónimo de vanguarda ou progressismo.

Que propósito há em retomar utopias passadas; repescar visões? Podemos revê-las, deve-mos revê-las, mas na consideração da necessidade de utopias há que reconhecer em simultâneo o enraizar destas no Presente. Mais que reactivar utopias perdidas, parece-me fundamental compreender as lógicas de relação entre estas e o real, e que a utopia não é linearmente sinónimo de revolução.


Nota: Malevitch pode ser entendido como um dos percursores fundamentais do Conceptualismo avançado antes demais por Duchamp, e da inclusão quer da performatividade quer da linguagem na concepção e transmissão da Arte que baseia por inteiro a Arte Contemporânea. O nomear atributivo de Duchamp deve ser comparado com o discurso que Malevitch fez frente à pintura “Quadrado Preto” aquando da sua primeira apresentação pública em 1915, proclamando através da presença viva do seu corpo e voz aquela não ser uma representação mas a concretude do plano da pintura.














Malevitch morto em 1935; envolto em pinturas, o quadrado
preto é colocado precisamente no alinhamento da sua cabeça.



quarta-feira, 15 de julho de 2009

Duas pinturas no Rijksmuseum- Amsterdão



















Rembrandt Harmenszoon van Rijn
Jeremias lamentando a destruição de Jerusalém


A figura está pintada em perfeito detalhe. Os tecidos aveludados em contraste com os metais que adornam as suas vestes constroem, em conjunto com a diferença de temperatura entre o manto e a pele dos seus pés, uma figura na qual se o rosto se esbate. A cabeça de Jeremias no seu estado melancólico  dissolve-se no fundo do quadro. 
Do ponto de vista formal, uma zona de luz limpa incide no pano inferior esquerdo estabelecendo uma diagonal  com um segundo momento , uma luz turva que incide na cabeça de Jeremias. O triângulo de luz  que compõe este quadro é fechado com um ponto de luz proveniente de Jerusalém em chamas, no lado esquerdo do quadro.
A figura fixa no detalhe ocorre como "now" constante enquanto a imagem de Jerusalém em chamas, feitas em pinceladas expressionistas, transporta-nos para um tempo passado.
Conseguimos assim nesta pintura de Rembrandt dois tempos: um agora presente e um agora  que já passou. O triângulo compositivo entre zonas de luz é absolutamente discursivo : Uma figura em detalhe para que seja  entendido como  Jeremias. Ao mesmo tempo a figura humana é dissolvida no fundo pois Jeremias será também passível de irrepresentabilidade. E uma zona em que o expressionismo da pincelada devolve o símbolo à imagem, como algo perdido ou imemorial.
As zonas densas de escuridão que balanceiam o resto do quadro são  um espaço de projecção do nosso eu.


















Rembrandt Harmenszoon van Rijn
Senhora idosa lendo, provavelmente a profeta Ana.


De acordo com o novo testamento, a velha profeta Ana passou toda a sua vida servindo Deus no Templo. Rembrandt retrata-a lendo. 
Contra um fundo negro um detalhado manto e túnica envolvem um corpo frágil . O rosto dissolve-se.
O manto vermelho é recortado por uma linha branca de luz. O vermelho é carne, efervescência material e dor.
E essa luz branca é o anúncio. Uma luz que ilumina o livro que nos é negado, que não nos é dado a ler.
A focagem, a precisão técnica no detalhe, cria uma segunda linha oblíqua, perpendicular à luz virgem porque branca. Esta segunda luz, incide sobre a mão que marca o texto - que marca também o tempo de leitura. Voltamos à sua face que se esvai no fundo, com uma leve expressão de penitência sem a possibilidade de maior envolvimento, pela menos aturada definição, que nos faz antes projectar-nos a nós mesmos sobre o informe, desistindo de ouvir  aquilo que está diante de nós.