sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
Hipnotismo e acção
domingo, 22 de novembro de 2009
Anos 70
sábado, 14 de novembro de 2009
Vem aí a feira.
Nevertheless, I will talk about Matthew Brannon
Um texto simples, mas sem simplicidade (prezando o artista em causa).
Matthew Brannon é um segredo o qual recentemente descobri partilhar com um bom amigo. Uma paixão partilhada portanto, ao ponto deste (amigo com paixão em comum) ter um recorte de uma gravura do artista em causa – Matthew Brannon – cortada de um página da Frieze, emoldurada e exposta na sua própria sala. Infelizmente não a vi, a distância impede-me. Mas satisfaz-me o pensamento.
Farei uma elipse. Julgo que Brannon concordaria – com Brannon a mensagem, evocação que seja, demora-se sempre um pouco mais.
Brideshead Revisited (1945) é um livro fundamental de Evelyn Waugh, mais tarde filmado pela BBC (1981) para televisão com Jeremy Irons como actor principal – mais tarde ainda tornado filme ridiculamente adolescente, infantilização da História que percorre o nosso tempo (2008). Curta e sucintamente, B.R. narra a relação de Charles Ryder, middleclass, literato e ateu, com a família Marchmain, aristocrata e piamente católica, numa sucessão de anos (1923-1943) os quais, em última
instância, expõem o encerrar de uma aristocracia britânica oitocentista; a desilusão moderna e a impotência do pensamento intelectual; os restos de uma religiosidade vitoriana.
Para quem, como eu, sobreviveu à revisitação de Brideshead, versão BBC, mas por igual o próprio romance, e prossegue a vida agora com o ressoar da travessia atlântica por mar que marca o interstício da narrativa, um intermezzo teatral, a última exposição individual de Brannon em Londres não poderia ter por igual ressoado de outro modo: decadente, alucinogénica mesmo, e paródica, em suma, tragicómica.
A cena a que me refiro preenche dois episódios da série, ou seja, aproximadamente duas horas de vida – o tempo é aqui fundamental. As referidas duas horas de tempo fílmico paralelizam o tempo de viagem transatlântica dos personagens, Charles Ryder e Julia Flyte, os quais, reencontrando-se naquele navio após um hiato de vários anos, abandonam-se em deambulação, psicológica e física, pelas memórias de um e outro. O balanço da tempestade isola o casal na sua deambulação pelo navio, por infindáveis corredores, pela proa, numa hipnose temporal, sem tempo e pelo tempo, entre a desilusão da juventude, o decadentismo da época (entre guerras) e a ascensão subliminar de um erotismo compensatório – o amor homo-erótico e original de Ryder, Lord Sebastian Flyte, perdido no álcool, algures em Marrocos, fora da narrativa à vários capítulos. A cena continua a comover-me.
Matthew Brannon podia bem ir naquele navio, sem que Charles ou Julia por tal dessem. Talvez Brannon escrevesse aquela história, e não Waugh, como enviesadamente pareceu fazer na sua última exposição na The Approach, em Londres.
Brannon é um escritor, acima de tudo, embora seja artista, como é evidente. Diria mesmo que Brannon é uma espécie de Robbe-Grillet, em táctica expandida (ainda assim não tanta que em Robbe-Grillet). Gravuras de narrativa obscura com diálogos cruzados ou em fuga; instalações como palcos de teatro, vazios e por preencher; romances escritos pelo próprio, colocados a uma distância impossível de acesso. O trabalho de Brannon, ou melhor, o ambiente que instaura, é de um outro tempo, de uma outra temporalidade que hoje, uma temporalidade passada, reminiscente tanto de um modernismo início de século como de uma época de ouro: lifestyle 1950, América, sem dúvida. Os modos de socialização, a retórica, as relações intuídas, a pose, o cuidado, os trejeitos: etiquetas assim não nos pertencem já. Olhar, percorrer as narrativas que Brannon impõe, de página para página, no tempo e no espaço de caminhar a cada gravura, por entre placares, é viajar no tempo, reconhecermo-nos na distância, identificarmo-nos na estranheza.
Not Necessary, 2008
[Se algo se diluiu com o passar do tempo foi essa perfeitamente clara distinção entre modos de privacidade e de figura pública. Refiro-me aqui a modos de comunicação, e não à exposição e/ ou julgamento público dos nossos actos: uma diluição entre figura pública e figura privada. Refiro-me a uma linguagem específica, tanto verbal quanto física, de pose, na socialização. Posturas sociais. Em Inglaterra a genealogia prolonga-se ao Vitorianismo, mas não é necessário ir tão longe e remotamente. E por favor, não me falem de divisão de classes, sei bem como modos são política e estratificação.]
A Well Pissed on Tree, 2007
Mas é precisamente através dessa identificação na estranheza, entre páginas, na intuição da narrativa, que os ambientes instaurados por Brannon parecem retornar, devolver um tempo – os seus modos, estilos de vida e expectativas, imaginados em retrospectiva claro está – a outro mais presente: este. Os modos não nos pertencem já, mas copiamo-los, esvaziados de etiqueta. A devolução é ácida e plena de sofisticação; chic e decadente. Olhar gravuras de Brannon é olhar o espelho, reconhecermo-nos [perdoem, mas é plural] com um certo terror: cá vamos nós, intelectuais chic, de inauguração em inauguração.
Feita a elipse, quem diria, a paixão revelou-se crítica novamente.
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
Bruno Cidra
terça-feira, 10 de novembro de 2009
Pedro Barateiro - Teoria da fala
domingo, 11 de outubro de 2009
Arena, de João Salaviza
O filme “Arena”, de João Salaviza, ganhou a competição de curtas metragens do Festival de Cannes. Vou escrever este texto porque estive a vê-lo em ante-estreia no bairro da Flamenga, na Bela Vista, onde foi filmado. Vou escrevê-lo porque apesar das centenas de pessoas que lá estavam a vê-lo, não tenho bem a certeza dele ter sido visto. Também não tenho a certeza de que, sendo exibido antes da longa-metragem de Ang Lee, "Taking Woodstock", venha de qualquer modo a ser visto. A palavra Cannes esmaga muito facilmente quinze minutos de película e facilmente os transforma também em pouco para o que podemos esperar que tão luminosa atribuição. Ver, ver realmente, é também uma actividade que requer um certo esvaziamento de si e que uma ante-estreia num local justo mas tão ruidoso (nos diversos sentidos da palavra) ou um visionamento antes de uma longa-metragem não deixam ver com muita facilidade.
No entanto, a palavra Luz, essa sim, é uma óptima palavra para começar a falar de Arena. Em cada plano deste filme assoma uma luz aberta e veranil. É em um meio de sol. Este filme é um desenho curto e geométrico sobre violência, debaixo de sol. Ou é um desenho sobre geometrias e ciclos de poder, debaixo do sol. Mas esse desenho tem arredondados os ângulos da sua cuidada e pequena geometria, de maneira a que, não magoando nem mostrando tudo, se mostre um pouco melhor o coração da dor. É constituído de dois ou três círculos e de duas ou três caixas. Vou tentar explicar isto.
O filme é o protagonista a estar em prisão domiciliária, tatuador; a ser a acossado por um adolescente local acompanhado de amigos, por via de uma questão de dinheiros respeitante a uma tatuagem supostamente mal feita; a ser atacado e espancado por esses mesmo miúdos, que logram entrar-lhe em casa e roubar-lhe dinheiro que lá tem; a recuperar do ataque e a preparar-se para sair; a procurar pelo miúdo; a encontrar um dos amigos, que coagido, lhe diz onde está o miúdo; a encontrar o miúdo no topo de um edifício, enquanto este mexia num velho carro avariado; a tentar extorquir-lhe o dinheiro; não conseguindo, a fechá-lo dentro da mala desse carro; a vigiá-lo lá dentro por um bocado; a deitar-se nesse terraço debaixo do sol, não reparando na fuga do rapaz.
Isto que acabei de dizer, parecendo que diz tudo o que a curta é, não explica praticamente nada. Não diz, por exemplo, a beleza do tempo que o olhar que a câmara é demora para ser isto tudo. O cinema é a experiência voluntária de ser a visão de quem filmou, e eventualmente de ser-lhe uma espécie de sobre-consciência; de receber como balões vazios as escolhas do olhar que o filme é, e depois insuflá-los com a nossa própria vida e noções. Ora, a possibilidade que eu tive de Ver, se é que vi, este filme, teve muito que ver com este cuidado temporal do João e com a capacidade de “não fazer do espectador refém da manipulação de emoções”(citando de memória Abbas Kiarostami) e apenas apresentar as cenas pousadamente sobre o real. Assim, em meio de um “é só isto?” que muita gente sentiu no final da projecção, e do qual eu também semi-compartilhava, pôde começar a nascer em mim, logo no momento do escurecimento da tela, um vivíssimo pós-filme, feito de tudo aquilo que o realizador não quis impor mas que ficou pela pregnância de cada imagem e do modo de as verter umas nas outras. Começou a aparecer o desenho, o tal desenho debaixo do sol. Provavelmente o que me apareceu é tanto meu quanto dele, porque o realizador deixou espaço para isso. É já quase lugar comum dizer-se que importa dos filmes sobretudo aquela matéria de consciência e vida que eles emanam para lá do seu visionamento, não tanto o impacto imediato de gosto ou dissabor. Como felizmente não tenho nada contra lugares comuns (é bom estar num sítio com mais gente, sítio comum, desde que o sítio seja arejado e as pessoas lá realmente vivas e presentes), sento-me com prazer nessa cadeira que diz: só vi o filme depois dele acabar.
Vi então, e também porque a escolha dos planos era límpida e nada auto-referente e permitia então estas clarezas à posteriori, que havia um homem preso, e preso em casa. Vi que a sua casa era quase em si uma prisão, mesmo que ele eventualmente não estivesse com a pulseira electrónica. Vi isto no modo como ele e o vizinho eram músculos preparados para o combate. Combate em casa. Vi que a própria geometria do lugar configurava uma prisão, uma arena, claro. Sem que apareça tão literalmente no filme, o próprio local onde o vimos a estrear-se é o centro dessa arena: um longo pátio onde confluem as traseiras de vários prédios do bairro da Flamenga, prédios esses ligados por passagens aéreas para as pessoas. Certamente esta disposição contaminou o desenho que o filme é. A descabida e taveiresca arquitectura do local, desdobrando-se em pesados e circulares motivos decorativos das janelas e em egocêntricas afirmações de rectas dispostas com a sensibilidade de uma retro-escavadora, não faz mais do que confirmar a tensão constante que é a vida nesta casa colectiva.
Numa arena combate-se ao sol. E nesta combate-se perante o escrutínio constante dos vizinhos. É a comunidade dos homens que constitui as leis que regem o corpo social. E as leis erguem-se para que se saiba o que há a fazer, para que não se tenha de estar sempre a explicar e a perceber, para que não se tenha de estar sempre a comunicar e reconstruir, para que se possa ver tranquilamente a televisão sabendo que lá fora, debaixo do sol, para cada tentação há uma lei que a proíbe e uma tensão policiária que a dissuade. Mas mesmo preso o corpo pede sol, ser irremediavelmente bicho, e se tenta cumprir em rigor a punição de estar confinado a casa, vem o corpo social a casa provocá-lo, chamá-lo, convocá-lo para a sua arena natural, lá fora. Mesmo arriscando agravar-se-lhe a pena por sair do perímetro ditado, o protagonista persegue o Alemão, o puto que veio a casa roubar-lhe o guito. E as pessoas acorrem cá fora a ver o que persegue aquela personagem agitada (Mauro, cerca de 25 anos, representado por Carloto Cota). Pelo caminho, numa das Imagens do filme, o protagonista encontra sobre uma das pontes entre os edifícios um dos rapazes que foi lá casa com o alemão e, entre agressões e perguntas sobre o dinheiro e o paradeiro do Alemão, faz chantagem pendurando a bicicleta do rapaz por fora da varanda da ponte. Depois deixa-a cair. Essa ponte, em conjunto com uma segunda ponte por cima desta e com os prédios que as ladeiam, configura uma espécie de duplo vazio do ecrã, com a cidade ao longe e tranquilamente como fundo. Todo o filme é desta tensão em primeiro plano com a cidade ao fundo. Sob o sol.
Por indicação deste miúdo da ponte, Mauro sabe onde está o Alemão e, de novo filmado marcadamente em relação com a arquitectura, subindo um espiralado acesso para carros, vai encontrá-lo finalmente no terraço amplo de um prédio, possivelmente uma fábrica abandonada. Intimida-o para que lhe dê o dinheiro, ameaça atirá-lo lá para baixo e, nada conseguindo com a força dos braços e das palavras, vai trancá-lo na mala do carro avariado em que este mexia. Fica ali a vigiá-lo, naquela posição absurda. A inexistência de um farol de trás do carro permite que o rapaz estique a mão e consiga abrir a mala, mas o fracasso desta fuga por Mauro ainda o estar a vigiar sublinha ainda mais o absurdo de estar preso na mala de um carro avariado no topo de um edifício, debaixo do sol, com a cidade toda ao fundo. Esta situação de punição, fechamento e vigia é como um eco da outra que Mauro vivia lá em baixo, preso no apartamento. Mas, tal como Mauro, o rapaz acaba mesmo por escapar-se. Porque Mauro, a certo ponto da vigia, já demasiado cansado daquilo tudo, deita-se ao sol no terraço e como que adormece, nessa outra arena que é o terraço aberto. Também Mauro, neste ajuste de contas, saiu da prisão domiciliária. Aqui acaba o filme. Diz-nos o filme, ou está feito de maneira a que dizemos a nós mesmos: terá de voltar para casa, prender-se. Diz: presos pela cadeia social e do tempo, tal como a Ordem prendeu Mauro em casa e este prendeu o Alemão, mais novo, no porta-bagagens, também um dia o Alemão será provavelmente preso. Diz, não diz mas faz suspeitar: que Mauro a descansar no terraço aberto ao sol tem melhor e mais intimamente desejada recompensa do que o mero retorno da guita que lhe foi roubada.
Eis a ordem das caixas: corpo, carro, edifício. Entre as caixas circulam energias conforme leis muito antigas, debaixo do sol. Este conto só não é sem-esperança porque há qualquer coisa de compreendedor no olhar que é apresentado aqui: tem espaço entre as coisas, não acusa mas compreende, mostra e deixa em aberto. Deixar em aberto certas coisas é em si uma absolvição, porque dá possibilidade de escolha. Algures, ocorreu-me que este conto (vou chamar-lhe assim, porque tem uma tal concentração justa de palavras visuais e arquétipos que não desencaixa muito dessa categoria antiga) era sobre a mobilidade reduzida, sobre a impossibilidade de mover-se. Senão vejamos: lei-prisão, desejo de ter uma tatuagem com uma águia mas que parece apenas uma andorinha, arena-luta, bicicleta atirada da ponte, carro avariado, fechamento dentro de mala.
Ser ante-estreado no Bairro da Flamenga, onde foi em boa parte filmado, se por um lado demonstra a generosidade do realizador para com o sítio aonde nasceu o objecto de filme e a consideração que tem para com a aspereza de viver num bairro como aquele, por outro lado pode fazer crer que esse pendor social seja o cerne desta pequena obra. A nosso ver, não é. Encaixaria muito melhor na dimensão atemporal do conto, erguendo-se (e isso é contudo muito relevante) a partir de material deste local e tempo presente. De outro modo: na balança entre o poético e o social neste filme (fosse algum dia possível artificialmente separar os ossos da carne, para pesá-los), a balança pende para o poético. O cuidado extremo é posto neste segundo factor, não tanto no primeiro. A ver: a estrutura narrativa, visual e dramatúrgica da curta (como já referido) é quase impecável e, por outro lado, na realidade entroncada daquele lugar, custa facilmente a crer que algum dia dois miúdos muito mais novos entrassem na casa de um mais velho e mais forte para se vingarem. É uma questão de propriedades do território, de hierarquia local. “Arena” não é nunca o exercício de estética desatenta ao real dali mas, face à atenção tanta a certas propriedades do corpo social, a visível desatenção a outras diz duas coisas: que o pousar sobre o real leva tempo (e o João tem 25 anos), que é a poética a área inequivocamente conquistada por este filme.
Não é um filme espectacular, não é um filme fechado sobre si, não é um filme fácil e é um filme solar e atento. Muito atento às peculiaridades de ser um filme e deste ser sobre pessoas. Filme cuidado e pequeno. É um filme de um realizador a nascer. E não pretendia nem pretende ser mais do que isso, como aliás a atitude pessoal do realizador só confirma. Este texto nasce da vontade de isto seja visível, muito além e, felizmente, muito aquém do estrondo do prémio de Cannes.
Falta falar de uma última motivação para estas palavras, e que não deve ser vista como antítese da anterior, porque se Cannes pode fazer esperar demasiado deste filme é também uma notável aceitação e porta que se abre: notar, talvez desavisadamente mas com a intuição de estar a apontar uma verdade inequívoca e motivadora, esta consagração de “Arena” como sendo também parte de uma crescente e sensível dinâmica criativa neste país. Notar a felicidade pelo reconhecimento (não por ser internacional, mas por ser amplo) de alguém que, como muitos, “anda aí por Lisboa a fazer coisas”. Notar toda esta dinâmica, visível entre muitas outras coisas pelo facto de não se ter notícia de um fim semana desde Maio (exceptuando Agosto, claro) deste ano de 2009 em que em Lisboa hajam menos de dez eventos culturais de interesse, num momento chamado de especial “crise”. Se isto recorda talvez por um lado a especial ligação entre criação artística e parcimónia de meios, por outro lado é consequência do trabalho e entusiasmo de múltiplos criadores, professores, programadores e instituições mais ou menos formais ao longo dos últimos anos. Não pode isto resultar num elogio à maioria das entidades culturais oficiais, porquanto é por exemplo notória a estagnação de sectores como os da crítica artística de fundo e de vários outros sectores, mas num elogio a quem de facto no terreno tem constituído o tecido deste primeiro momento em que, sob múltiplos aspectos culturais, é mentira dizer que Lisboa é uma cidade parada.
sexta-feira, 31 de julho de 2009
Nozolino e um Algarve que anda leiloado em conjunto com a ética
Como autor da fotografia Lagos 1979 indevidamente publicada na capa e no editorial da vossa revista n.º 19, de Junho de 2009, venho pois exercer o meu direito de resposta.
I – Uma prova desta fotografia, exemplar único em platinotipia sobre papel de arroz japonês, pertence à colecção do C.A.V., Coimbra. Os direitos de reprodução da mesma são e serão sempre meus. No entanto, um ficheiro em alta definição da minha obra foi enviado à vossa redacção, a vosso pedido, para utilização da mesma como capa, não tendo eu sido contactado nem pelo C.A.V., nem pela Artes & Leilões, a fim de conceder ou não autorização para publicação.
Este abuso revela uma falta de ética inaceitável.
II – Fui confrontado com a capa da revista já impressa utilizando não só a minha fotografia na vertical (horizontal no original), reenquadrada e sobre a qual foram inscritas as chamadas de capa a cor-de-rosa!!!
Não vejo como um gráfico profissional possa ainda cometer devaneios deste tipo, nem vejo como pode escapar a um editor de uma revista de arte semelhante deturpação de uma imagem.
Reina em todo este processo a total irresponsabilidade, o maior desprezo pelos meus direitos de autor e pela minha obra. Quando confrontei o director da revista, foi-me dito com condescendência que deveria “estar contente com a publicação em capa da imagem” e que o mesmo facto “faria subir a minha cotação no mercado” (!?!). Tudo isto com a maior das ingenuidades, atributo da prepotência vigente.
III – No interior do dito n.º 19, na página 5, aparece de novo a fotografia, desta vez, a ilustrar o editorial. Vejo-me pois obrigado a contestar o uso da mesma à luz do conteúdo do texto que passo a citar: “Da primavera aos pares, de beijos húmidos, de arte no quarto, passamos ao verão colectivo, de abraços abrasadores nas feiras, de arte ao sol.” (…) “E, como os tempos quentes são tempos de eleição, tempos de arte na praia, fomos todos ao Algarve, ao novo Hotel Tivoli Victoria, em Vilamoura, para um Debate Papo sobre o turismo cultural, em antecipação do Art Algarve 2009…”
Oponho-me a que a minha fotografia ilustre tão leviana prosa.
IV – Finalmente, não posso deixar de me demarcar do evento cultural em que fui envolvido à minha revelia. O Art Algarve, subsidiado pelo Ministério da Economia via Turismo de Portugal, parece estar preocupado com tudo menos com arte. A Arte, tal como eu a vivo (parte dos três grandes A: Amor, Amizade, Arte) só o pode ser verdadeiramente não estando vinculada a qualquer poder. Não é aqui o caso, pois a promiscuidade entre instituições bancárias, política, gastronomia, museus, hotelaria e colecções privadas deixou de ser invisível. Mais, é motivo de orgulho e de progresso! Serve para dar de comer a comissários, directores de museus, de revistas, promotores imobiliários, chefes de cozinha, enólogos, jornalistas e toda uma fauna social faminta de protagonismo.
Demarco-me de tudo isto. Estou do outro lado da barricada. Não vou a banhos ao Algarve, não aceito almoços gratuitos, nem estou presente nas inaugurações sociais. A realidade que vejo e fotografo é infelizmente bem mais pobre. É para mim obsceno ouvir falar de mais um hotel de 5 estrelas, de mais um campo de golfe, de mais uma pousada num monumento nacional, num país onde a fome já não pode ser ignorada, tudo isto a bem da visão economicista da cultura.
A fotografia Lagos 1979 foi como a data indica tirada há 30 anos. Representa a mãe do meu filho na água de um Algarve infelizmente perdido. É grave que uma imagem do paraíso sirva para promover o inferno do betão povoado de turistas tatuados cuja única preocupação é bronzear, beber cerveja e bovinamente contemplar plasmas de televisão depois do pôr-do-sol.
Espero que estes abusos de utilização não se voltem a repetir, nem comigo, nem com os artistas que não ousam reclamar.
“Nada falta ao triunfo da civilização.
Nem o terror político nem a miséria afectiva.
Nem a esterilidade universal.
O deserto não pode crescer mais: está por todo o lado.
Mas pode aprofundar-se.”
(Appel, Edições Antipáticas, Abril 2008)»
domingo, 19 de julho de 2009
Malevitch: Utopia não é um conceito de Esquerda.
No Città di Como, onde não há muito que fazer caso não se avance a Norte onde os Alpes se dramatizam mais e a comparação é feita ao lago de Garda, deparei-me inesperadamente com a ausência de pinacotecas mas em contrapartida com uma tocante exposição dedicada à vanguarda russa de princípios do séc. XX, nomeadamente Chagall, Kandinsky e Malevitch.
Fechando a exposição encontravam-se cerca de vinte pinturas de Malevitch. Expostas em painéis de demasiada presença - relembrando-me estar em Itália - no interior de um salão oitocentista que em tempo albergou Garibaldi - relembrando-me estar em Itália - a escolha das pinturas estendia-se de princípios da década de 10 à ascensão de Stalin na transição da década de 20 para 30. Entre estas encontravam-se pinturas suprematistas justapostas com o figurativismo abstracto que Malevitch inicia após a revolução - ceifeiras e camponeses – e, fechando a exposição, o retorno ao realismo das pinturas tardias, como por exemplo o auto-retrato de 1933. Ver o percurso de Malevitch concentrado numa única sala a meia luz foi uma experiência tocante, devo confessar. Há muito que esperava ver pinturas abstracto-figurativas como "Mulheres no Campo" e "Cabeça de um Camponês" (ambas de 1928-30). A verdade é que reprodução alguma lhes faz justiça.
Mas não foi somente a pintura em si mesma (as cores; a pincelada; as formas) que me marcou e me demorou na sala, mas a densidade do conjunto e a transparência melancólica da passagem da revolução suprematista à representação do movimento comunista presente no figurativismo abstracto. Ou seja, a adesão de Malevitch à necessidade de um conservadorismo, devolvido à representação do mundo e da vida, para a compreensão da revolução.
É precisamente o reconhecimento do paradoxo encontrado neste ponto de viragem que não cessa de me pesar: a necessidade do conservadorismo na representação ou de um regresso ao figurativo e ao reconhecível - nas formas e na leitura, em suma, na passagem do conhecimento e das propostas - para a ocorrência da revolução.
É certo que a mudança que se dá na pintura de Malevitch durante a década de 10 se encontra imbuída das condicionantes políticas; que o suprematismo e a concretude dos quadros negros/ vermelhos, não podia prosseguir em simultâneo com a revolução; que Malevitch teve, para prosseguir enquanto pintor e sob perigo de exclusão, de aderir ao movimento. Mas é precisamente a transformação na sua obra o que revela e torna tocante (humana, demasiado humana) a relação entre a Arte e a Política. Malevitch acompanha radicalmente a revolução, a queda de Lenin e a ascensão de Stalin e o consequente fim da terceira internacional. É aqui que a melancolia se abate sobre as pinturas de Malevitch; que a Cabeça do Camponês ganha introspecção, e a religiosidade, tão presente na tela, transborda.
Escondidas a um canto e dirigindo-se para a porta de saída encontravam-se duas pinturas realistas de Malevitch datadas de 1933 - retratos sobre fundo negro. A um outro ponto da sala, fechando a exposição, também uma pintura inicial - "Banhistas" de 1908 - reconhecendo subtilmente a circularidade do percurso de Malevitch. Transposta de 1908 a 1933 (Malevitch morre em 35) as banhistas, colocadas naquele ponto da narrativa expositiva, não me puderam senão funcionar como a devolução da revolução modernista iniciada por Cézanne nas banhistas de 1906, contrastada agora pelo recuo ou esvanecer das figuras, na desilusão do necessário falhanço da vanguarda para o sucesso da ascensão de um ideal.
Retomando, talvez nos faça falta, perante tanto entusiasmo por utopias e o seus falhanços, perante o reactivar de planos não realizados ou pelo seu imprevisto cessar prévio, entender a constante iminência do retorno à ordem, quer queiramos quer não, compreensível histórica e contextualmente. A utopia não é um conceito de Esquerda - nem de Direita - e a sua relação com o Presente, que se quer capaz de utopia, não é sinónimo de vanguarda ou progressismo.
Que propósito há em retomar utopias passadas; repescar visões? Podemos revê-las, deve-mos revê-las, mas na consideração da necessidade de utopias há que reconhecer em simultâneo o enraizar destas no Presente. Mais que reactivar utopias perdidas, parece-me fundamental compreender as lógicas de relação entre estas e o real, e que a utopia não é linearmente sinónimo de revolução.
Nota: Malevitch pode ser entendido como um dos percursores fundamentais do Conceptualismo avançado antes demais por Duchamp, e da inclusão quer da performatividade quer da linguagem na concepção e transmissão da Arte que baseia por inteiro a Arte Contemporânea. O nomear atributivo de Duchamp deve ser comparado com o discurso que Malevitch fez frente à pintura “Quadrado Preto” aquando da sua primeira apresentação pública em 1915, proclamando através da presença viva do seu corpo e voz aquela não ser uma representação mas a concretude do plano da pintura.
Malevitch morto em 1935; envolto em pinturas, o quadrado
preto é colocado precisamente no alinhamento da sua cabeça.