Kerry James Marshall
Inventámos, eu e outros que tais, um blogue de crítica.
E como sucedeu tal coisa? Esses outros que tais e eu, no decorrer do ano passado, 2008 e durante a residência na ZDB tomámos o contacto com o pico de histerismo com a possibilidade fantástica de termos finalmente pós-colonialismo em Portugal! O ponto focal era desta vez colocado à volta dos trabalhos de um pequeno grupo de artistas emergentes angolanos que vivem actualmente em Lisboa e que vão realizando um trabalho com mérito próprio. O facto do meio ser diminuto faz com que novidades se tornem rapidamente um foco gerador de histeria. A identidade tem sido realmente um chavão demasiado utilizado na atribuição de valor e legitimidade na arte contemporânea. O excessivo uso deste critério produz situações algo cómicas. Lá fomos observando, com algum e triste divertimento a instituição desses critérios identitários para a definição da africanidade de uns e a não-africanidade de outros. No reduzidíssimo quintal beirão, entre a adega e o lagar, onde vivemos, lá se vai instituindo sem ser grandemente contestada, uma discursividade para uma poética passe-partout e sem aguilhão crítico para que melhor possa viver à sombra de grandes interesses. Alguns artistas com olho tornam-se rapidamente nos verdadeiros Têtes de Colonne deste ou daquele discurso ou veio discursivo que têm tido nas Documentas o lugar e identificação e vulgarização ao uso. As ideias adquirem-se como no supermercado, numa estante entre várias opções.
O problema não tem a ver com a teoria em si, do pós-colonialismo, tal como não tem a ver com os queer studies, tal como não teria a ver com o marxismo quando este foi abraçado superficialmente por tantos após a revolução. No caso da teoria pós-colonial, não se nega aqui a validade de um discurso que pretende avaliar as relações entre a Europa (neste caso Portugal) e o seu antigo espaço colonial. Irei mais longe; essa avaliação deve ser permanente. Mas o que dizer da rapidíssima transição, no nosso pequeno mundo da arte contemporânea, de um debate que deveria ser sério, fundado e contextualizado para rápido tráfico de nomes reificados á volta e em nome de um discurso que eles próprios não engendraram? O que dizer da súbita histeria sobre questões que em outros países estão em colóquio desde os anos 50 do século XX e passados mais de trinta anos sobre a descolonização? E com que seriedade, poderemos ainda nós querer normalizar apenas pela (aparente) consciência do passado, as nossas relações com esse mundo outro utilizando exactamente as mesmas estruturas de pensamento (capitalismo, mercado liberal, conceitos de “arte” e a tecnologia) que utilizámos durante todo o passado colonial? Como podemos pretender compreender e aceitar África quando ainda todos andamos a ler coisas sobre os EUA como “Império benigno” escritas pelos editores dos jornais nacionais e a desprezar esses islâmicos “terroristas” que vivem ao nosso lado pelo menos desde Carlos Magno? A histeria por África toma aqui em Portugal os contornos irritantemente desonestos dos modernos discursos dos peritos de Washington pelo Médio Oriente. Se eles teimam em não ter voz, representamo-los. A questão que nos surgiu foi o seguinte: - “E o que dizem os artistas azuis, vermelhos, pretos, amarelos e ás bolinhas sobre isso? Terão eles voz?”
E pensámos; poderemos ter nós voz? Poderemos ter voz para além do que se passa dentro dos parâmetros definidores de “Ceci c’est un object d'Art” sobre este e tantos outros objectos? De repente a coisa já não é apenas sobre a africanidade ou não da minha ou da tua cor de pele, mas sobre Lisboa, aqui, o Porto, a exposição tal, a opinião de sei-lá-de-quem no Público, o futuro da crise, a comunidade de Berlim e a de Malmö ou a influência de Obama na arte contemporânea. A dúvida é sincera. De nós, o último a ter uma escrita poderosa foi o Almada que não tinha medo de ninguém e nada.
Este Blogue pretende ir respondendo a esta pendência. Poderemos nós escrever? Criticar? Teremos nós livre trânsito na poética aventura de falar com a linguagem de todos os dias e para além do café, sobre poesia? O anonimato surgiu como uma possibilidade e sem grandes reflexões. Também decidimos alguns de nós não o ser, e sermos Gonçalos, Hugos e Gabrieis e ser ao mesmo tempo anónimos – ou heterónimos. (continua...)