Atravesso a sala.
De um lado, um retrato filmado; do outro, uma impressão de grande escala que regista as folhas sublinhadas de "As lágrimas amargas de Petra van Kant". As palavras sublinhadas não são para relembrar mas sim para rasurar, censurar. O não, não tem valor psicológico. As palavras sublinhadas tornam-se aqui e agora, as palavras mais fortes, activas na memória.
Do outro lado do muro, que separa a sala, está projectado um filme. Um plano fixo que se altera através das minímas variações de luminosidade, num tempo demorado.
Sentado sobre o banco sento-me (sinto-me) passivo perante o que vejo, tomado por uma experiência que se poderá aproximar do sublime, repondo a minha condição humana no mundo, denunciando que o tempo nos é superior.
O monte de sal transformado em rocha dura, atabafa um conjunto de estórias que nos revolvem a percepção de Castro Marim, através do seu enquadramento social e histórico.
Oiço vozes. Algumas conheço, outras quero conhecer. As vozes de levante trazem o calor de um tempo perdido que gostaríamos de poder viver, ou de ter sabido antes, tornando-se eróticas.
O sentido daquela montanha, que continuo a olhar e que se refaz lentamente, transforma-se. Penso em Hosukai e nas sucessivas repetições do monte Fuji e penso na cópia que no Japão possibilita ou provoca a destruição do original.
O tempo parou. Já não tenho de ir-me embora. O mundo lá fora já não consegue pôr-me a correr para lado nenhum. Estou a viver muito tempo dentro do tempo, apenas interrompido pela visão lateral do outro filme - que primeiro apelidei de retrato filmado - que se torna ainda mais erótico pela visão segura porque enviesada, que me coloca numa situação voyeurista.
Passei algum tempo entre estes dois vídeos até que o monte de sal cedeu a luz e o céu escuro.
Saí para tomar de frente o primeiro vídeo.
Existe uma liberdade redemptória neste filme que o aproxima da poesia visual e do erotismo puro. As figuras femininas moldam o topografia das salinas em dicotomia suave - duro, quente - mais quente ou quente diferente desta feita carne.
Existe algo neste filme que nos agarra psicológicamente, colando-nos ao "quadro". Primeiro, pensei numa memória curta freudiana. De forma livre, associo electivamente, as mãos sujas de negro que tocam a parte interior das pernas com o trabalho de Ana Mendieta; Noutros momentos surge-me o corpo estendido de "Etant donnés" de Duchamp e até o "Deserto vermelho" de Antonioni. Porventura, serão muitas mais as imagens que jazem debaixo deste filme.
Num segundo momento, julgo que o filme está mais próximo de arquétipos universais jungianos. O conjunto de imagens que nos pregam ao filme são imagens que já existiam antes de começarmos a tratar de arte. Estes arquétipos jungianos libertam-nos da auto-reflexividade do mundo da arte e tornam-se universais, criando relação entre um novo que nasce dentro de nós e o mundo, agarrando-nos ao mundo com mais força, devolvendo a tensão entre o humano e o mundo.
A luz de Castro Marim que desce do céu e se espelha na paisagem é esmagada pela luz que brota desses montes de sal, mantendo a luz pairante no ar. Esta luz que cega, é a luz da hipérbole, da intensificação da experiência, longe das leis, pulsional. É a mesma luz que cegou por breves momentos Monsieur Mersault em "O estrangeiro" de Alberto Camus, fazendo-o disparar aquela arma.
No filme da Filipa César dois corpos de luz média - cinzento médio e negro sombra, desenvolvem-se entre essa luz intensa que cega. Os corpos femininos em "Insert" iniciam uma relação interior: entre elas e dentro de nós; E exterior : um corpo leve e desenvolto serpenteia pela paisagem. Que se toca, que se tocam. Olham, olham também para nós, como a Virgem em "La tempesta" de Giorgione, colocando-nos dentro do quadro.
Este filme da Filipa, consegue colocar-nos lá dentro, experienciando o tempo da obra, que é o tempo cosmológico que existe em Castro Marim, mas também dentro de cada um de nós.
há um momento nesse primeiro filme, em que uma das mulheres dá uma mão cheia de sal a provar à segunda, que se aproxima para tocar com a lingua... a partir desta cena, o filme, de facto carregado de erotismo, tornou-se mais conscientemente assim. o sabor a sal que invade a boca traz consigo significados concretos, comuns, físicos. é revigorante essa ligação ao real. muita arte requisita demasiada inteligência e deixa o corpo,, censurado
ResponderEliminarA. Cancela, Gosto muito da perspectiva em que o filme se torna mais concreto. E acho mesmo poético a forma como nos dá o exemplo. Quero acreditar nesse chão comum, a partir do qual qualquer pessoas pode usufruir de uma obra - quero no entanto ressalvar que não acho que devemos ser paternalistas e baixar nível intelectual. A arte é feita em função do autor, de uma coisa interior que deseja tornar-se exterior, senão passamos a trabalhar em função das expectativas do público. A arte requisita acima de tudo, um espirito e corpo livres que a possam receber. Aquilo que normalmente se confunde com inteligência é neste período em que vivemos, não muito mais do que informação de tipo diferente. A inteligência em arte é também uma inteligência do corpo, inteligência essa que é suprimida cultural e politicamente, para dar lugar à informação, manipulável, e que que pode ter maior ou menor resultado em função da curiosidade que esta possa despertar em relação a uma agenda cultural social e até política.
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