26 de Abril de 1978
Publicado na "Opção"
A «nova» fotografia
Não há ainda apelativos absolutamente correctos para o novo. O novo surpreende a um ponto zero, a sua aparição é anterior ao conhecimento, anterior ao compromisso. É sobre o novo que eventualmente qualquer pessoa (desde que possua os instrumentos necessários e respectivo "modo de emprego") pode exercer a crítica; na prática, que a poderiam exercê-la os especialistas - se porventura essa especialização não lhes tivesse toldado a inocência... (a especialização é um mal transitório, necessário numa cidade dividida; é malíssima quando os especialistas começam a tomar parte pelo todo... o que quase sempre acontece).
Voltemos ao novo e à crítica. Diz-se por exemplo nova fotografia, como novo livro ou livro-de-artista, novo filme ou filme-de-artista. Para meios tecnicamente novos há menos ambiguidade e cai-se na redundância como video-arte ou arte-do-corpo. Que é uma redundância vê-se melhor nesta última designação, pois que - é evidente - toda a actividade artística é arte do corpo. Mas a verdade é que neste domínio - o novo, o verdadeiramente novo, nós temos que recorrer com frequência à redundância, ao pleonasmo e até a uma certa contradição linguareira para designar os novos objectos do nosso apaixonado conhecimento... que nunca são apenas novos meios. A fotografia, por exemplo, existe tal como a conhecemos hoje tecnicamente há uns três quartos de século - e agora nós falamos de nova fotografia.
E não sem razão.
Uma história complexa
Efectivamente a fotografia tem já uma história complexa. Como no caso do cinema, poderíamos dizer que essa complexidade começa antes da respectiva invenção: já existia antes de ser inventada. Isso é mais propriamente um aspecto técnico que não desenvolveremos que aqui. O mais importante é o que acontece com os primeiros daguerreotipos ( de Daguerre ); com os trabalhos de Niepce e outros; com a obra já "clássica" de Nadar. A partir daí a fotografia passaria a ser filha segunda, substituição mais ou menos comprometida da pintura. Mesmo quando (nos trabalhos de um Paul Strand, por exemplo) as suas "reussites" rivalizavam em originalidade formal com a irmã mais velha. Isto não quer dizer que não tenha havido operadores mais ou menos isolados a explorarem novos caminhos com o novo meio. Logo no início desta história houve os casos de Marey e sobretudo de Eduard Muybridge. Espantosa intuição. Mas estes autores eram como o engenheiro Eiffel: faziam uma obra de arte julgando que construíam apenas uma ponte ou uma torre funcionais. Inteiramente conscientes mas relativamente isolados foram mais tarde homens como Man Ray, o dadaísta, amigo de Duchamp; ou Moholy-Nagy, o professor da célebre Bauhaus. O próprio Marcel Duchamp, neste aspecto como em muitos outros teve a intuição do que seria a "nova" fotografia. Em 1942 ele substitui num quadro de Delvaux um detalhe imitando uma fotografia por uma fotografia mesmo... Mas isto já tem que ver com a memória, o desejo e um novo olhar sobre as coisas.
A memória e o desejo
Desde há muito que os pensadores se debruçam sobre o olhar; que é um sentido directamente teórico diria Marx inspirando-se em Hegel. "Que cada olhar é já uma teoria sobre o mundo "teria dito Goethe antes. Efectivamente o olhar suscita o desejo e fá-lo parar no limite do consumo. Neste sentido o olhar é uma transgressão do outro, sempre e sem defesa; mas uma transgressão que constantemente realiza a primeira grande operação erótica de facto: a contenção. Eu vejo-te, as belas pernas ou a fina comissura dos lábios, e suspendo o meu desejo, tu és a desconhecida que se senta à minha frente no comboio, ou mesmo a minha companheira de todos os dias. Também neste caso eu ainda te dirijo olhares de soslaio, olhares não-operatórios, ou o desejo já não existe entre nós... Dou exemplos simples, nem sempre o desejo se contenta com a simplicidade. Vejamos: essa contenção é já memória e "nova" fotografia. Digamos mais banalmente: registo. Ou seguindo o raciocínio ao contrário: o que a fotografia (verdadeiramente nova) veio revolucionar foi o registo e a perenidade do olhar; o que veio foi contrariar a perca da memória, ou a morte se quiserem que se mistura a toda e qualquer contenção: posso conservar (possuir) esse instante de desejo, outrora fugaz; ou mais fugaz. Claro que isto tem que ver com um tempo absoluto (imortal) que se joga no mais mortal e sem história, instante quotidiano.
O registo. Quando o homem da Idade da Pedra desejava a presa fugaz, desenhava-a, registava-a... de certo modo fotografava-a, neste sentido novo: uma relação entre a morte e o desejo. Mais tarde, os primeiros agricultores abandonam o hiper-realismo fotográfico das primeiras pinturas ou gravuras; e passam à escrita, um outro domínio do registo da memória uma fase segunda do desejo. Balzac diria "falar de amor é já fazer amor". Olhar o falar são realmente os dois caminhos do desejo, que só em oposição criadora/destruidora (dialéctica) se podem entender.
Anti-pintura
Tudo é relativo. Anti-pintura como anti-cinema são expressões de relação, já o dissemos. Mas dinâmicas e dinamizadores em determinado contexto, e por aí necessárias. Temos que falar de outras roturas da anti-escola e da anti-crítica, por exemplo. Mas voltemos à nova fotografia.
É um domínio vasto. Fundamentalmente tem muito pouco que ver com a aparência formal, com a beleza pictoral, o modo perceptivo. É uma anti-pintura. Mas mesmo neste caso as coisas não são simples e há novas investigações no domínio perceptivo que são propriamente fotográficas ou da nova fotografia. Como aproximação mais geral a nova fotografia tem que ver com a memória, a (não) morte da memória e a suspensão do desejo. Neste sentido se distancia também do cinema e do vídeo, que imitam ou especulam (de especulum, espelho) o olhar. A fotografia não imita o olhar, suspende-o. E com o olhar suspende e conserva (comunica o outro nível) o desejo. Aquilo que os franceses chamam o "voyeur", é afinal um homem (ou mulher) normais que se distinguem, marginalizam, pelo isolamento de certas fases ou processos de contacto com o Outro. A nova fotografia suspende o desejo num processo que se aproxima do "voyeur" que todos somos. Foi de há muito praticada para os factos exteriores da nossa história na reportagem jornalística, análise e sequências respectivas. É agora descoberto (mais) esteticamente ao nível da memória. Sobretudo da memória futura, e já sem medos: penetrar nos teus lábios enfim. Olhar-te, a Ti, absolutamente outro.
Ernesto de Sousa
Sem comentários:
Enviar um comentário