quarta-feira, 31 de julho de 2013

Aux Arts Citoyens! (2)


Com a exposição foi editado um “reader” com colaborações de críticos e académicos em torno da relação entre arte e política, dos quais destaco desde já Sven Lütticken, testando o conceito político de autonomia no modo como foi surgindo no contexto das práticas artísticas contemporâneas. Da leitura deste e de outros textos, e após ver a exposição, chegámos mais uma vez ao obter de uma certa sensação de fraude ética em relação ao que se passa no interior da arte, no que diz respeito a um empenhamento político emancipatório. Com efeito foi mais uma vez nas “margens” ou mesmo longe do artístico onde se sente o testemunho da luta contra a violência imposta pelo sistema económico e os seus “by-products” políticos e policiais. Nesta exposição experimenta-se fortemente este contraste entre a proposta da teoria e o resultado real de uma exposição, pensando os seus efeitos e a experiência que nos proporciona. Os textos do “Reader” acabam por fazer um sublinhado sobre esta suspeita, de modo mais ou menos declarado; - “Nas suas melhores iterações, (o sector artístico) é uma fantástica arena transnacional habitada por funcionários móveis do trabalho de choque, vendedores itinerantes de si mesmos, meninos-prodígio tecnológicos, mágicos orçamentistas, tradutores supersónicos, estagiários doutorados e outros criativos errantes e trabalhadores a soldo. Um potencial lugar-comum, onde a competição é extrema e implacável e onde solidariedade constitui a única expressão estranha. Cheio de sacanas sedutores, reis da intimidação e supostas vencedoras de concursos de beleza; de aspirantes, estrelas fora de moda, pessoas que nunca foram estrelas e tudo o resto.[1] O desabafo de Hito Steyerl coroa este mal-estar antigo sobre a ineficácia do mundo da arte perante o objectivo emancipatório: “A pergunta que importa fazer é se as instituições de arte contemporânea podem tornar-se locais eficazes de integração social e não meras exposições de significantes exóticos[2].  Do outro lado, tentando justificar “politicamente” a exposição, os curadores portugueses afirmariam essa possibilidade em modo de wishful thinking: “Às Artes, Cidadãos!” levantará questões mais do que produzirá respostas; interpelará o visitante, convidando-o a reflectir a partir de obras e ideias produzidas por autores que constatam a necessidade da arte ser uma possível plataforma para a construção de uma consciência política.[3] Dificilmente, na sequência do visionamento atento desta e de outras exposições de arte (muitas) consagradas ao político, chegamos a esta última conclusão, nomeadamente da Arte constituir uma “possível plataforma para a construção de uma consciência política” principalmente se a esse “possível” tentarmos fazer corresponder formas, agências, contratualidades, status quo.
O problema inicia-se logo de início com o tempo e o lugar específico da experiência da fruição do objecto artístico. Ao invés de incluir-se o problema institucional na equação, assume-se que o espaço de uma instituição como Serralves, é um espaço neutro. O erro, mais uma vez, está em condicionar-se as questões formais de uma “obra” aos seus limites físicos sem questionar com acuidade a importância que o contexto de enunciação possui para o significado. Perante a exposição em Serralves importa, para além deste “o quê”, observar um “onde”, um “quando” e um “para quem”. As cada vez mais impressionantes estruturas concebidas para exposições de arte contemporânea são tudo menos elementos neutros no que diz respeito à transmissão uma dimensão crítica sobre o político. Esta questão transcende em muito o espaço físico do museu, relacionando-se com os constrangimentos próprios das disciplinas que sustentam a apresentação da Arte; mais concretamente, o “esquecimento” associado ao mito da neutralidade do espaço de um museu associa-se também ao “esquecimento” sobre o qual assenta todo o edifício historiográfico das Artes, ou seja, o facto de que estas tal como as entendemos hoje globalmente são o produto não universal de um período e lugar muito específico da história: - o Renascimento Italiano. Este “esquecimento” utilizando aqui este conceito como Stiegler, transportou-se subjacente à própria evolução e eventual hegemonia do sistema da Arte Contemporânea. A criação do conceito de white cube[4] e da análoga black box, surgiu para acolher formalmente o minimalismo e a arte conceptual, tornando-se no grande modelo formal expositivo para quase tudo que se relacione com o mundo dos artefactos. É o modelo espacial globalizado que preside à concepção arquitectónica dos espaços museológicos para a arte contemporânea. Desejados pelos artistas das décadas de sessentas e setentas do século XX como o espaço ideal para contextualizar a complexidade formal dos seus projectos, isolando-os do “ruído visual” exterior, acabaram por funcionar como sofisticados indicadores de homologação sobre o que é arte e o que não é. Porém a sua função, longe de ser neutra e dentro do minimalismo formal, funciona de forma semelhante do que diz respeito ao que transmite, a uma moldura num quadro nas carregadas mansões da burguesia industrial de novecentos; Tem uma dupla função começando por isolar com sucesso a “obra” dos demais objectos da casa, funcionalizando-a de seguida como objecto conferidor de prestigio. Nesta primeira função era importante conservar a fronteira entre pintura e moldura absolutamente nítida. Tal já não teria de suceder no limiar entre moldura e habitat doméstico. Com efeito este seria já o lugar onde se jogava a segunda função: Esta decorria do seu valor formal intrínseco, que nessa época significava um Rocaille de elevada dose de complexidade ornamental que ecoava a ornamentação pesada do mobiliário de época. Quanto mais elaborada a decoração de uma moldura maior seria a importância conferida ao objecto que emoldurava. Era essa aliás a equação colocada perante o feliz proprietário de uma obra prima: - afirmar com a moldura ou setting, e de modo tão justo quanto o possível o valor “aurático” do objecto artístico perante outros; fossem estes objectos ou pessoas. A moldura é um indicador do prestígio conferido pela posse da obra de arte ao seu possuidor. O mesmo sucede com o museu de arte contemporânea; - funcionaliza de determinada maneira a produção (labour, poiésis) poética no contexto onde se insere. Este contexto é agora a urbe e as formas sociais que contém e que a formam, ou seja – a politeia. Assim sendo teremos duas funções a ter em conta. Primeiro; - o museu e a galeria criam uma fronteira que designa o que é e o que não é “arte” ou talvez ainda melhor, quando é arte[5]. Esta fronteira ou limiar de designação transubstancia produções criando factos de um tipo diferente e condicionados por essa mesma designação. Se algo, seja lá o que isso for, está dentro do espaço de exposição é muito provavelmente “arte”. O mesmo sucede com o teatro ou o cinema; com todos os regimes de produção característicos das industrias culturais. Na sequência desta argumentação coloca-se o problema da valorização do próprio espaço de exposição como aparelho institucional. Aqui a produção muda de autores. São verdadeiras potências que se conjugam para a formação de uma instituição prestigiante para a arte contemporânea. Desde sempre tal sucedeu. Foram sempre os tenentes do poder político e económico que de algum modo determinaram o regime de distribuição e recepção dos artefactos artístico e isto apesar da resistência ou colaboração de artistas e curadores. Nada do acima exposto é novo; - pelo contrário, foi um dos temas fundamentais de Benjamin e com isto sublinha-se o espanto provocado pelo simplismo da apresentação do problema tal como foi realizada recentemente em Serralves em “Ás Artes, Cidadãos”. A motivação do gesto poético resulta tanto de uma necessidade interior como da necessidade exógena da alimentação de uma indústria de conteúdos pela sua matéria prima própria; - a Arte. Por isso a criação de centros de arte de prestígio resultam quase sempre entre de algo entre as necessidades locais de exportar uma imagem, aliadas ao interesse do capital de se revestir de uma aura filantrópica. Desenhados por verdadeiras estrelas do universo arquitectónico correspondem quase sempre à formula de amplidão branca dos espaços interiores com um exterior apelativo de modo a criar uma landmark paisagística. As galerias de arte contemporânea constituíram-se como um dos equipamentos de ponta característicos para a inserção política de um núcleo urbano subalterno na teia da Cosmópolis. Hal Foster[6] demonstrou-o com o exemplo do Guggenheim de Bilbao; - Bilbao, em tempos uma das mais importantes cidades industriais do sul da europa, degradada, recuperou o seu lugar no mapa graças às formas características do projecto de Gehry e ao “puppy” de Koons (gerando conceitos e fenómenos como o de billboard architecture ou o chamado Bilbao Effect). A marca Guggenheim constitui-se ao mesmo tempo como uma espécie de franchising multinacional de arte. Tal significa que a política curatorial que desenvolve é altamente consensual, suspeita... Serralves é disto também um modelo clássico: o projecto é um orgulho nacional, mas é sobretudo de um valor incalculável para a cidade do Porto. Este valor mede-se na imaterialidade bem efectiva do prestígio.
Voltemos à exposição “aux armes...



[1] Steyerl, Hito – A Política da Arte in Ás Artes Cidadãos, p.204 , Serralves 2010, Porto
[2] Holmes, Brian – A Arte e o Cidadão Paradoxal in Ás Artes Cidadãos!, p.86 , Serralves 2010, Porto
[3] Faria, Oscar e Fernandes, joão – Ás Artes Cidadãos! in Ás Artes Cidadãos! p.20, Serralves 2010, porto
[4] Cf. O’Doherty, Brian - Inside the White cube, The ideology of the Gallery Space - University of California Press; 1 edition (January 14, 2000) e O’Doherty, Brian – Studio and Cube, On The Relationship Between Where Art is Made and Where Art is Displayed - Princeton Architectural Press; 1 edition (February 15, 2008)
[5] Cf. Goodman, Nelson – Modos de fazer Mundos, Ed. Asa, Lisboa, 1995
[6] Foster, Hal – Design and Crime (and other Diatribes), Verso Books, London, 2002






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