quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Aux Arts Citoyens! (3)


O destino da politização da arte joga-se então nos limiares da instituição artística, tornando visível, aberto à acção política, o complexo de forças colectivas que a promovem e acabam por determinar. Uma primeira aproximação a esta ideia pode ser realizada no escrutínio da crítica dedicada à politização da forma em oposição à politização do conteúdo nas artes.[1]To be political it has to look nice” é um trabalho (2003) do conceptual Stefan Bruggemann. Escrevia Raúl Zamundio[2] sobre uma exposição nova iorquina em 2003[3] que usava o título de Bruggemann; “One artist who was literally in sync with the show was Stefan Bruggeman, and probably because his piece was also the title of the exhibition”. Consistindo na própria frase colocada na parede constituindo simultaneamente um objecto-grafema com inegável qualidade formal, a obra de Bruggeman coloca mais uma vez, em Serralves, o truísmo sobre a generalidade e dos objectos com os quais partilha o espaço, ao mesmo tempo que lança uma suspeita acusatória de superficialidade sobre a exposição. A leveza irreverente da frase parece no entanto não colher ressonâncias. Com efeito, no que diz respeito à exposição de Serralves pouco mais, para além disto, sucedeu. Mais do que “Às Artes Cidadãos!” este “look nice[4] é o verdadeiro título, algo oculto, do que se expõe. A exposição pretendeu parecer política mais do que intervir no político e será esta, num esquecimento por defeito, a vontade das potências detentoras do programa institucional, uma vontade não apenas localizada na (desejada) ausência de acutilância no projecto, mas na implantação arquitectónica e simbólica da fundação na urbe e sobretudo, no seu peso institucional estratégico no concerto da res-publica. A Arte sobre política fica bem nestes espaços, autênticas câmaras de descompressão contra a ameaça do subversivo. E as câmaras de descompressão são instrumentos limiares ao serviço de um centro de operações contra um exterior hostil, onde o corpo se habitua a novas condições sem sofrer um choque. Aqui revela-se a imagem de um reduto e esse exterior, a necessidade de uma historicização in loco de muralhas, de portas e túneis, passagens e entulho. Centro e periferia traduzem-se por acumulações e ausências de capital, desequilíbrios e injustiça. Para falar de uma politização da arte ter-se-á de falar na crítica e na agência agonística no espectro cambiante destes limiares.
Talvez conviesse fazer aqui alguma historiografia recente sobre este assunto. A quase permanente obsessão de muitos curadores e artistas com o conteúdo político dos seus projectos tem uma genealogia que tentarei traçar aqui em linhas muito gerais. As convulsões sociais de finais de sessentas do século passado foram as últimas a abalar a generalidade do edifício social dos países desenvolvidos, ou seja, do terreno de onde é originário o instituir do mundo da arte. São desse tempo, maioritariamente, recordo as produções gráficas (panfletos, cartazes) expostas no átrio de Serralves; - nas margens da arte, portanto. Existiu efectivamente uma situação de combate generalizado nas ruas, protagonizado pela juventude da classe média no qual militaram artistas e intelectuais. Muitos foram presos, como sucedeu em Itália com o grupo Autonomia. Compreendeu-se então o espaço público como poroso, aberto à intervenção por intermédia da acção e da crítica institucional. Surgiram instituições, coooperativas, publicações, ambientes (scenes) míticos durante estes anos, que, na década seguinte ou desapareceriam ou se mercantilizaram em objectos de consumo melancólico. Os anos 80 e o triunfo do neo-liberalismo criaram o seu próprio sistema artístico, hedonista, fortemente mercantilizado; foi uma verdadeira pax romana imposta sobre a insubordinação autonomista e uma idade de ouro para as galerias comerciais. O fenómeno da gentrificação urbana; - a oucupação pelas classes endinheiradas dos bairros populares de onde provinha a cultura “livre” e de underground, foi um processo determinante na cristalização do centro de arte moderna como ersatz da criatividade urbana livre. Onde floresciam estúdios, comunidades, squatters, galerias não-comerciais aplicaram-se firmes políticas de expulsão dos seus habitantes a pretexto da renovação urbana e revitalização estética e turística. Esta última mais-valia alimenta-se de um mito despojado de realidade (Greenwich village, Soho, Kreuzberg...) em lojas de moda, restaurantes de luxo e rendas altíssimas. A política da insurreição, se abordada no encerramento arquitectónico dessas imponentes mastabas culturais (CCB, Tate Modern), torna-se objecto ela própria de uma analogia melancólica, algo ridícula, ás produções desses anos de combate[5]. Em 1998, Catherine David na Documenta X, realiza um prodigioso aggiornamento do político e da arte, sob o tema “ética e política” numa retrospectiva que “seemed to coincide with some kind of nostalgia for the radicality of past times[6] desses anos, em confronto com a Europa resultante da Die Wende[7] e com as brechas já evidentes do sonho neo-liberal. Abraçando a justaposição multicultural para lá do cânone euro-americano[8], investiu-se no valor documental da fotografia e nas novas tecnologias. A aliança entre as artes e os estudos culturais ficou bem realçada num generoso catálogo-reader que se transformou num verdadeiro paradigma do género. “It cannot bypass completely, as David sometimes claim, a certain spectacularization inherent to the institutional site within which the event is inscribed[9], lia-se numa crítica. Efectivamente, embora a Documenta X tenha constituído um verdadeiro acontecimento cultural, talvez por isso mesmo tenha constituído como que uma matriz de acção não apenas para as duas Documentas subsequentes (11 e 12), como para outras exposições, grupo na qual se inscreve a que presentemente observamos. O dado essencial neste processo acabou por ser o triunfo congelador da instituição museológica (mesmo se tentacular, como o da Documenta) sobre a mobilidade característica das agências de uma vanguarda politizada. Sem um poder verdadeiro nas ruas não se pode esperar o poder de transformação política pelas artes. Estas, desapossadas do poder de choque social, ficam confinadas ao exercício da citação melancólica sobre o político. A instituição das artes ao abraçar o state of the art da consciência política torna-se na melhor defesa do status quo contra a contingência da mudança, ou seja; exactamente o contrario do que textualmente afirmado pelas obras que contém e despudoradamente expõe. É por isso que, para pensar politicamente o ethos de uma arte explicitamente política sem uma suspeita de cinismo, tem de se forçosamente passar por uma crítica demolidora ao aparelho institucional das artes simultaneamente como limiar e barreira num contexto de luta social. Algumas balizas conceptuais são necessárias para focar esta crítica: Perante o paradigma contemporâneo dos institutos de arte, que formas, que estratégias serão passíveis de ser utilizadas para se poder falar de arte politizada? Para que paradigma de cidadania se pensa esta produção? Pretendo aqui, seguindo os textos publicados no reader contribuir para uma resposta, pelo menos parcial ou provisória, a estas questões.





[1] Aguirre, Peio – Forma, Sentido e Realidade – in ás Artes Cidadãos! – Serralves, Porto, 2010, pp.45-59
[2] Zamúndio, Raúl – LatinArt.com at http://www.latinart.com/exview.cfm?start=1&id=170
[3] To Be Political it Has to look Nice – Apexart (Oct, 11 – Nov 08, 2003) Nova Iorque.
[4]In the same way that Adorno pointed out capitalism’s conversion of the museum into mausoleum, of the neutralization of art by way of the culture industry, To Be Political It Has to Look Nice would probably suit well with whatever it was it was politically targeting. Through its unintended self-parody and occasional side-show antics, its criticality fell short and the only thing one could say about it was that it attempted to look political rather than being political. On the other hand, the show did look nice.” Zamundio, Raúl – Idem.

[5] As séries do Café Deutschland de Jorg Immendorf são disso um bom exemplo bem como as pinturas de Kiefer ou Lupertz. Immendorf em grandes telas representa as encruzilhadas e contradições públicas da Alemanha através da representação de cafés imaginários como arenas históricas.
[6] Amor, mónica – Documenta X; reclaiming the political project of the avant-garde – in http://www.informaworld.com/smpp/content~db=all~content=a794246726 (1997)
[7] Traduzido por “a mudança”; foi o processo de transição de poder operado na antiga RDA antes, durante e após a queda do muro de Berlim entre 1989 e 1990.
[8] O momento crucial para a introdução das temáticas pós-coloniais nas práticas curatoriais é também de 1989. Em paris no Pompidou, Jean-Hubert Martin, em resposta à etnocêntrica exposição “primitivismo” no MOMA monta “Magiciens de la Terre” onde justapõe 50 artistas do centro contra 50 da periferia em busca de relações formais ou temáticas e em contraponto com as exposições coloniais de 1931.
[9] Amor, Mónica – idem (1997)

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