O
destino da politização da arte joga-se então nos limiares da instituição
artística, tornando visível, aberto à acção política, o complexo de forças
colectivas que a promovem e acabam por determinar. Uma primeira aproximação a
esta ideia pode ser realizada no escrutínio da crítica dedicada à politização
da forma em oposição à politização do conteúdo nas artes.[1]
“To be political it has to look nice”
é um trabalho (2003) do conceptual Stefan Bruggemann. Escrevia Raúl Zamundio[2]
sobre uma exposição nova iorquina em 2003[3]
que usava o título de Bruggemann; “One
artist who was literally in sync with the show was Stefan Bruggeman, and
probably because his piece was also the title of the exhibition”.
Consistindo na própria frase colocada na parede constituindo simultaneamente um
objecto-grafema com inegável qualidade formal, a obra de Bruggeman coloca mais
uma vez, em Serralves, o truísmo sobre a generalidade e dos objectos com os
quais partilha o espaço, ao mesmo tempo que lança uma suspeita acusatória de
superficialidade sobre a exposição. A leveza irreverente da frase parece no
entanto não colher ressonâncias. Com efeito, no que diz respeito à exposição de
Serralves pouco mais, para além disto, sucedeu. Mais do que “Às Artes
Cidadãos!” este “look nice”[4]
é o verdadeiro título, algo oculto, do que se expõe. A exposição pretendeu
parecer política mais do que intervir no político e será esta, num esquecimento
por defeito, a vontade das potências detentoras do programa institucional, uma
vontade não apenas localizada na (desejada) ausência de acutilância no
projecto, mas na implantação arquitectónica e simbólica da fundação na urbe e
sobretudo, no seu peso institucional estratégico no concerto da res-publica. A Arte sobre política fica bem nestes espaços, autênticas câmaras de
descompressão contra a ameaça do subversivo. E as câmaras de descompressão são
instrumentos limiares ao serviço de um centro de operações contra um exterior
hostil, onde o corpo se habitua a novas condições sem sofrer um choque. Aqui
revela-se a imagem de um reduto e esse exterior, a necessidade de uma
historicização in loco de muralhas,
de portas e túneis, passagens e entulho. Centro e periferia traduzem-se por acumulações
e ausências de capital, desequilíbrios e injustiça. Para falar de uma
politização da arte ter-se-á de falar na crítica e na agência agonística no
espectro cambiante destes limiares.
Talvez
conviesse fazer aqui alguma historiografia recente sobre este assunto. A quase
permanente obsessão de muitos curadores e artistas com o conteúdo político dos
seus projectos tem uma genealogia que tentarei traçar aqui em linhas muito
gerais. As convulsões sociais de finais de sessentas do século passado foram as
últimas a abalar a generalidade do edifício social dos países desenvolvidos, ou
seja, do terreno de onde é originário o instituir do mundo da arte. São desse
tempo, maioritariamente, recordo as produções gráficas (panfletos, cartazes)
expostas no átrio de Serralves; - nas
margens da arte, portanto. Existiu efectivamente uma situação de combate
generalizado nas ruas, protagonizado pela juventude da classe média no qual
militaram artistas e intelectuais. Muitos foram presos, como sucedeu em Itália
com o grupo Autonomia. Compreendeu-se então o espaço público como poroso,
aberto à intervenção por intermédia da acção
e da crítica institucional. Surgiram instituições, coooperativas, publicações,
ambientes (scenes) míticos durante
estes anos, que, na década seguinte ou desapareceriam ou se mercantilizaram em
objectos de consumo melancólico. Os anos 80 e o triunfo do neo-liberalismo
criaram o seu próprio sistema artístico, hedonista, fortemente mercantilizado; foi
uma verdadeira pax romana imposta
sobre a insubordinação autonomista e uma idade de ouro para as galerias
comerciais. O fenómeno da gentrificação
urbana; - a oucupação pelas classes endinheiradas dos bairros populares de onde
provinha a cultura “livre” e de underground,
foi um processo determinante na cristalização
do centro de arte moderna como ersatz
da criatividade urbana livre. Onde floresciam estúdios, comunidades, squatters, galerias não-comerciais
aplicaram-se firmes políticas de expulsão dos seus habitantes a pretexto da
renovação urbana e revitalização estética e turística. Esta última mais-valia
alimenta-se de um mito despojado de realidade (Greenwich village, Soho, Kreuzberg...) em lojas de moda,
restaurantes de luxo e rendas altíssimas. A política da insurreição, se
abordada no encerramento arquitectónico dessas imponentes mastabas culturais
(CCB, Tate Modern), torna-se objecto
ela própria de uma analogia melancólica, algo ridícula, ás produções desses
anos de combate[5]. Em 1998, Catherine David
na Documenta X, realiza um prodigioso aggiornamento
do político e da arte, sob o tema “ética e política” numa retrospectiva que “seemed to coincide with some kind of
nostalgia for the radicality of past times”[6]
desses anos, em confronto com a Europa resultante da Die Wende[7] e com as brechas já
evidentes do sonho neo-liberal. Abraçando a justaposição multicultural para lá
do cânone euro-americano[8],
investiu-se no valor documental da fotografia e nas novas tecnologias. A
aliança entre as artes e os estudos culturais ficou bem realçada num generoso catálogo-reader que se transformou num verdadeiro
paradigma do género. “It cannot bypass
completely, as David sometimes claim, a certain spectacularization inherent to
the institutional site within which the event is inscribed”[9],
lia-se numa crítica. Efectivamente, embora a Documenta X tenha constituído um
verdadeiro acontecimento cultural, talvez por isso mesmo tenha constituído como
que uma matriz de acção não apenas para as duas Documentas subsequentes (11 e
12), como para outras exposições, grupo na qual se inscreve a que presentemente
observamos. O dado essencial neste processo acabou por ser o triunfo congelador
da instituição museológica (mesmo se tentacular, como o da Documenta) sobre a
mobilidade característica das agências de uma vanguarda politizada. Sem um poder
verdadeiro nas ruas não se pode esperar o poder de transformação política pelas
artes. Estas, desapossadas do poder de choque social, ficam confinadas ao
exercício da citação melancólica sobre o político. A instituição das artes ao
abraçar o state of the art da
consciência política torna-se na melhor defesa do status quo contra a contingência da mudança, ou seja; exactamente o
contrario do que textualmente afirmado pelas obras que contém e
despudoradamente expõe. É por isso que, para pensar politicamente o ethos de uma arte explicitamente política sem uma suspeita de cinismo, tem de se
forçosamente passar por uma crítica demolidora ao aparelho institucional das
artes simultaneamente como limiar e barreira num contexto de luta social.
Algumas balizas conceptuais são necessárias para focar esta crítica: Perante o
paradigma contemporâneo dos institutos de arte, que formas, que estratégias
serão passíveis de ser utilizadas para se poder falar de arte politizada? Para
que paradigma de cidadania se pensa esta produção? Pretendo aqui, seguindo os
textos publicados no reader
contribuir para uma resposta, pelo menos parcial ou provisória, a estas
questões.
[1] Aguirre, Peio
– Forma, Sentido e Realidade – in ás
Artes Cidadãos! – Serralves, Porto, 2010, pp.45-59
[2] Zamúndio, Raúl – LatinArt.com at http://www.latinart.com/exview.cfm?start=1&id=170
[3] To Be Political it Has to look Nice – Apexart (Oct, 11 – Nov 08, 2003)
Nova Iorque.
[4] “In
the same way that Adorno pointed out capitalism’s conversion of the museum into
mausoleum, of the neutralization of art by way of the culture industry, To
Be Political It Has to Look Nice would probably suit well with whatever it
was it was politically targeting. Through its unintended self-parody and
occasional side-show antics, its criticality fell short and the only thing one
could say about it was that it attempted to look political rather than being
political. On the other hand, the show did look nice.” Zamundio, Raúl – Idem.
[5] As séries do Café Deutschland de Jorg Immendorf são
disso um bom exemplo bem como as pinturas de Kiefer ou Lupertz. Immendorf em
grandes telas representa as encruzilhadas e contradições públicas da Alemanha
através da representação de cafés imaginários como arenas históricas.
[6] Amor, mónica – Documenta X;
reclaiming the political project of the avant-garde – in http://www.informaworld.com/smpp/content~db=all~content=a794246726
(1997)
[7] Traduzido por “a mudança”; foi o processo de transição de poder
operado na antiga RDA antes, durante e após a queda do muro de Berlim entre
1989 e 1990.
[8] O momento
crucial para a introdução das temáticas pós-coloniais nas práticas curatoriais
é também de 1989. Em paris no Pompidou, Jean-Hubert Martin, em resposta à
etnocêntrica exposição “primitivismo” no MOMA monta “Magiciens de la Terre” onde justapõe 50 artistas do centro contra
50 da periferia em busca de relações formais ou temáticas e em contraponto com
as exposições coloniais de 1931.
[9] Amor, Mónica –
idem (1997)
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