sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Aux Arts Citoyens! (4)


Organizei a recensão crítica pela importância crescente que entendo que cada texto traz a este tema. Inicio pela hipótese da irredutibilidade da arte ao político como defende Federico Ferrari, utilizando para isso um discurso problemático sobre as essências. Para o filósofo e professor de Milão o fim da Arte será outro completamente diverso da actividade política.
Ferrari desenvolve a tese[1] de que a concepção moderna de política e a arte moderna e contemporânea se confundiram desde a origem do republicanismo mantendo hoje objectivos comuns. Daqui arrisca a afirmação de que as suas essências se confundem: “Julgo poder dizer que aquilo que deixa de existir é precisamente a distinção entre arte e política, ou seja, na sobreposição das duas essências, a arte tende a desaparecer na política, a sua essência tende a coincidir com a da política.[2] Ferrari justifica tal ideia pelo conceito da submissão dos meios aos fins expressa na declaração de Beuys de que “cada homem é um artista” logo animal político diríamos nós. Tal situação cria um equívoco que funciona como que um espartilho para a liberdade poética e por fim advoga uma separação das essências das duas esferas: “Se a arte tem um fim, este é uma longa reflexão visual sobre o sentido de criar imagens e sobre o mundo que a imagem cria. A arte é a criação de imagens, a despeito de todas as estéticas, aparentemente libertárias, mas na verdade castradoras, que teorizam a impossibilidade de criação a favor de processos pós-produtivos de reutilização dos códigos e de hibridação dos domínios.[3] Em última análise todo o discurso parece afirmar que se Arte cumprir um “destino” que lhe será essencial mas sem chegar nunca ao l’art pour l’art, esse será também o culminar da sua efectividade política.
O discurso de Ferrari coloca-se em territórios difíceis de defender quando se refugia no conceito das essências. Sabemos não existir a política, mas sim políticas e que estas são carregadas de sobredeterminações, nomeadamente económicas. Mais, seguindo Virno[4], a política mundana dificilmente hoje, visa o atingir do bem comum; - antes procura por todos os meios a obtenção e a manutenção do poder. Por outro lado a Arte está longe de ser hegemónica e de se adequar a um discurso de essências. Esta sobreposição de esferas, da Arte e da Política, a existir funcionará ao nível de aproveitamentos simbióticos entre as duas esferas. A fornece conteúdos para a necessária política cultural das elites e a esfera política sanciona e fornece capital para a manutenção do sistema de valoração interior ao sistema das artes. A colusão das duas esferas indicada por Ferrari nunca sucede na generalidade; - o artístico e o político desempenham papéis bem diversos. Em última análise, a arte ainda participa na poiésis e a política, do campo da práxis e é aqui que se descobre o segundo aspecto a criticar na proposta de Ferrari. Na verdade o autor nunca chega a tocar no problema da vacuidade política das propostas artísticas ou se o faz, fá-lo recusando às artes esse papel crítico por não ser essencial. Mas assumindo a possibilidade de existir uma urgência para uma poética interventiva no campo político, Ferrari não assume qualquer forma de diálogo perante a efectividade ou falta dela em tal produção. O autor confere um pendor excessivo à importância das imagens na arte contemporânea e esta visão, embora de certo modo aristocrática, é redutora e desclassifica muita da produção conceptual pós-duchampiana. Mas o problema verdadeiro transcende este último, excessivamente formal; - Ferrari falha em compreender que é no plano do escrever do mundo, ou seja, nos modos do instituir (e não tanto dos conteúdos), que se joga a proximidade ou distância de práticas e esferas produtivas. Seria aqui nos modos como criam mundos que a Arte e a Política se podem ligar numa arena comum, mas isso raramente sucede, ao contrário do que escreve o autor, mas seria numa arena comum num regime de captura recíproca, como referiu Isabelle Stengers[5], e nos diversos modos de instituir, de fazer, que em última análise se faria a diferença sensível. A política tem os seus regimes de estética e o instituir da arte contemporânea têm, como já vimos anteriormente os seus aspectos políticos. Isto não é uma sobreposição generalizada.
Resta a Ferrari uma hipótese ao assumir uma fuga para frente da Arte em direcção às suas supostas essências: - “The most astute art with a political edge, however, is the kind that gets under one’s skin and festers in one’s unconscious subsequently attaining a certain critical valence.”[6] Esta proposta de Zamundio à guisa de upgrade à dialética Adorniana sobre a politização da arte, restaura o apoio à proposta de Ferrari e completam estas observações sobre o tema dos problemas relativos a uma sobreposição das esferas política e artística. Sente-se que a anulação do artístico sentida por Ferrari, tem as suas razões e caminhos ocultos; - será em última análise, também a falta desta astúcia subversiva que se sente na excessiva colagem de uma poética tornada moralista, ao texto político, frequentemente pobre; - uma poética anedótica.




[1] Ferrari, Federico – Sobre a Essência da Arte e da Política in ás Artes Cidadãos! – Serralves, Porto, 2010, pp.103-107
[2] idem p.105
[3] idem. p.107
[4] politics, as everybody knows has for a long time ceased to be the science of good government and has became, instead, the art of conquering and mantaining power.” – Virno, Paolo – The Grammar of Multitude – Semiotext(e), 2007, Cambridge MA p.57
[5] Stengers, Isabelle – Cosmopolitics I, University of Minesotta Press, (1997) 2010, Minneapolis
[6] Zamúndio, Raúl – LatinArt.com at http://www.latinart.com/exview.cfm?start=1&id=170

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Aux Arts Citoyens! (3)


O destino da politização da arte joga-se então nos limiares da instituição artística, tornando visível, aberto à acção política, o complexo de forças colectivas que a promovem e acabam por determinar. Uma primeira aproximação a esta ideia pode ser realizada no escrutínio da crítica dedicada à politização da forma em oposição à politização do conteúdo nas artes.[1]To be political it has to look nice” é um trabalho (2003) do conceptual Stefan Bruggemann. Escrevia Raúl Zamundio[2] sobre uma exposição nova iorquina em 2003[3] que usava o título de Bruggemann; “One artist who was literally in sync with the show was Stefan Bruggeman, and probably because his piece was also the title of the exhibition”. Consistindo na própria frase colocada na parede constituindo simultaneamente um objecto-grafema com inegável qualidade formal, a obra de Bruggeman coloca mais uma vez, em Serralves, o truísmo sobre a generalidade e dos objectos com os quais partilha o espaço, ao mesmo tempo que lança uma suspeita acusatória de superficialidade sobre a exposição. A leveza irreverente da frase parece no entanto não colher ressonâncias. Com efeito, no que diz respeito à exposição de Serralves pouco mais, para além disto, sucedeu. Mais do que “Às Artes Cidadãos!” este “look nice[4] é o verdadeiro título, algo oculto, do que se expõe. A exposição pretendeu parecer política mais do que intervir no político e será esta, num esquecimento por defeito, a vontade das potências detentoras do programa institucional, uma vontade não apenas localizada na (desejada) ausência de acutilância no projecto, mas na implantação arquitectónica e simbólica da fundação na urbe e sobretudo, no seu peso institucional estratégico no concerto da res-publica. A Arte sobre política fica bem nestes espaços, autênticas câmaras de descompressão contra a ameaça do subversivo. E as câmaras de descompressão são instrumentos limiares ao serviço de um centro de operações contra um exterior hostil, onde o corpo se habitua a novas condições sem sofrer um choque. Aqui revela-se a imagem de um reduto e esse exterior, a necessidade de uma historicização in loco de muralhas, de portas e túneis, passagens e entulho. Centro e periferia traduzem-se por acumulações e ausências de capital, desequilíbrios e injustiça. Para falar de uma politização da arte ter-se-á de falar na crítica e na agência agonística no espectro cambiante destes limiares.
Talvez conviesse fazer aqui alguma historiografia recente sobre este assunto. A quase permanente obsessão de muitos curadores e artistas com o conteúdo político dos seus projectos tem uma genealogia que tentarei traçar aqui em linhas muito gerais. As convulsões sociais de finais de sessentas do século passado foram as últimas a abalar a generalidade do edifício social dos países desenvolvidos, ou seja, do terreno de onde é originário o instituir do mundo da arte. São desse tempo, maioritariamente, recordo as produções gráficas (panfletos, cartazes) expostas no átrio de Serralves; - nas margens da arte, portanto. Existiu efectivamente uma situação de combate generalizado nas ruas, protagonizado pela juventude da classe média no qual militaram artistas e intelectuais. Muitos foram presos, como sucedeu em Itália com o grupo Autonomia. Compreendeu-se então o espaço público como poroso, aberto à intervenção por intermédia da acção e da crítica institucional. Surgiram instituições, coooperativas, publicações, ambientes (scenes) míticos durante estes anos, que, na década seguinte ou desapareceriam ou se mercantilizaram em objectos de consumo melancólico. Os anos 80 e o triunfo do neo-liberalismo criaram o seu próprio sistema artístico, hedonista, fortemente mercantilizado; foi uma verdadeira pax romana imposta sobre a insubordinação autonomista e uma idade de ouro para as galerias comerciais. O fenómeno da gentrificação urbana; - a oucupação pelas classes endinheiradas dos bairros populares de onde provinha a cultura “livre” e de underground, foi um processo determinante na cristalização do centro de arte moderna como ersatz da criatividade urbana livre. Onde floresciam estúdios, comunidades, squatters, galerias não-comerciais aplicaram-se firmes políticas de expulsão dos seus habitantes a pretexto da renovação urbana e revitalização estética e turística. Esta última mais-valia alimenta-se de um mito despojado de realidade (Greenwich village, Soho, Kreuzberg...) em lojas de moda, restaurantes de luxo e rendas altíssimas. A política da insurreição, se abordada no encerramento arquitectónico dessas imponentes mastabas culturais (CCB, Tate Modern), torna-se objecto ela própria de uma analogia melancólica, algo ridícula, ás produções desses anos de combate[5]. Em 1998, Catherine David na Documenta X, realiza um prodigioso aggiornamento do político e da arte, sob o tema “ética e política” numa retrospectiva que “seemed to coincide with some kind of nostalgia for the radicality of past times[6] desses anos, em confronto com a Europa resultante da Die Wende[7] e com as brechas já evidentes do sonho neo-liberal. Abraçando a justaposição multicultural para lá do cânone euro-americano[8], investiu-se no valor documental da fotografia e nas novas tecnologias. A aliança entre as artes e os estudos culturais ficou bem realçada num generoso catálogo-reader que se transformou num verdadeiro paradigma do género. “It cannot bypass completely, as David sometimes claim, a certain spectacularization inherent to the institutional site within which the event is inscribed[9], lia-se numa crítica. Efectivamente, embora a Documenta X tenha constituído um verdadeiro acontecimento cultural, talvez por isso mesmo tenha constituído como que uma matriz de acção não apenas para as duas Documentas subsequentes (11 e 12), como para outras exposições, grupo na qual se inscreve a que presentemente observamos. O dado essencial neste processo acabou por ser o triunfo congelador da instituição museológica (mesmo se tentacular, como o da Documenta) sobre a mobilidade característica das agências de uma vanguarda politizada. Sem um poder verdadeiro nas ruas não se pode esperar o poder de transformação política pelas artes. Estas, desapossadas do poder de choque social, ficam confinadas ao exercício da citação melancólica sobre o político. A instituição das artes ao abraçar o state of the art da consciência política torna-se na melhor defesa do status quo contra a contingência da mudança, ou seja; exactamente o contrario do que textualmente afirmado pelas obras que contém e despudoradamente expõe. É por isso que, para pensar politicamente o ethos de uma arte explicitamente política sem uma suspeita de cinismo, tem de se forçosamente passar por uma crítica demolidora ao aparelho institucional das artes simultaneamente como limiar e barreira num contexto de luta social. Algumas balizas conceptuais são necessárias para focar esta crítica: Perante o paradigma contemporâneo dos institutos de arte, que formas, que estratégias serão passíveis de ser utilizadas para se poder falar de arte politizada? Para que paradigma de cidadania se pensa esta produção? Pretendo aqui, seguindo os textos publicados no reader contribuir para uma resposta, pelo menos parcial ou provisória, a estas questões.





[1] Aguirre, Peio – Forma, Sentido e Realidade – in ás Artes Cidadãos! – Serralves, Porto, 2010, pp.45-59
[2] Zamúndio, Raúl – LatinArt.com at http://www.latinart.com/exview.cfm?start=1&id=170
[3] To Be Political it Has to look Nice – Apexart (Oct, 11 – Nov 08, 2003) Nova Iorque.
[4]In the same way that Adorno pointed out capitalism’s conversion of the museum into mausoleum, of the neutralization of art by way of the culture industry, To Be Political It Has to Look Nice would probably suit well with whatever it was it was politically targeting. Through its unintended self-parody and occasional side-show antics, its criticality fell short and the only thing one could say about it was that it attempted to look political rather than being political. On the other hand, the show did look nice.” Zamundio, Raúl – Idem.

[5] As séries do Café Deutschland de Jorg Immendorf são disso um bom exemplo bem como as pinturas de Kiefer ou Lupertz. Immendorf em grandes telas representa as encruzilhadas e contradições públicas da Alemanha através da representação de cafés imaginários como arenas históricas.
[6] Amor, mónica – Documenta X; reclaiming the political project of the avant-garde – in http://www.informaworld.com/smpp/content~db=all~content=a794246726 (1997)
[7] Traduzido por “a mudança”; foi o processo de transição de poder operado na antiga RDA antes, durante e após a queda do muro de Berlim entre 1989 e 1990.
[8] O momento crucial para a introdução das temáticas pós-coloniais nas práticas curatoriais é também de 1989. Em paris no Pompidou, Jean-Hubert Martin, em resposta à etnocêntrica exposição “primitivismo” no MOMA monta “Magiciens de la Terre” onde justapõe 50 artistas do centro contra 50 da periferia em busca de relações formais ou temáticas e em contraponto com as exposições coloniais de 1931.
[9] Amor, Mónica – idem (1997)

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Aux Arts Citoyens! (2)


Com a exposição foi editado um “reader” com colaborações de críticos e académicos em torno da relação entre arte e política, dos quais destaco desde já Sven Lütticken, testando o conceito político de autonomia no modo como foi surgindo no contexto das práticas artísticas contemporâneas. Da leitura deste e de outros textos, e após ver a exposição, chegámos mais uma vez ao obter de uma certa sensação de fraude ética em relação ao que se passa no interior da arte, no que diz respeito a um empenhamento político emancipatório. Com efeito foi mais uma vez nas “margens” ou mesmo longe do artístico onde se sente o testemunho da luta contra a violência imposta pelo sistema económico e os seus “by-products” políticos e policiais. Nesta exposição experimenta-se fortemente este contraste entre a proposta da teoria e o resultado real de uma exposição, pensando os seus efeitos e a experiência que nos proporciona. Os textos do “Reader” acabam por fazer um sublinhado sobre esta suspeita, de modo mais ou menos declarado; - “Nas suas melhores iterações, (o sector artístico) é uma fantástica arena transnacional habitada por funcionários móveis do trabalho de choque, vendedores itinerantes de si mesmos, meninos-prodígio tecnológicos, mágicos orçamentistas, tradutores supersónicos, estagiários doutorados e outros criativos errantes e trabalhadores a soldo. Um potencial lugar-comum, onde a competição é extrema e implacável e onde solidariedade constitui a única expressão estranha. Cheio de sacanas sedutores, reis da intimidação e supostas vencedoras de concursos de beleza; de aspirantes, estrelas fora de moda, pessoas que nunca foram estrelas e tudo o resto.[1] O desabafo de Hito Steyerl coroa este mal-estar antigo sobre a ineficácia do mundo da arte perante o objectivo emancipatório: “A pergunta que importa fazer é se as instituições de arte contemporânea podem tornar-se locais eficazes de integração social e não meras exposições de significantes exóticos[2].  Do outro lado, tentando justificar “politicamente” a exposição, os curadores portugueses afirmariam essa possibilidade em modo de wishful thinking: “Às Artes, Cidadãos!” levantará questões mais do que produzirá respostas; interpelará o visitante, convidando-o a reflectir a partir de obras e ideias produzidas por autores que constatam a necessidade da arte ser uma possível plataforma para a construção de uma consciência política.[3] Dificilmente, na sequência do visionamento atento desta e de outras exposições de arte (muitas) consagradas ao político, chegamos a esta última conclusão, nomeadamente da Arte constituir uma “possível plataforma para a construção de uma consciência política” principalmente se a esse “possível” tentarmos fazer corresponder formas, agências, contratualidades, status quo.
O problema inicia-se logo de início com o tempo e o lugar específico da experiência da fruição do objecto artístico. Ao invés de incluir-se o problema institucional na equação, assume-se que o espaço de uma instituição como Serralves, é um espaço neutro. O erro, mais uma vez, está em condicionar-se as questões formais de uma “obra” aos seus limites físicos sem questionar com acuidade a importância que o contexto de enunciação possui para o significado. Perante a exposição em Serralves importa, para além deste “o quê”, observar um “onde”, um “quando” e um “para quem”. As cada vez mais impressionantes estruturas concebidas para exposições de arte contemporânea são tudo menos elementos neutros no que diz respeito à transmissão uma dimensão crítica sobre o político. Esta questão transcende em muito o espaço físico do museu, relacionando-se com os constrangimentos próprios das disciplinas que sustentam a apresentação da Arte; mais concretamente, o “esquecimento” associado ao mito da neutralidade do espaço de um museu associa-se também ao “esquecimento” sobre o qual assenta todo o edifício historiográfico das Artes, ou seja, o facto de que estas tal como as entendemos hoje globalmente são o produto não universal de um período e lugar muito específico da história: - o Renascimento Italiano. Este “esquecimento” utilizando aqui este conceito como Stiegler, transportou-se subjacente à própria evolução e eventual hegemonia do sistema da Arte Contemporânea. A criação do conceito de white cube[4] e da análoga black box, surgiu para acolher formalmente o minimalismo e a arte conceptual, tornando-se no grande modelo formal expositivo para quase tudo que se relacione com o mundo dos artefactos. É o modelo espacial globalizado que preside à concepção arquitectónica dos espaços museológicos para a arte contemporânea. Desejados pelos artistas das décadas de sessentas e setentas do século XX como o espaço ideal para contextualizar a complexidade formal dos seus projectos, isolando-os do “ruído visual” exterior, acabaram por funcionar como sofisticados indicadores de homologação sobre o que é arte e o que não é. Porém a sua função, longe de ser neutra e dentro do minimalismo formal, funciona de forma semelhante do que diz respeito ao que transmite, a uma moldura num quadro nas carregadas mansões da burguesia industrial de novecentos; Tem uma dupla função começando por isolar com sucesso a “obra” dos demais objectos da casa, funcionalizando-a de seguida como objecto conferidor de prestigio. Nesta primeira função era importante conservar a fronteira entre pintura e moldura absolutamente nítida. Tal já não teria de suceder no limiar entre moldura e habitat doméstico. Com efeito este seria já o lugar onde se jogava a segunda função: Esta decorria do seu valor formal intrínseco, que nessa época significava um Rocaille de elevada dose de complexidade ornamental que ecoava a ornamentação pesada do mobiliário de época. Quanto mais elaborada a decoração de uma moldura maior seria a importância conferida ao objecto que emoldurava. Era essa aliás a equação colocada perante o feliz proprietário de uma obra prima: - afirmar com a moldura ou setting, e de modo tão justo quanto o possível o valor “aurático” do objecto artístico perante outros; fossem estes objectos ou pessoas. A moldura é um indicador do prestígio conferido pela posse da obra de arte ao seu possuidor. O mesmo sucede com o museu de arte contemporânea; - funcionaliza de determinada maneira a produção (labour, poiésis) poética no contexto onde se insere. Este contexto é agora a urbe e as formas sociais que contém e que a formam, ou seja – a politeia. Assim sendo teremos duas funções a ter em conta. Primeiro; - o museu e a galeria criam uma fronteira que designa o que é e o que não é “arte” ou talvez ainda melhor, quando é arte[5]. Esta fronteira ou limiar de designação transubstancia produções criando factos de um tipo diferente e condicionados por essa mesma designação. Se algo, seja lá o que isso for, está dentro do espaço de exposição é muito provavelmente “arte”. O mesmo sucede com o teatro ou o cinema; com todos os regimes de produção característicos das industrias culturais. Na sequência desta argumentação coloca-se o problema da valorização do próprio espaço de exposição como aparelho institucional. Aqui a produção muda de autores. São verdadeiras potências que se conjugam para a formação de uma instituição prestigiante para a arte contemporânea. Desde sempre tal sucedeu. Foram sempre os tenentes do poder político e económico que de algum modo determinaram o regime de distribuição e recepção dos artefactos artístico e isto apesar da resistência ou colaboração de artistas e curadores. Nada do acima exposto é novo; - pelo contrário, foi um dos temas fundamentais de Benjamin e com isto sublinha-se o espanto provocado pelo simplismo da apresentação do problema tal como foi realizada recentemente em Serralves em “Ás Artes, Cidadãos”. A motivação do gesto poético resulta tanto de uma necessidade interior como da necessidade exógena da alimentação de uma indústria de conteúdos pela sua matéria prima própria; - a Arte. Por isso a criação de centros de arte de prestígio resultam quase sempre entre de algo entre as necessidades locais de exportar uma imagem, aliadas ao interesse do capital de se revestir de uma aura filantrópica. Desenhados por verdadeiras estrelas do universo arquitectónico correspondem quase sempre à formula de amplidão branca dos espaços interiores com um exterior apelativo de modo a criar uma landmark paisagística. As galerias de arte contemporânea constituíram-se como um dos equipamentos de ponta característicos para a inserção política de um núcleo urbano subalterno na teia da Cosmópolis. Hal Foster[6] demonstrou-o com o exemplo do Guggenheim de Bilbao; - Bilbao, em tempos uma das mais importantes cidades industriais do sul da europa, degradada, recuperou o seu lugar no mapa graças às formas características do projecto de Gehry e ao “puppy” de Koons (gerando conceitos e fenómenos como o de billboard architecture ou o chamado Bilbao Effect). A marca Guggenheim constitui-se ao mesmo tempo como uma espécie de franchising multinacional de arte. Tal significa que a política curatorial que desenvolve é altamente consensual, suspeita... Serralves é disto também um modelo clássico: o projecto é um orgulho nacional, mas é sobretudo de um valor incalculável para a cidade do Porto. Este valor mede-se na imaterialidade bem efectiva do prestígio.
Voltemos à exposição “aux armes...



[1] Steyerl, Hito – A Política da Arte in Ás Artes Cidadãos, p.204 , Serralves 2010, Porto
[2] Holmes, Brian – A Arte e o Cidadão Paradoxal in Ás Artes Cidadãos!, p.86 , Serralves 2010, Porto
[3] Faria, Oscar e Fernandes, joão – Ás Artes Cidadãos! in Ás Artes Cidadãos! p.20, Serralves 2010, porto
[4] Cf. O’Doherty, Brian - Inside the White cube, The ideology of the Gallery Space - University of California Press; 1 edition (January 14, 2000) e O’Doherty, Brian – Studio and Cube, On The Relationship Between Where Art is Made and Where Art is Displayed - Princeton Architectural Press; 1 edition (February 15, 2008)
[5] Cf. Goodman, Nelson – Modos de fazer Mundos, Ed. Asa, Lisboa, 1995
[6] Foster, Hal – Design and Crime (and other Diatribes), Verso Books, London, 2002






Aux Arts Citoyens! (1)

Aux Arts Citoyens!  

Em Serralves até 13 de Março de 2010 convidava-se o “promeneur” a reflectir sobre “activismo, cidadania, revolução, utopia, democracia, comunidade” a partir de um par de exposições e apêndices em diferentes formatos – “conferências, seminários, conversas, sessões de cinema e projectos performativos” com o objectivo de “constituir uma plataforma de pensamento e de acção que cruza fronteiras disciplinares, geográficas e teóricas, sublinhando a relevância do político nas práticas artísticas na actualidade.” Esta última parte do convite continha os termos de uma relação que se insiste como problemática e sob suspeita. A ubiquidade das temáticas políticas nas práticas artísticas contemporâneas esconde apenas parcialmente a quase geral ineficácia ou mais correctamente, insignificância da agência artística em contextos sociais e políticos. Uma exposição com o expresso objectivo de perspectivar esta relação no presente e passado recente constitui no meu entender, um exemplar objecto para a crítica de uma relação que vive quase unicamente da sua própria nomeação e das boas intenções e; - na medida em que se afirma habitualmente um consenso sobre a necessidade de um envolvimento político das artes, mais importante se afiguraria para todos a procura de uma actualização deste papel, se não ainda “politicamente” efectivo, que pelo menos ao nível inicial de uma argumentação, demonstrasse o lugar de possibilidades e oportunidades para agir. A exposição dividiu-se em duas curadorias diferentes e como tal, em diferentes aproximações ao problema da relação entre arte e política. A principal, organizada por João Fernandes e Óscar Faria, dentro do museu propriamente dito, apresentou trabalhos de artistas cujo tema principal de investigação é o político. Cá fora, no hall, uma segunda exposição organizada já por Guy Schraenen intitulava-se “Nas Margens da Arte” e procurava explorar “a relação entre criatividade artística e envolvimento político”. Na sua apresentação, o autor concluia que “no seu conjunto (os trabalhos), devem permitir-nos repensar as fronteiras entre os territórios da arte e da ideologia, e a ligação entre as esferas da arte, da política e do activismo.” Esta afirmação é interessante na medida em que coloca o ideológico directamente no centro da argumentação. O conceito é importante porque permite fazer uma ponte entre dois sistemas distintos, com regimes distintos, ou seja, com especificidades, constrangimentos e obrigações estabelecidos, histórias e vocabulários próprios. O conceito de ideologia é efectivo na medida em que é central tanto na literatura sobre Arte como em disciplinas como as Ciências Políticas, a Sociologia, a Antropologia e outras.