quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A música portuguesa nunca existiu

António Pinho Vargas andava há tanto tempo inquieto com esta questão que decidiu trocar as ferramentas do compositor pelas do sociólogo e escrever "Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu". Uma obra apaixonante, e polémica, sobre os mecanismos da nossa subalternidade.

Como é possível que nenhuma obra portuguesa tenha alguma vez integrado o cânone da música ocidental? Os mais cépticos dirão talvez que a razão seja o facto de nenhuma ter qualidade suficiente, mas essa é uma resposta simplista, desmentida quer pelo facto de algumas obras portuguesas não serem piores do que outras estrangeiras que integram o referido cânone, quer por muitos dos grandes monumentos desse "museu imaginário de obras musicais", como lhe chamou Lydia Goehr, terem sido noutros momentos históricos excluídos. Basta pensar nas Sinfonias de Mahler, olhadas de lado até aos anos 60. António Pinho Vargas não se contenta com respostas simples. Há muito que se dedicava a reflectir sobre o tema, mas só a partir de 2005 iniciou uma pesquisa sistemática no âmbito de um doutoramento.

O compositor nunca quis que a sua tese ficasse esquecida nas estantes das bibliotecas e pensou-a como um livro, agora disponível na Almedina, com o título "Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu". Um livro polémico, em que nenhuma instituição está a salvo. Pinho Vargas, compositor e intérprete, pôs-se a fazer sociologia porque estava cansado das mesmas perguntas e das mesmas respostas sobre o suposto "atraso" e a irrelevância da música portuguesa. O resultado é uma crítica profunda da vida musical portuguesa e dos mecanismos que reproduzem a subalternidade, em particular no subcampo da nova música. O autor assume que o livro é polémico e devia ajudar a gerar um intenso debate mas, com uma certa melancolia, pensa que só será discutido pelas gerações futuras. Porque "ninguém se quer incomodar" e este livro é, certamente, incómodo.

Como é que um compositor se põe a fazer sociologia?

O projecto inicial foi sempre a música portuguesa hoje e alguns dos seus problemas, mas não estava decidido se iria desviar-me mais para o lado da sociologia ou da estética. Em 2005, quando comecei a investigação, era claro que havia uma dominação dos países centrais e uma extrema desigualdade em relação às várias periferias europeias. "A Europa vai à frente e Portugal tenta recuperar o atraso" é uma afirmação que percorre todas as áreas da vida portuguesa. O meu orientador era o professor Max Paddison, da Universidade de Durham, e tinha como co-orientador Boaventura Sousa Santos. Paddison desconhecia não só toda a música portuguesa como toda a cultura portuguesa. No livro, relato a estupefacção de um musicólogo inglês quando lhe expliquei o tema e lhe falei de Lopes-Graça. Ele comentou: "Qquem havia de dizer, Portugal tem um Béla Bartók!" Este tipo de discurso começou a ser um obstáculo à investigação, tinha de estar sempre a fazer "papers" a explicar quem era quem. Acabei por inverter os supervisores e ficar com Boaventura como orientador principal, o que levou à sociologia e ao trabalho com conceitos como a "produção activa de inexistência".

O que é a "produção activa da inexistência" no campo da música?

É encomendar uma peça, fazer a estreia e deixá-la cair para todo o sempre. É um conceito aplicado às coisas que são feitas, mas que já se sabe que não vão existir. Boaventura refere-se ao facto de os países mais pobres e periféricos muitas vezes produzirem objectos que, não sendo reconhecidos pelas instâncias de consagração do centro, acabam por ser considerados inexistentes. A cultura portuguesa tem esse problema no seu todo. Há um artista que emerge aqui e ali, mas no geral não conta para o centro.

O reconhecimento internacional dos artistas portugueses é uma ilusão?

Nos anos 80, os músicos que viviam em Portugal viam Emmanuel Nunes como um exemplo de reconhecimento internacional. Mas, ao sair do país, reparei que fora de Paris ninguém conhecia Nunes. Há um artigo do José-Augusto França que fala da "mais-valia geo-artística" e que diz: "Se eu, como crítico de um país periférico, disser que tenho um pintor lá em Portugal tão bom como aqueles que eles estão a mostrar em Paris ou em Londres, por princípio ninguém me acreditará". Um dos conceitos principais da minha tese é a localização, ou seja, o lugar de enunciação. Cada país tem uma agenda específica. O que se toca em Londres não é Philippe Manoury e em Paris não se ouve música dos ingleses, a não ser talvez Thomas Adès ou dos que passaram pelo IRCAM. O centro nem sequer é monolítico. A Europa só é una para o olhar do periférico. Quando se diz "a cultura portuguesa não é reconhecida lá fora", pressupõe-se que o lá fora é tudo. Não é tudo, é Paris e alguns arredores.

A situação da música é diferente da das outras artes?

A música é talvez a arte onde o cânone ocidental se manifesta com maior poder. A vida musical internacional corresponde a um museu imaginário, à arte de interpretação viva da repetição de peças de compositores mortos. Depois, de vez em quando, há uma estreia. A vida musical tornou-se no prazer do reconhecimento do já conhecido. É o que fazem os melómanos. Mas não foi assim sempre, porque não havia discos. O uso de uma linguagem mais acessível também não resolve o problema. Quantas óperas compôs o Philip Glass? E quantas estão no repertório? O que se passa em Portugal não é diferente, mas é agravado pela condição periférica. O país onde a música contemporânea está menos isolada talvez seja a França, por causa daquilo que o Jean-Jacques Nattiez classificou como "a mais gigantesca operação de salvamento desencadeada por um Estado para salvar uma arte", referindo-se ao IRCAM.

Porque é que o cânone se impõe tanto?

Porque tem dispositivos de poder, que são as narrativas que herdámos, as que ouvi no conservatório e que as gerações mais novas continuam a ouvir. O que está em causa não é o cânone, mas a sua pretensão à exclusividade. O que é criticável não é contar-se uma história da música em que Bach, Mozart, Beethoven são importantes, é não contar o que se passava no mundo na mesma altura e que outros criaram obras que ficaram de fora por determinadas razões. O que vou dizer é forte, para mim próprio: nós conhecemos melhor o cânone do que a música portuguesa. E por isso temos mais facilidade em ler em função das narrativas e das influências. O Alexandre Delgado é um grande lutador pela música portuguesa, mas quando quer elogiá-la usa termos como "o primeiro tema sofre um desvio brahmsiano e depois um desvio wagneriano"... O cânone é o espelho face ao qual nós estamos permanentemente a avaliar aquilo que é feito. Agir de outro modo implica um esforço da nossa parte. No livro faço esse esforço. Não me ponho fora da crítica que faço ali.

No livro, o papel da Gulbenkian é visto de forma bastante crítica...

A criação da Gulbenkian é referida nas histórias da música portuguesa como um momento da maior importância. O que é sublinhado é que finalmente Portugal tinha uma instituição com uma temporada ao nível das grandes capitais europeias. Como diz José Gil, a "pequena montra da Europa na Avenida de Berna". No entanto, como é apontado nos polémicos artigos do Mário Vieira de Carvalho nos anos 70 e por João Paes no "Dicionário de História de Portugal" (1998), quando se dá a abertura do edifício com uma temporada regular, a Gulbenkian já tinha enfraquecido todas as outras instituições através do peso dos festivais - as orquestras da rádio, as pequenas sociedades de concertos - e a sua hegemonia era total. No campo da criação, foi relativamente fácil, com os Encontros de Música Contemporânea, instalar em Portugal a hegemonia dos seguidores da Escola de Darmstadt, não nos anos 50, mas dez anos mais tarde, a partir das viagens de Jorge Peixinho, de Emmanuel Nunes e dos seus discípulos. A partir dos anos 80, os seminários do Nunes (que se prolongaram por 20 anos) e o tipo de encomendas levaram ao afunilamento estético em torno da corrente pós-serial. O favoritismo em relação a Nunes é também visível nas encomendas [23 encomendas entre 1967 e 2007, seguindo-se Peixinho com apenas 12]. Aplica-se aqui o que António Pinto Ribeiro escreveu no livro comemorativo dos 50 anos da fundação: "A Gulbenkian tornou-se uma instituição pesada, a vanguarda no mundo todo explodiu em múltiplas diversidades e a Gulbenkian não acompanhou esse movimento."

Mas hoje a situação mudou...

Grandes acontecimentos como a Europália, Lisboa 94, a Expo 98 e o Porto 2001-Capital Europeia da Cultura foram acompanhados pela abertura de uma série de novas instituições: Centro Cultural de Belém, Culturgest, Museu de Serralves, Casa da Música... Estas instituições terminaram com a hegemonia total da Gulbenkian, começaram a fazer encomendas e começou a haver maior diversidade.

Portugal não acompanhou os mesmos tempos da Europa?

Portugal andou a contraciclo. Construiu estruturas do Estado que terminaram com a hegemonia da Gulbenkian no momento em que a crise começou a instalar-se no centro. De repente começam a aparecer imensos compositores portugueses, a ter encomendas e estreias umas atrás das outras. Este é o aspecto positivo que ressalta da minha investigação. A diversidade interna neste momento é um factor positivo porque corresponde à diversidade interna do mundo. É uma coisa pela qual é preciso lutar politicamente. Não gosto de impérios.

A diversificação não é oportunidade para a mudança?

É. Seria... Eu tive muitas peças tocadas fora e considero que elas não se implantaram em lado nenhum. O compositor local continua a ser local. Verifico que da parte das instituições portuguesas há mais preocupação em fazer boa figura perante o europeu do centro que tem a autoridade, que "vai à frente", do que com a ideia de que este é um veículo da nossa cultura. A Casa da Música até agora foi ambivalente, tal como a Gulbenkian foi antes. Dá uma no cravo, outra na ferradura. A orquestra da Finlândia vem tocar à Casa da Música e faz um programa todo finlandês: o seu Sibelius e mais uma peça da Kaija Saariaho e outra do Magnus Lindberg. A Orquestra da Coruña vai tocar ao Centro Cultural de Belém Mendelssohn e Haydn, mas na primeira parte dos dois concertos apresenta dois compositores espanhóis, um dos quais galego.

As instituições tentam também por vezes encomendar peças que possam ficar no repertório...

Sim, mas falharam essas tentativas. O D. João V e a Fundação Gulbenkian são muito parecidos: trata-se de contratar grandes artistas. D. João V contratou grandes cantores, músicos e o Scarlatti. E por isso o D. João V é o único português mencionado na história da música do Taruskin e na história do Grout. Revela de uma forma extraordinária o inacreditável grau de ausência, como se durante mil anos as pessoas que aqui estiveram não tivessem feito música. Nós sabemos que não foi assim. Mas ao olhar do outro não conta. Há aqui um lance de exclusão que não passa sequer pelo conhecimento da peça musical. Simplesmente não conta, à partida. E quando ouvem, ouvem com preconceitos em relação aos europeus do Sul.

Mas se essas histórias estão mal contadas, porquê exigir estar presente nelas?

Não posso cair nessa armadilha, não tenho de justificar porque é que um português tem de estar lá, têm é de me justificar a mim porque é que não há-de estar. Não há razão, nem sequer decisão. Há ignorância e desconhecimento.

Um livro sobre a inexistência não corre o risco de reforçar a inexistência?

Nenhum. O livro é contra o lamento, critica o lamento o mais que pode. Mas um livro não muda o mundo. Nós estamos numa posição subalterna. Nós saímos cá para fora e a vida musical vai continuar de acordo com as suas forças internas, com a lógica interna do campo estrutural que se chama vida musical europeia.

Então não pode haver presença da música portuguesa em vez de ausência?

A presença tem primeiro de passar a ser local. O português tem de deixar de ter vergonha de ser português em Portugal. O que se tem sentido, desde os anos 90, é que em grande parte das instituições, não todas, há mais gente a querer música nova portuguesa. O problema não está na primeira audição, está na possibilidade da segunda audição, de reapresentar as peças. Sinto uma enorme diferença de qualidade entre 1992 e 2012. As instituições já perceberam que não é por haver compositores portugueses que o público diminui ou aumenta.

Tem tido reações ao livro, polémicas?

Não, não, ninguém se quer incomodar. O meu livro é incomodativo. Julgo que terá reflexos apenas na geração seguinte. As pessoas dos 50 anos pensam é na sua vidinha de compositores, como eu, que tenho de regressar à minha vidinha de compositor. Intérpretes, compositores e musicólogos são três tribos que se ignoram totalmente. É uma comunidade que não se vive a si própria, que não tem curiosidade mútua. Com excepções, claro, generalizar é sempre um abuso.

E dentro dos meios académicos?

Os cães marcam o seu território. E eu entro por um território onde não devia fazer chichi. O Boaventura Sousa Santos disse-me: "Você fez uma sociologia transgressiva de uma grande importância para a vida cultural portuguesa. Os mecanismos que expõe... há agentes que fazem isso. E esses agentes não vão gostar de ver os mecanismos expostos." E avisou-me que podia contar com detractores. Se se sentem atacados, o que é que se há-de fazer?

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Inquérito a trabalhadores no campo da Arte Contemporânea

Bom dia,

Junto enviamos um inquérito anónimo de iniciativa civil dirigida aos nossos pares que trabalham na área da Arte Contemporânea e nas diversas profissões a esta associadas. O seu objectivo é fazer um levantamento das condições laborais no interior das Artes e constituir assim uma ferramenta útil para um auto-reconhecimento do meio. Especificamente, este objecto pode ser importante para reivindicar, definir ou proteger direitos e deveres, e assim tornar-se um objecto útil para futuras discussões.


O preenchimento deste inquérito está pensado para cerca de 10 min., e está disponível para o seu preenchimento até Terça dia 12 de Abril. É inteiramente de resposta anónima.


Uma vez tratados os resultados do inquérito, estes serão disponibilizados no âmbito do ciclo "Agência: Algumas formas ao alcance de todas as mãos" a partir de 28 de Abril de 2011 no espaço The Barbershop, R. Rosa Araújo, n. 2, Lisboa, e posteriormente em http://thisisthebarbershop.blogspot.com/, onde estarão passíveis de serem referidos e partilhados por todos. Como representação sociológica, os resultados deste inquérito ficam limitados às respostas obtidas, sendo agradecida desde já a sua divulgação e preenchimento do inquérito por todos aqueles que considerem trabalhar na/para a Arte Contemporânea.


Cumprimentos!



Inquérito aqui:
http://kwiksurveys.com?u=inqueritoartecontemporanea
Divulgem por favor!

quarta-feira, 9 de março de 2011

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

sábado, 5 de fevereiro de 2011

A "nova" Fotografia

26 de Abril de 1978
Publicado na "Opção"
A «nova» fotografia

Não há ainda apelativos absolutamente correctos para o novo. O novo surpreende a um ponto zero, a sua aparição é anterior ao conhecimento, anterior ao compromisso. É sobre o novo que eventualmente qualquer pessoa (desde que possua os instrumentos necessários e respectivo "modo de emprego") pode exercer a crítica; na prática, que a poderiam exercê-la os especialistas - se porventura essa especialização não lhes tivesse toldado a inocência... (a especialização é um mal transitório, necessário numa cidade dividida; é malíssima quando os especialistas começam a tomar parte pelo todo... o que quase sempre acontece).

Voltemos ao novo e à crítica. Diz-se por exemplo nova fotografia, como novo livro ou livro-de-artista, novo filme ou filme-de-artista. Para meios tecnicamente novos há menos ambiguidade e cai-se na redundância como video-arte ou arte-do-corpo. Que é uma redundância vê-se melhor nesta última designação, pois que - é evidente - toda a actividade artística é arte do corpo. Mas a verdade é que neste domínio - o novo, o verdadeiramente novo, nós temos que recorrer com frequência à redundância, ao pleonasmo e até a uma certa contradição linguareira para designar os novos objectos do nosso apaixonado conhecimento... que nunca são apenas novos meios. A fotografia, por exemplo, existe tal como a conhecemos hoje tecnicamente há uns três quartos de século - e agora nós falamos de nova fotografia.

E não sem razão.

Uma história complexa

Efectivamente a fotografia tem já uma história complexa. Como no caso do cinema, poderíamos dizer que essa complexidade começa antes da respectiva invenção: já existia antes de ser inventada. Isso é mais propriamente um aspecto técnico que não desenvolveremos que aqui. O mais importante é o que acontece com os primeiros daguerreotipos ( de Daguerre ); com os trabalhos de Niepce e outros; com a obra já "clássica" de Nadar. A partir daí a fotografia passaria a ser filha segunda, substituição mais ou menos comprometida da pintura. Mesmo quando (nos trabalhos de um Paul Strand, por exemplo) as suas "reussites" rivalizavam em originalidade formal com a irmã mais velha. Isto não quer dizer que não tenha havido operadores mais ou menos isolados a explorarem novos caminhos com o novo meio. Logo no início desta história houve os casos de Marey e sobretudo de Eduard Muybridge. Espantosa intuição. Mas estes autores eram como o engenheiro Eiffel: faziam uma obra de arte julgando que construíam apenas uma ponte ou uma torre funcionais. Inteiramente conscientes mas relativamente isolados foram mais tarde homens como Man Ray, o dadaísta, amigo de Duchamp; ou Moholy-Nagy, o professor da célebre Bauhaus. O próprio Marcel Duchamp, neste aspecto como em muitos outros teve a intuição do que seria a "nova" fotografia. Em 1942 ele substitui num quadro de Delvaux um detalhe imitando uma fotografia por uma fotografia mesmo... Mas isto já tem que ver com a memória, o desejo e um novo olhar sobre as coisas.

A memória e o desejo

Desde há muito que os pensadores se debruçam sobre o olhar; que é um sentido directamente teórico diria Marx inspirando-se em Hegel. "Que cada olhar é já uma teoria sobre o mundo "teria dito Goethe antes. Efectivamente o olhar suscita o desejo e fá-lo parar no limite do consumo. Neste sentido o olhar é uma transgressão do outro, sempre e sem defesa; mas uma transgressão que constantemente realiza a primeira grande operação erótica de facto: a contenção. Eu vejo-te, as belas pernas ou a fina comissura dos lábios, e suspendo o meu desejo, tu és a desconhecida que se senta à minha frente no comboio, ou mesmo a minha companheira de todos os dias. Também neste caso eu ainda te dirijo olhares de soslaio, olhares não-operatórios, ou o desejo já não existe entre nós... Dou exemplos simples, nem sempre o desejo se contenta com a simplicidade. Vejamos: essa contenção é já memória e "nova" fotografia. Digamos mais banalmente: registo. Ou seguindo o raciocínio ao contrário: o que a fotografia (verdadeiramente nova) veio revolucionar foi o registo e a perenidade do olhar; o que veio foi contrariar a perca da memória, ou a morte se quiserem que se mistura a toda e qualquer contenção: posso conservar (possuir) esse instante de desejo, outrora fugaz; ou mais fugaz. Claro que isto tem que ver com um tempo absoluto (imortal) que se joga no mais mortal e sem história, instante quotidiano.

O registo. Quando o homem da Idade da Pedra desejava a presa fugaz, desenhava-a, registava-a... de certo modo fotografava-a, neste sentido novo: uma relação entre a morte e o desejo. Mais tarde, os primeiros agricultores abandonam o hiper-realismo fotográfico das primeiras pinturas ou gravuras; e passam à escrita, um outro domínio do registo da memória uma fase segunda do desejo. Balzac diria "falar de amor é já fazer amor". Olhar o falar são realmente os dois caminhos do desejo, que só em oposição criadora/destruidora (dialéctica) se podem entender.

Anti-pintura

Tudo é relativo. Anti-pintura como anti-cinema são expressões de relação, já o dissemos. Mas dinâmicas e dinamizadores em determinado contexto, e por aí necessárias. Temos que falar de outras roturas da anti-escola e da anti-crítica, por exemplo. Mas voltemos à nova fotografia.

É um domínio vasto. Fundamentalmente tem muito pouco que ver com a aparência formal, com a beleza pictoral, o modo perceptivo. É uma anti-pintura. Mas mesmo neste caso as coisas não são simples e há novas investigações no domínio perceptivo que são propriamente fotográficas ou da nova fotografia. Como aproximação mais geral a nova fotografia tem que ver com a memória, a (não) morte da memória e a suspensão do desejo. Neste sentido se distancia também do cinema e do vídeo, que imitam ou especulam (de especulum, espelho) o olhar. A fotografia não imita o olhar, suspende-o. E com o olhar suspende e conserva (comunica o outro nível) o desejo. Aquilo que os franceses chamam o "voyeur", é afinal um homem (ou mulher) normais que se distinguem, marginalizam, pelo isolamento de certas fases ou processos de contacto com o Outro. A nova fotografia suspende o desejo num processo que se aproxima do "voyeur" que todos somos. Foi de há muito praticada para os factos exteriores da nossa história na reportagem jornalística, análise e sequências respectivas. É agora descoberto (mais) esteticamente ao nível da memória. Sobretudo da memória futura, e já sem medos: penetrar nos teus lábios enfim. Olhar-te, a Ti, absolutamente outro.



Ernesto de Sousa