sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Aux Arts Citoyens! (4)


Organizei a recensão crítica pela importância crescente que entendo que cada texto traz a este tema. Inicio pela hipótese da irredutibilidade da arte ao político como defende Federico Ferrari, utilizando para isso um discurso problemático sobre as essências. Para o filósofo e professor de Milão o fim da Arte será outro completamente diverso da actividade política.
Ferrari desenvolve a tese[1] de que a concepção moderna de política e a arte moderna e contemporânea se confundiram desde a origem do republicanismo mantendo hoje objectivos comuns. Daqui arrisca a afirmação de que as suas essências se confundem: “Julgo poder dizer que aquilo que deixa de existir é precisamente a distinção entre arte e política, ou seja, na sobreposição das duas essências, a arte tende a desaparecer na política, a sua essência tende a coincidir com a da política.[2] Ferrari justifica tal ideia pelo conceito da submissão dos meios aos fins expressa na declaração de Beuys de que “cada homem é um artista” logo animal político diríamos nós. Tal situação cria um equívoco que funciona como que um espartilho para a liberdade poética e por fim advoga uma separação das essências das duas esferas: “Se a arte tem um fim, este é uma longa reflexão visual sobre o sentido de criar imagens e sobre o mundo que a imagem cria. A arte é a criação de imagens, a despeito de todas as estéticas, aparentemente libertárias, mas na verdade castradoras, que teorizam a impossibilidade de criação a favor de processos pós-produtivos de reutilização dos códigos e de hibridação dos domínios.[3] Em última análise todo o discurso parece afirmar que se Arte cumprir um “destino” que lhe será essencial mas sem chegar nunca ao l’art pour l’art, esse será também o culminar da sua efectividade política.
O discurso de Ferrari coloca-se em territórios difíceis de defender quando se refugia no conceito das essências. Sabemos não existir a política, mas sim políticas e que estas são carregadas de sobredeterminações, nomeadamente económicas. Mais, seguindo Virno[4], a política mundana dificilmente hoje, visa o atingir do bem comum; - antes procura por todos os meios a obtenção e a manutenção do poder. Por outro lado a Arte está longe de ser hegemónica e de se adequar a um discurso de essências. Esta sobreposição de esferas, da Arte e da Política, a existir funcionará ao nível de aproveitamentos simbióticos entre as duas esferas. A fornece conteúdos para a necessária política cultural das elites e a esfera política sanciona e fornece capital para a manutenção do sistema de valoração interior ao sistema das artes. A colusão das duas esferas indicada por Ferrari nunca sucede na generalidade; - o artístico e o político desempenham papéis bem diversos. Em última análise, a arte ainda participa na poiésis e a política, do campo da práxis e é aqui que se descobre o segundo aspecto a criticar na proposta de Ferrari. Na verdade o autor nunca chega a tocar no problema da vacuidade política das propostas artísticas ou se o faz, fá-lo recusando às artes esse papel crítico por não ser essencial. Mas assumindo a possibilidade de existir uma urgência para uma poética interventiva no campo político, Ferrari não assume qualquer forma de diálogo perante a efectividade ou falta dela em tal produção. O autor confere um pendor excessivo à importância das imagens na arte contemporânea e esta visão, embora de certo modo aristocrática, é redutora e desclassifica muita da produção conceptual pós-duchampiana. Mas o problema verdadeiro transcende este último, excessivamente formal; - Ferrari falha em compreender que é no plano do escrever do mundo, ou seja, nos modos do instituir (e não tanto dos conteúdos), que se joga a proximidade ou distância de práticas e esferas produtivas. Seria aqui nos modos como criam mundos que a Arte e a Política se podem ligar numa arena comum, mas isso raramente sucede, ao contrário do que escreve o autor, mas seria numa arena comum num regime de captura recíproca, como referiu Isabelle Stengers[5], e nos diversos modos de instituir, de fazer, que em última análise se faria a diferença sensível. A política tem os seus regimes de estética e o instituir da arte contemporânea têm, como já vimos anteriormente os seus aspectos políticos. Isto não é uma sobreposição generalizada.
Resta a Ferrari uma hipótese ao assumir uma fuga para frente da Arte em direcção às suas supostas essências: - “The most astute art with a political edge, however, is the kind that gets under one’s skin and festers in one’s unconscious subsequently attaining a certain critical valence.”[6] Esta proposta de Zamundio à guisa de upgrade à dialética Adorniana sobre a politização da arte, restaura o apoio à proposta de Ferrari e completam estas observações sobre o tema dos problemas relativos a uma sobreposição das esferas política e artística. Sente-se que a anulação do artístico sentida por Ferrari, tem as suas razões e caminhos ocultos; - será em última análise, também a falta desta astúcia subversiva que se sente na excessiva colagem de uma poética tornada moralista, ao texto político, frequentemente pobre; - uma poética anedótica.




[1] Ferrari, Federico – Sobre a Essência da Arte e da Política in ás Artes Cidadãos! – Serralves, Porto, 2010, pp.103-107
[2] idem p.105
[3] idem. p.107
[4] politics, as everybody knows has for a long time ceased to be the science of good government and has became, instead, the art of conquering and mantaining power.” – Virno, Paolo – The Grammar of Multitude – Semiotext(e), 2007, Cambridge MA p.57
[5] Stengers, Isabelle – Cosmopolitics I, University of Minesotta Press, (1997) 2010, Minneapolis
[6] Zamúndio, Raúl – LatinArt.com at http://www.latinart.com/exview.cfm?start=1&id=170

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Aux Arts Citoyens! (3)


O destino da politização da arte joga-se então nos limiares da instituição artística, tornando visível, aberto à acção política, o complexo de forças colectivas que a promovem e acabam por determinar. Uma primeira aproximação a esta ideia pode ser realizada no escrutínio da crítica dedicada à politização da forma em oposição à politização do conteúdo nas artes.[1]To be political it has to look nice” é um trabalho (2003) do conceptual Stefan Bruggemann. Escrevia Raúl Zamundio[2] sobre uma exposição nova iorquina em 2003[3] que usava o título de Bruggemann; “One artist who was literally in sync with the show was Stefan Bruggeman, and probably because his piece was also the title of the exhibition”. Consistindo na própria frase colocada na parede constituindo simultaneamente um objecto-grafema com inegável qualidade formal, a obra de Bruggeman coloca mais uma vez, em Serralves, o truísmo sobre a generalidade e dos objectos com os quais partilha o espaço, ao mesmo tempo que lança uma suspeita acusatória de superficialidade sobre a exposição. A leveza irreverente da frase parece no entanto não colher ressonâncias. Com efeito, no que diz respeito à exposição de Serralves pouco mais, para além disto, sucedeu. Mais do que “Às Artes Cidadãos!” este “look nice[4] é o verdadeiro título, algo oculto, do que se expõe. A exposição pretendeu parecer política mais do que intervir no político e será esta, num esquecimento por defeito, a vontade das potências detentoras do programa institucional, uma vontade não apenas localizada na (desejada) ausência de acutilância no projecto, mas na implantação arquitectónica e simbólica da fundação na urbe e sobretudo, no seu peso institucional estratégico no concerto da res-publica. A Arte sobre política fica bem nestes espaços, autênticas câmaras de descompressão contra a ameaça do subversivo. E as câmaras de descompressão são instrumentos limiares ao serviço de um centro de operações contra um exterior hostil, onde o corpo se habitua a novas condições sem sofrer um choque. Aqui revela-se a imagem de um reduto e esse exterior, a necessidade de uma historicização in loco de muralhas, de portas e túneis, passagens e entulho. Centro e periferia traduzem-se por acumulações e ausências de capital, desequilíbrios e injustiça. Para falar de uma politização da arte ter-se-á de falar na crítica e na agência agonística no espectro cambiante destes limiares.
Talvez conviesse fazer aqui alguma historiografia recente sobre este assunto. A quase permanente obsessão de muitos curadores e artistas com o conteúdo político dos seus projectos tem uma genealogia que tentarei traçar aqui em linhas muito gerais. As convulsões sociais de finais de sessentas do século passado foram as últimas a abalar a generalidade do edifício social dos países desenvolvidos, ou seja, do terreno de onde é originário o instituir do mundo da arte. São desse tempo, maioritariamente, recordo as produções gráficas (panfletos, cartazes) expostas no átrio de Serralves; - nas margens da arte, portanto. Existiu efectivamente uma situação de combate generalizado nas ruas, protagonizado pela juventude da classe média no qual militaram artistas e intelectuais. Muitos foram presos, como sucedeu em Itália com o grupo Autonomia. Compreendeu-se então o espaço público como poroso, aberto à intervenção por intermédia da acção e da crítica institucional. Surgiram instituições, coooperativas, publicações, ambientes (scenes) míticos durante estes anos, que, na década seguinte ou desapareceriam ou se mercantilizaram em objectos de consumo melancólico. Os anos 80 e o triunfo do neo-liberalismo criaram o seu próprio sistema artístico, hedonista, fortemente mercantilizado; foi uma verdadeira pax romana imposta sobre a insubordinação autonomista e uma idade de ouro para as galerias comerciais. O fenómeno da gentrificação urbana; - a oucupação pelas classes endinheiradas dos bairros populares de onde provinha a cultura “livre” e de underground, foi um processo determinante na cristalização do centro de arte moderna como ersatz da criatividade urbana livre. Onde floresciam estúdios, comunidades, squatters, galerias não-comerciais aplicaram-se firmes políticas de expulsão dos seus habitantes a pretexto da renovação urbana e revitalização estética e turística. Esta última mais-valia alimenta-se de um mito despojado de realidade (Greenwich village, Soho, Kreuzberg...) em lojas de moda, restaurantes de luxo e rendas altíssimas. A política da insurreição, se abordada no encerramento arquitectónico dessas imponentes mastabas culturais (CCB, Tate Modern), torna-se objecto ela própria de uma analogia melancólica, algo ridícula, ás produções desses anos de combate[5]. Em 1998, Catherine David na Documenta X, realiza um prodigioso aggiornamento do político e da arte, sob o tema “ética e política” numa retrospectiva que “seemed to coincide with some kind of nostalgia for the radicality of past times[6] desses anos, em confronto com a Europa resultante da Die Wende[7] e com as brechas já evidentes do sonho neo-liberal. Abraçando a justaposição multicultural para lá do cânone euro-americano[8], investiu-se no valor documental da fotografia e nas novas tecnologias. A aliança entre as artes e os estudos culturais ficou bem realçada num generoso catálogo-reader que se transformou num verdadeiro paradigma do género. “It cannot bypass completely, as David sometimes claim, a certain spectacularization inherent to the institutional site within which the event is inscribed[9], lia-se numa crítica. Efectivamente, embora a Documenta X tenha constituído um verdadeiro acontecimento cultural, talvez por isso mesmo tenha constituído como que uma matriz de acção não apenas para as duas Documentas subsequentes (11 e 12), como para outras exposições, grupo na qual se inscreve a que presentemente observamos. O dado essencial neste processo acabou por ser o triunfo congelador da instituição museológica (mesmo se tentacular, como o da Documenta) sobre a mobilidade característica das agências de uma vanguarda politizada. Sem um poder verdadeiro nas ruas não se pode esperar o poder de transformação política pelas artes. Estas, desapossadas do poder de choque social, ficam confinadas ao exercício da citação melancólica sobre o político. A instituição das artes ao abraçar o state of the art da consciência política torna-se na melhor defesa do status quo contra a contingência da mudança, ou seja; exactamente o contrario do que textualmente afirmado pelas obras que contém e despudoradamente expõe. É por isso que, para pensar politicamente o ethos de uma arte explicitamente política sem uma suspeita de cinismo, tem de se forçosamente passar por uma crítica demolidora ao aparelho institucional das artes simultaneamente como limiar e barreira num contexto de luta social. Algumas balizas conceptuais são necessárias para focar esta crítica: Perante o paradigma contemporâneo dos institutos de arte, que formas, que estratégias serão passíveis de ser utilizadas para se poder falar de arte politizada? Para que paradigma de cidadania se pensa esta produção? Pretendo aqui, seguindo os textos publicados no reader contribuir para uma resposta, pelo menos parcial ou provisória, a estas questões.





[1] Aguirre, Peio – Forma, Sentido e Realidade – in ás Artes Cidadãos! – Serralves, Porto, 2010, pp.45-59
[2] Zamúndio, Raúl – LatinArt.com at http://www.latinart.com/exview.cfm?start=1&id=170
[3] To Be Political it Has to look Nice – Apexart (Oct, 11 – Nov 08, 2003) Nova Iorque.
[4]In the same way that Adorno pointed out capitalism’s conversion of the museum into mausoleum, of the neutralization of art by way of the culture industry, To Be Political It Has to Look Nice would probably suit well with whatever it was it was politically targeting. Through its unintended self-parody and occasional side-show antics, its criticality fell short and the only thing one could say about it was that it attempted to look political rather than being political. On the other hand, the show did look nice.” Zamundio, Raúl – Idem.

[5] As séries do Café Deutschland de Jorg Immendorf são disso um bom exemplo bem como as pinturas de Kiefer ou Lupertz. Immendorf em grandes telas representa as encruzilhadas e contradições públicas da Alemanha através da representação de cafés imaginários como arenas históricas.
[6] Amor, mónica – Documenta X; reclaiming the political project of the avant-garde – in http://www.informaworld.com/smpp/content~db=all~content=a794246726 (1997)
[7] Traduzido por “a mudança”; foi o processo de transição de poder operado na antiga RDA antes, durante e após a queda do muro de Berlim entre 1989 e 1990.
[8] O momento crucial para a introdução das temáticas pós-coloniais nas práticas curatoriais é também de 1989. Em paris no Pompidou, Jean-Hubert Martin, em resposta à etnocêntrica exposição “primitivismo” no MOMA monta “Magiciens de la Terre” onde justapõe 50 artistas do centro contra 50 da periferia em busca de relações formais ou temáticas e em contraponto com as exposições coloniais de 1931.
[9] Amor, Mónica – idem (1997)