segunda-feira, 30 de março de 2009

Escritos de Artista (6)

Ai Weiwei

(continuação) A aura é um interveniente fundamental. É de facto este o produto que interessa ao sistema social como um todo, destilar do sub-sistema do mundo da arte. Simultaneamente é o concurso em fluxo inverso, do capital financeiro por um lado, e da aura pelo outro, a fabricar a coesão de todo este pequeno universo. Voltemos um pouco atrás. Hoje o mundo das artes concorre a um lugar semelhante ao que a religião ocupou (e talvez ainda ocupe) nas sociedades pré-modernas (Houellebecq). Ambos os sistemas concorrem sobre a esfera laica com valores impalpáveis. De um lado a salvação fundamental (ou fundamentalista) para uma vida não terrena, do outro, particularmente após o julgamento e a “morte” de deus operada pelo iluminismo e pela burguesia, fornece-se a esta mesma burguesia sôfrega de espiritualismo e sobretudo de legitimação, esse valor intangível, aurático, mas que se pode possuir a partir do momento em que se financia, patrocina ou adquire uma obra de arte. A tradição institucionalista mantém que a função capital do mundo da arte é a própria validação da “categoria cultural da arte” e produzir o consentimento geral da sociedade neste acto. Obviamente esta visão de tradição anglo-saxónica (Danto) não mostra a imagem completa daquilo que na realidade se passa. O mundo da arte, determinado pelas condições sociais existentes, segundo outra visão (Bourdieu), não é mais do que a fábrica de aura, ou capital simbólico; valor, prestígio e outros factores intangíveis indispensáveis para a legitimação e sedimentação do verdadeiro poder do parvenu nas configurações societárias actuais.

Pode-se fazer drag and drop do processo de legitimação de estatuto social que se acabou de descrever, para o próprio incremento de proeminência e legitimação de um estado no seio do que foi o “concerto das nações” ou melhor ainda, na ordem mundial que o substituiu; o mercado de investimentos financeiros. Veja-se o caso da proliferação de bienais e colecções pelo mundo todo. Este não é mais do que um dos indicadores da globalização de cariz neo-liberal. É claro que ninguém subscreverá esta visão. Genuinamente a verdadeira arte é fabulosa e a aura que dela emana é verdadeiramente e em si, uma valia; é fascinante e “fascizante”, “ideológica”, “opiácia” conforme dirão os nossos humores quando se tornam mais marxistas, mas ninguém lhe é indiferente.


Allan Sekula

Do lado do coleccionador, o consumidor preferencial do produto do mundo da arte, haverá quase sempre a confissão mais ou menos sincera do amor pelas grandes obras. Os críticos gerem a suas opções encravadas entre as prioridades editoriais e financeiras dos media groups onde estão inseridos e os seus próprios ideais estéticos e políticos (quando os há). Os curadores da mesma forma, gerem a sua visibilidade e carreira em permanente flirt com o poder contra ou a favor dos próprios ideais. Os Galeristas (exceptuando os que não dependem do dinheiro da galeria para a sobrevivência e “correm por gosto”, no fim dizem todos o mesmo - a sua casa é uma casa comercial. Por fim os artistas, tantos e em diversas situações financeiras e laborais, convivem, com todos estes factores, ora submissos, ora coniventes, ora rebeldes, ora aparentemente submissos, coniventes ora aparentemente rebeldes.

No mundo da arte, no lugar da produção de objectos passíveis de ser fruídos como objectos de arte, temos um núcleo íntimo de agentes e são estes fundamentalmente artistas, curadores e críticos. Exteriormente a este processo fabril temos as suas extensões educativas, as escolas de arte e os académicos; as suas extensões difusoras, galerias, feiras, revistas, jornais e livros; as suas extensões de legitimação, museus, bienais, colecções importantes sem esquecer por fim o seu destinatário moderno; o coleccionador privado e o público. É no núcleo interno produtivo que se concentra o potencial ideológico não apenas expresso em objectos, acções, eventos mas também em pensamento escrito. É nas relações destes produtos com a sociedade transmitida pelos enumerados factores externos que se pode com propriedade falar de estética e política. Como foi escrevendo Celant no manifesto de arquitectura radical; a relação com o encomendador da obra é já arquitectura. Assim sendo, afastando-nos das teorias institucionalistas que parecem servir perfeitamente o espírito neo-liberal, poderemos pensar que a poética é já existente no corpo do artista e produz-se a todas as suas relações possíveis; manifesta-se em cada acto de fruição, em todos os momentos de crise, de contingência, de confrontos ou uníssonos gerados pela acção conjunta dos seus intervenientes interiores.

Não queremos dizer com o acima exposto, que se equipara a função de um artista á de um crítico ou curador. É certo antes, que as três funções profissionais manobram cada uma numa especificidade própria para a criação do sentido ou do sensível à experiência. E os papéis misturam-se. Em meios alargados e complexos como os das grandes cidades tal situação torna-se natural. O importante parece-nos, é que em cada momento incida a maior acuidade crítica e o maior espírito de exigência possível ao mesmo tempo que o gesto prévio ao consciente se liberta para ser facto. Nenhuma função nos foi oferecida em avanço, por exclusividade e para sempre. Se as funções de artista, curador e crítico são distintas (e poderia associar muitas outras) tal não se aplica a um sujeito existente e tal não seria outro que não o sonho de patrões de um mundo disciplinar exigido pelo trabalho alienado. (continua...)

domingo, 29 de março de 2009

Heimo Zobernig



A exposição de Heimo Zobernig no CAM é uma exposição curiosa, uma espécie de “ensaio encenado”; com o que isso implica de (cerebrais) ligações com a história, teoria e discursos da arte. Concretamente, pensar o fazer artístico parece ser o que está em causa. Não sei se o desfecho desse pensar é optimista... irónico é, seguramente.
A primeira impressão da exposição foi de familiaridade; a anterior “Fundação” de Pedro Cabrita Reis é fortemente evocada pela disposição do espaço, pelo seu uso cénico. Essa evocação não é casual, mas isso não percebi logo.
Tive a sorte de apanhar uma visita guiada a meio, a qual acompanhei, tendo assim acesso a uma série de informações úteis – por exemplo, que a colecção de cadeiras dispostas em cima do estrado que ocupa uma parte da sala, são pintadas com uma tinta dourada utilizada para marcar pedras tumulares.
Várias cortinas Chroma Key (R, G e B) dividem diagonalmente o espaço do CAM, delimitando duas áreas; de um lado das cortinas estão obras das Colecções Gulbenkian e Tate St.Ives. Desse lado estão ainda 4 telas da autoria de Zobernig.
Do outro lado das cortinas estão as restantes obras do artista: pinturas, plintos vários, uns inacabados ou meio pintados; um deles é pintado com alcatrão e coberto de penas, sujeite a esse antigo castigo. Há vídeos - num o artista cambaleia desnorteado, noutro o artista compõe e recompõe, incansável, panos Chroma Key à volta do seu corpo nu. Há uma parede falsa, um espelho partido, as cadeiras douradas... na sua maioria, as obras são construídas com materiais pobres, e têm ar precário.
Das obras das duas colecções, as que estão expostas nos dois pisos, são apresentadas por ordem cronológica; as obras bidimensionais estão rigorosamente centradas e espaçadas. A leitura, por ordem crescente, faz-se da primeira sala à direita do piso inferior para a última sala à esquerda do piso superior.
A primeira obra é datada de 1900 (ou antes indica sec.XIX-XX, mas sendo que a primeira realmente datada é de 1909, podemos supor que a intenção dessa primeira é assinalar o ínicio do século), a última é de 1996 (uma pintura de Paula Rego).
À esquerda dessa tela de Paula Rego, há uma coluna (elemento arquitectónico do edifício); aí, perto dessa coluna, um pano de cortina Chroma Key acaba a sua travessia diagonal pela sala. No espaço triangular criado pela cortina e a coluna, meio escondida, está uma última obra da Colecção Gulbenkian, uma obra de Pedro Cabrita Reis, produzida para a exposição “Fundação” em 2006 (The White Room (about T.S.Eliot)).
A percepção dessa obra atinge; relações começam a parecer evidentes: a obra de Cabrita Reis é a única que de alguma forma partilha os dois lados da cortina.
Voltar a descer para a sala principal é perceber que essa tela paira, do alto do seu balcão, sobre a metade da exposição que está atrás (ou a frente) das cortinas - o lado do artista. Passa a ser impossível não sentir a sua presença vigilante, interagindo com o resto da exposição.
Homenagem ao artista Português? Ou à evidência de que essa exposição - “Fundação” - foi um ponto de charneira na história (de arte) do CAMJAP (pelo menos na história recente). Ou talvez “homenagem” não seja... Mas antes uma (redobrada) constatação da tremenda dificuldade de Criar? Tarefa tão mais dura quanto mais pesa o legado de um século de História da Arte, Moderna e não só.
É curioso voltar a olhar para as telas de Zobernig que estão do lado de cá (ou de lá) das cortinas; o lado da história. Uma é um pano Chroma Key vermelho esticado numa grade, pintado de branco, deixando apenas os bordos na cor original; Outra está simplesmente em branco, apenas pano e subcapa. Outra parece, em ponto grande, os trabalhos feitos nos tempos livres da escola, experiências com cola, brilhantes, bolinhas de esferovite, cascas de pevides, aparos de lápiz; por último uma tela grosseiramente pintada de verde.
Todas são pinturas falhadas, enquanto apenas pinturas.
Esta será a questão central deste trabalho - um artista que se debate com a Arte, questionando a dificuldade (ou talvez a utilidade) de criar algo que Permaneça?
Que permaneça como permanece a história da arte, como permanecem as pinturas, desenhos e esculturas das colecções.
É uma apresentação irónica - e inteligente - de um artista que olha a história e os seus mecanismos; o apagamento a que somos sujeitos e a vontade de o contrariar através de Obra.
Ganha outro sentido o ralo de Gober na primeira sala da exposição, essa mesma onde está um quadro intitulado “The Room in which Shakespeare was Born”.


PS. Curioso também é o confronto que se sente ao deixar a sala de exposições principal e entrar na sala de exposições temporárias onde estão expostas as magníficas encáusticas de Rui Vasconcelos.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Escritos de Artista (5)


Nedko Solakov

(continuação....) Chegamos então a lugar central deste ensaio, enunciada que está a responsabilidade dos intelectuais na manutenção da liberdade de espírito, condição essencial para a prossecução das respostas à questão que foi central no iluminismo; a felicidade terrena e universal. Tudo isto parecerá épico e fora do lugar a quem estiver à procura de material de reflexão sobre as artes, mas, na realidade, é este e a traços largos, o pano de fundo onde se joga toda a teleologia da produção artística. Um forte fundamento contra esta visão corresponde à defesa de uma posição de isolamento. Há sem dúvida o direito essencial de quem não deseja este confronto com a experiência crua do mundo, uma experiência realizada ao corpo descarnado que forçosamente leva à mortificação, à revolta e talvez à melancolia lutuosa. Há razões para a apologia de toda essa maioria que constrói uma redoma de conforto, um retiro quotidiano fruto do da convicção do direito adquirido ou talvez do assumir da impotência, da desistência pelo cansaço. Há o direito à sobrevivência, ao emprego e à submissão às leis do senso comum. Por fim há também a possibilidade moral de um retiro monástico do mundo turbulento para o lugar afastado do estúdio recluso, da obra fechada em si mesma, aberta apenas a uma estreita faixa de incentivos.

O problema está no lugar preciso em que a tomada de consciência nos impele à luta. Benjamin colocou nas suas “teses” o lugar exacto dessa responsabilização, não pelo futuro, mas pelas esperanças do passado. A nossa responsabilidade sustenta-se em todo o sofrimento que se calou na extinção dos séculos que nos precederam. Somos os herdeiros em quem os despojados de 1789, 1840, 1871 e 1917 lançaram o ardor, a capacidade de despoletar esse segundo messiânico por onde passa esse Angelus Novus, o anjo da história (Benjamin).

O que se passa no lugar específico das Artes no que diz respeito á contestação? É esta a questão fulcral. A primeira instância a investigar passa por saber que condição terá a liberdade, equacionada com a qualidade do que se exprime. Localizando esta questão no nosso país teremos então de nos interrogar sobre a qualidade dessa mesma liberdade no mundo especifico da arte portuguesa. Para as respostas possíveis temos de voltar ao modelo de análise das relações de produção aplicada agora ao subsistema artístico. Chegamos rapidamente à conclusão de que o modelo é perfeitamente adaptável isto, claro está, porque o subsistema do mundo da arte não é mais do que mais um dos subsistemas do grande sistema sociedade de consumo. Existem produtores, empresas e “operários”, consumidores de vário tipo (público e público-coleccionador), entidades de distribuição, creditação e legitimação (critica especializada), banca (as grandes instituições e o museu) e por fim o alto patrocínio do estado. Como em todos os subsistemas este tem fortes ligações ao sistema central; é também ele um sistema servomotor (Flusser).

O mundo empresarial, a banca e o estado acabam por participar como os lugares que confirmam e reinvestem internacionalmente os valores. Dois campos de valores concorrem nem sempre na mesma direcção; o primeiro, imediata e localmente determinante é o do mercado e do investimento financeiro - aqui a coisa funciona muito como no mercado de acções; o “jogo” é livre, emocional e muito pouco ligado á efectiva qualidade ou significado profundo do que se transacciona. A segunda instância de valoração é lenta, de contornos menos manipuláveis por um ou outro indivíduo. Trata-se da valoração histórica e da construção de mitologias ou visões comuns do passado. É esta a mais importante no nosso ponto de vista por corresponder a uma sedimentação largamente intersubjectiva e trans-épocal, ou seja, por corresponder a uma valoração resultante de uma conflitualidade historicizada, fruto desse mundo relacional das instâncias produtivas.

Cabe fazer aqui um parêntesis e sublinhar que é justamente do modelo analítico marxista das relações de produção e de todas as suas actualizações que Bourriaud e Gillick retiram as premissas da chamada Estética Relacional, no momento em que aplicam este modelo à interacção do mundo da arte com o mundo da relações humanas. Daqui sucede que, sendo o mundo das relações humanas exactamente o mesmo mundo onde se joga a conflitualidade das relações de produção e não se podendo conceber uma esfera privada inteiramente dissociada das consequências dessas relações, todas as obras de arte por inerência são, entendendo-as como produto e mercadoria, objectos que possuem um papel próprio e específico nessa relacionalidade observada do lado da estética. O que existe sim, é um tipo de produção artística que pretende levar em linha de conta, como objecto de representação, o mundo das relações humanas na sua materialidade e modo de transmissão e difusão. Toda a arte é então um produto relacional e é o seu modo preciso de relação intersubjectiva que, sendo sujeito a uma avaliação moral, se torna passível de ser avaliado politicamente.


Marcel van Eeden

Da observação do estatuto dos vários papeis dos intervenientes; artistas, coleccionadores, críticos, galeristas, curadores e outros, percebemos que a liberdade crítica não se pode conceber, tal como noutros sectores da sociedade, apartada dos papéis sob os quais cada um dos intervenientes joga. Em Portugal uma figura trans-funcional como por exemplo a do já citado Liam Gillick, ou como o protagonista do sonho de William Morris em News from Nowhere (aplicado justamente como crítica social ao lugar fixo do operário na cadeia de produção), é ainda difícil de se manifestar em plenitude porque justamente, entraria em conflito directo com as prerrogativas de cada um dos campos funcionais neste sistema de relações. É neste sentido que lemos a observação de Alexandre Pomar relativa ao “anonimato” ao momento do lançamento deste blogue, no momento em que coloquialmente se refere ao mundo da arte português como um “quintal armadilhado”.

A possibilidade singular de romper as cadeias de especialização da fábrica (o significado real e cru da expressão “industria cultural) e transgredir por várias actividades entra facilmente em colisão com os territórios tradicionais de cada um dos campos profissionais intervenientes no sistema. Normalmente num sistema estratificado, as diferenças encontram-se perfeitamente delimitadas ao nível dos vários estratos produtivos. É importante referir aqui, que, visto o sub-sistema de relações de produção do mundo das artes ser quase absolutamente solidário com o sistema económico dominante, é a presença, ora do capital político ora ainda mais importante, do capital financeiro, a criar a força deste ou daquele interveniente, tanto ao nível horizontal (dentro de cada área profissional) ou vertical (na estruturação hierárquica dos vários estratos profissionais entre si). No primeiro caso verifica-se essa hierarquização, por exemplo, na influência e preponderância de galerias com capitais e apoios importantes como parte da sua base de sustento ou de determinados curadores que trabalham para fundações ou para o estado sob nomeação política. No caso dos artistas, o facto de estarem associados a estes projectos mais fortes é sempre um indício da possibilidade de promoção do trabalho e logo, da aquisição do imediato sucesso ou seguindo o raciocínio de Benjamin, da formação da aura. No segundo caso, o vertical, a estratificação é imediatamente reconhecível a partir do acto elementar no qual um artista vai mostrar o seu portfólio a um galerista. Na maior parte dos casos os galeristas não têm um discurso crítico suficiente informado para avaliar com profundidade o que lhes é mostrado; no entanto o artista sujeita-se constantemente a ser tratado por vezes de forma humilhante. Obviamente que os papéis se podem inverter. Um artista muito conhecido pode jogar com o concurso ao seu trabalho de várias galerias. Este factor, do qual falámos aqui, prestigio ou aura, é um valor essencial e imaterial e que é literalmente “adquirido” no processo mercantil do mundo da arte. Tudo aqui se assemelha muito ao modelo das trocas agonísticas inter-tribais; o potlacht como descrito por Mauss ou Malinowski. O valor aurático, psicologicamente sensível, adquirido pela dissipação do capital em arte confere ao coleccionador legitimidade “mágica”, mítica e indestrutível, para uma afirmação sua de liderança social. (Continua...)

quinta-feira, 19 de março de 2009

























“APARELHOS BREVES”
de
RODRIGO TAVARELA PEIXOTO

Se entrarmos na Galeria Sopro até ao dia 4 de Abril deparamo-nos com um conjunto de fotografias formalmente muito coeso. São obras recentes mas cuja base advém de uma busca que tem já alguns anos e que me parece agora bastante apurada, embora longe de estar esgotada.
Rodrigo Peixoto consegue com este grupo de trabalho fazer uma coisa que me parece fascinante e que na minha opinião mexe com as fundações da própria Fotografia. E se é seu objectivo alcançar distinção nos seus saturados meandros penso estar num caminho bastante frutuoso.
As imagens apresentam-nos objectos ou conjuntos de objectos relativamente simples na sua aparência mas cujo objectivo se cobre de uma complexidade apenas ligeiramente desvendada pelos títulos. Estes aproximam-nos da possível função que forçamos acomodar a um complexo grosseiro de materiais e que nos faz querer vislumbrar o desencadear da acção que prometem. Mas não satisfazendo a sede de claridade, recobrem-se em última instância da mais profunda áurea nonsense.
São esculturas de função duvidosa ou até mesmo poética e são fotografadas de forma dramática evocando a pintura clássica. Até aqui tudo bem, fotos que evocam pintura ou, actualizando a questão, fotos que evocam fotografia.
Mas o verdadeiro cerne da questão debate-se noutra linha de pensamento, concentrando-me mais nas formas esculturais que desejo presenciar ao vivo, circular sobre as mesmas, mudar de perspectiva, pois é precisamente aqui que está o fascínio. O artista é fiel aos seus princípios e eu espectador sou totalmente privado da presença destes objectos e a sua volumetria está de facto restrita às duas dimensões do suporte final. Não existem como esculturas e nunca foram concebidas para tal. As formas fundem-se com o fundo negro e a encenação é perfeitamente finda no formato fotográfico.
E é por isto que me agradam. Se em tempos a fotografia, por falta de desígnio, se apropria dos trejeitos da pintura. Aqui apresenta-se-nos apropriando os enredos da escultura. É de facto um desafio respeitável manusear artisticamente um medium cujos princípios são totalmente técnicos e que depois de brincar aos filtros do Photoshop só nos sobra encarar o touro de frente.

domingo, 15 de março de 2009

João Ferro Martins

"20-2000Hz"
Espaço Zaum Rua da Academia de Ciências, nº 2E, Lisboa.
Até dia 13 de Março .
"Peinture sonore (rose)", 2009.



"Soundpiece#2", 2009.
"Soundpiece#3", 2009.

"Sistema" , 2009.


Quando entramos no difícil Espaço Zaum, somos imediatamente submersos pelo som que nos surge da sala à direita da entrada. O som lúdico de "Peinture sonore (rose)" e o complexo cluster que pretende traduzir o som da cor branco, em "Soundpiece#3" transporta-nos para um mundo próximo de "Alphaville - Une étrange aventure de Lemmy Caution" de Jean-Luc Godard. Um mundo que não é tanto visual , mas sim sonoro; Que se transfoma em imagem a partir dos pequenos apontamentos visíveis na sala, a saber: um conjunto de colunas de som pintadas de forma a evocar as pinturas mórficas de Robert Delaunay, um chapéu de fotografia negro com um cantante que imite um som concreto e absurdo, um conjunto de fotografias de uma mulher que tenta dizer-nos algo em cinco fotografias como que soletrando uma palavra.
Tudo isto remeteu-me para algo entre o film noir e o filme de ficção científica e em especial para aquela voz mecânica e aterradora de "Alphaville".
Depois lemos os títulos e voltamos a uma sala de exposição. Afinal a mulher está a tentar dizer-nos "Ruído" o que mantém a peça no seu estado enigmático mas segura-se na relação com um passado que me é próximo (que é o da história de arte, nomeadamente às prácticas transversais dos anos setenta).
Sigo para a sala seguinte e vejo pela primeira vez na entrada um desenho linear de um homem com uma massa informe que cobre a cabeça.
Na última sala encontro um conjunto de peças interligadas entre si. Um grande calhau com twiters ligados a um sistema de amplificação e um microfone com uma cadeira junto deste.
Esta peça é um convite para uma acção. O espectador é convidado a falar com um calhau. O que dizer? Sabemos à partida que será um acto falhado e podemos acabar por falar connosco próprios. Talvez esta seja a função deste prop, falar mas acima de tudo ouvir-nos a nós próprios.
A última peça da exposição (para mim a primeira na sua qualidade) é o vídeo intitulado "Sistema" no sentido de coisa ou entidade.
Este vídeo de cinco minutos é uma massa acinzentada e disforme, que na sua evolução formal produz de forma muito efectiva grotescos para uma experiência sublime.
"Sistema", fica no intervalo da produção ora conceptual ora absurda de João Ferro Martins, dando a ver sem que seja possível medir, mencionar, falar sobre; Antes, mantendo no corpo
uma experiência que é difícil de compreender, deixando-se territorializar pelos nossos medos e esperanças que se projectam numa massa informe em permanente movimento.

Hanne Darboven (1941-2009)

"I built up something by having disturbed something: destruction becomes construction. Action interrupts contemplation, as the means of accepting something among many given alternatives, for accepting nothing becomes chaos. A system became necessary: how else could I in a concentrated way find something of interest which lends itself to continuation? My systems are numerical concepts, which work in terms of progressions and/or reductions akin to musical themes with variations. In my work I try to expand and contract as far as possible between limits known and unknown. Generally, I couldn't talk about limits I know. I only can say at times I feel closer to them, particularly while doing or after having done some conceptual series.... The most simple means for setting down my ideas and conceptions, numbers and words, are paper and pencil. I like the least pretentious and most humble means, for my ideas depend on themselves and not upon material; it is the very nature of ideas to be non-materialistic. Many variations exist in my work. There is consistent flexibility and changeability, evidencing the relentless flux of events."

--Hanne Darboven, Hamburg, 1968, as quoted in "Artists on Their Art," Art International 12, no.4 (20 April 1968): 55.

Escritos de Artista (4)








Ibon Aramberri

À crise de valores sobrepõe-se agora uma crise económica e de emprego. Durante o tempo que vivi na Alemanha e particularmente, nos momentos em que percorria as ruas de Hildesheim, uma pequena cidade episcopal na Alemanha profunda, que em nada tem a ver com o cosmopolitismo de Berlim, ia-me perguntando, ou melhor, experimentando o meu imaginário em tentar perceber aqueles rostos carregados na fraca luz invernal a iluminarem-se na perseguição de bruxas e judeus. Não foi nada difícil. A tradição do direito germânico é a do direito privado. Foi desde a obscuridade dos tempos uma sociedade que dava mais valor às colheitas do que à vida. A propriedade, o ter como prioridade sobrepôs-se às tradições do direito público mediterrânico. Weber demonstrou-nos também como a ética do protestantismo foi crucial para o levantamento do interdito moral que o catolicismo colocava sobre a riqueza, ausência de culpabilidade essa que prepararia os espíritos do norte da Europa para o desenvolvimento e triunfo do capitalismo e do liberalismo. O resto já se sabe: o capitalismo foi o movimento revolucionário, no seu âmago económico e nas suas consequências socio-políticas, que mais profundamente transformou o planeta.

Esta introdução histórica serve apenas para sublinhar a desconfiança que sinto pela natureza das massas embrutecidas e alienadas dos valores humanos mais profundos. O Humanismo está em crise. Eu sei. Têm-mo dito vezes sem conta. Vive-se num conforto estranho e instável, numa espécie de fim de festa como sucedeu na Viena de Zweig. Em 1929, hoje e no futuro, a classe média, alemã, francesa ou portuguesa, tolhida pela crise e pelo pânico só precisa de um líder demagogo para se pôr por aí fora a linchar tudo o que entender como ameaçador ou diferente. Exagero talvez.

A memória das infâmias, na história universal, ou a memória de catástrofes parece nada contribuir para o evitar das mesmas. Esta distância e em simultâneo, familiaridade televisiva, que temos de todos esses massacres levaram a uma anestesia geral sob a forma de um recuo do mundo real, uma incapacidade de choque levando à desistência do agir. Que tal suceda com as classes médias cumuladas de pequenos nadas no seu quotidiano, tal não nos espanta; mas como poderá tal coisa suceder com os intelectuais? Não será estranho a ninguém que um inconsciente tudo espezinhe em nome daquilo que não é mais do que uma perspectiva apertada; mas o que dizer sobre quem tem por formação acesso a todas as operações necessárias para a obtenção e divulgação dessa consciência colectiva necessária? O que dizer do abandono da luta daqueles cuja vida e pensamento gira em torno daquilo a que se chama “cultura”?

Artur Zmijewski


Sabemos o que se cria quando se apaga a memória a alguém retirando-se a essa pessoa toda e qualquer ferramenta crítica; obtém-se um servo. E era esta justamente a base do conceito marxista de alienação; É este conceito amplamente actual perante o embrutecimento já não pela forma do trabalho mas pela forma de consumo. Aliás, a actualização foi amplamente realizada por Debord em A Sociedade do Espectáculo. O fantasma do horror inimaginável não se ultrapassou e a sua evocação está e esteve sempre ao alcance do intelecto. Transmitir para um lugar que possibilite o agir, as visões do horror é uma responsabilidade ética do poder pensar. Rememorar esse terror é uma das mais graves e necessárias acções da poética politizada.

Mas o sonho de que a educação generalizada poderia trazer consigo uma economia planetária justa parece falhar nas bases. A escola submeteu-se aos interesses sistémicos da sociedade de consumo. Acreditámos que a educação seria o anfiteatro político por excelência, o lugar da experimentação em democracia de coisas tão opostas como a aprendizagem de modelos adquiridos e a liberdade crítica para os ultrapassar, viver as hierarquias para as subverter na livre experimentação de símbolos e linguagem, simular novos modelos de coexistência e produção de efectividade. O que sucede é o contrário: os professores mantêm uma autoridade baseada em leis corporativistas onde o entusiasmo juvenil da experiência e da partilha descobre bem cedo o seu ocaso para se transformar em desilusão, desistência ou em oportunismo. Habitei intensamente a vida durante dez anos de uma escola superior de Arte e Design. Muitos dos que viveram ao meu lado partilham (secretamente) esta mesma desilusão - artistas e intelectuais, com méritos nas suas áreas de trabalho, pura e simplesmente comportam-se como mercenários perante os piores exemplos de usurpação tecnocrata e merceeira daquilo que deveria ser o ensino e transmissão de ideias e valores.

O permanente auto-questionamento ético de uma escola é perpetuamente silenciado pelas suas estruturas de poder (pensar cansa!). O resultado da traição dos intelectuais na escola de artes é a automação do processo de transmissão de conhecimentos em função da criação de “artistas-funcionários” submissos ao sistema de mercado. Mas este é um dolo generalizado nas universidades em geral e por arrastamento levado à totalidade do tecido social.

O apelo vai sendo feito à insurreição do pensamento, a um reatear da chama da liberdade crítica. Aos artistas, ao poeta, ao pensamento crepuscular, ao que ultima o seu desejo em poder o intangível cabe a grande parte da luta naquilo que para além de guerra, é, só e apenas, um incomensurável acto de amor, sem lugar nem tempo fixo.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Escritos de Artista (3)





















Ernest Griset

(Continuação) A existência de uma classe “intelectual” ou “criativa” como defende Richard Florida, com modos de consumo próprios, nómada, de emprego precário tornou-se possível exactamente pelos mesmos eventos e canais que tornam hoje omnipresente ao nível global, a prática neo-liberal. São estes a queda do bloco de leste, a expansão da banda larga, aumento de poder de organizações universais como o Fórum Económico Mundial e etc. Se observarmos o caso particular europeu verificamos que a expansão do mercado único, a introdução do Euro, a possibilidade dos voos low-cost, possibilitaram a mobilidade de centenas de milhares de pessoas pelo espaço europeu em resposta a empregos ocasionais. No mesmo processo, a divisão clássica das ocupações e das fronteiras profissionais entrou em crise. A criatividade, para o melhor mas também para o pior, é hoje como nunca foi um factor determinante na avaliação de qualquer candidato a um emprego em quase todas as áreas.

Nunca como hoje, houve tanto interesse à volta da arquitectura e do design, das artes contemporâneas, das artes do espectáculo. As artes, o alternativo e o mainstream, na sua dialéctica de sucessões, constituem-se hoje como uma mais valia na imagem global da cidade, o chamado “efeito Guggenheim” (Harvey) e um instrumento importantíssimo para a manipulação política da opinião pública. Com a preponderância absoluta da classe média ou sociedade de consumo, o modo de vida low wage mas elitista desta chamada classe criativa constitui um apelo director para as tendências de consumo e factor determinante da moda. Ou seja; esta classe “jovem” criativa com todas as suas ramificações entre os media, management, universidade, vida nocturna, queer, politica e claro, mundos das artes, drogas, design e arquitectura, preenche hoje uma tarefa ainda mais colaborante num sistema de soberania global do que acontecia com a velha classe intelectual universitária na chamada era do liberalismo ordenado. Esta atitude acontece devido em grande parte à crise das meta-narrativas modernas e à resultante desorientação ideológica da pós-modernidade. Sem grandes e histéricas conduções de massa, sem mitos ao alcance da retórica criativa, sem o poderoso modelo marxista e derivações do mesmo, o discurso ideológico desta classe criativa enfraqueceu, tornou-se hedonista ou dividiu-se em especializações próprias.

A arte e a vida cultural começaram, com o ascender da globalização e rapidamente, a constituir mais-valias económicas capitais na promoção de mercados. Neste movimento, que suscitou na era Reagan, fortíssimo apoio e financiamento, sem qualquer arma conceptual de oposição, os novos intelectuais foram se rendendo, não apenas ao mercado, mas ao uso dos seus recursos expressivos como factores legitimadores da política que é hoje de facto, globalmente dominada pela doutrina neo-liberal.

Na solidão da lucidez individual não existe nenhum império benigno e tudo, desde o que comemos até ao modo como nos relacionamos, está contaminado por mentiras concatenadas em mais mentiras para a construção da nossa frágil boa-consciencia. Observadores, alguns economistas, intelectuais e mesmo alguns dirigentes políticos sentem o mal-estar de não se sentir a possibilidade de defesa, a agregação das vozes contra a união dos factos.

As próximas décadas trarão uma catástrofe ambiental inqualificável para Africa, calamidade essa que continua a ser “preparada” na massividade consumista das economias desenvolvidas, essas as mesmas economias que, após terem colonizado, exploram agora os mercados locais, as suas matérias primas, secam as águas, secam o pensamento e a memória, abatem a possibilidade do originário e da diferença para lá de valores de marca comercial.

John Tenniel

A classe criativa, filha de uma classe média que não é mais do que servo-motora (controlada, portanto) do dispositivo, esse mesmo que, na sua figuração mais aterradora e totalitária, Foucault chamou biopoder, replica os vícios e a má consciência da progenitora. Edward Said demonstrou-nos já que qualquer voz emanada do nosso lado da barricada mediterrânica em direcção a esse estranho Oriente ou a essa África das oportunidades, perdeu a legitimidade, não pelo passado mas pelo presente arengar que continua. O sujeito europeu ou norte-americano (caucasiano?) do discurso nunca esteve tão carregado de culpa no acto de enunciar como hoje. Perante a consciência histórica ocidental, perante a perda da inocência em face ao outro, mantém-se um mercado sustentador das formas de arruinar ocidentais como a matriz das relações sempre desiguais de ambos os lados do globo. O pragmatismo da exploração é então alvo de um processo de ocultação sob o discurso do multiculturalismo. Esta falta, o engajamento intelectual em discursos de diversão, cai igualmente sobre os “criadores”. A verdade é que a actualidade crítica da classe criativa sobre as instituições não se sente ou não é efectiva. Frequentemente comprometidos com o magma do mercado e por vezes directamente conotados com os seus porta-vozes políticos, os criativos perderam independência de manobra para a livre expressão da crítica ao sistema. Ao fundirem o discurso político como o artístico é sempre no segundo modo que este é recebido. Por outro lado e apesar de culpados, o potencial desta massa nómada, irrequieta, atenta está ligada à mais humana das faculdades; o pensamento e a sua expressão livre. A poesia exalta o poder pensar, o poder viral e transgressivo sobre todos os discursos instituídos.

A classe intelectual e criativa, de formação maioritariamente progressista, cai, entre muitas outras, em duas faltas recorrentes. Em primeiro lugar é possuída por uma incapacidade ou receio de criticar as instâncias de mecenato sejam estas estatais ou privadas. Esta impotência crítica agrava-se pela conotação que em geral se faz do discurso crítico realizado por um artista, com o interpretável do seu trabalho poético. Esta confusão é desnecessária porque se pode efectivamente separar os dois discursos. A validação de um discurso crítico de um artista está então associada à legitimação não apenas da obra desse artista como da conexão reconhecida entre esta e o dito discurso. A outra falha recorrente, comum aos que pertencem aquilo a que os franceses chamam “esquerda caviar” é a auto-exclusão de qualquer responsabilidade política sobre o sistema simplesmente pela solidariedade abstracta com as vítimas e que tem o seu contra-plano na figuração de símbolos de “iniquidade” contra os quais se destila todo e qualquer discurso crítico (Bush, o Vaticano, o fundamentalismo, Monsanto, McDonalds, Microsoft e Cocacola são os exemplos básicos e comuns desta diabolização) sendo que quase todas as vítimas são vítimas da vilania colectiva da mesmíssima classe média de onde provêem.

James Gillray

A nossa ideia é que, paradoxalmente, no admirável mundo do liberalismo e da plena e literata democracia, critica-se menos e com inferior profundidade. Não podemos deixar de associar esta observação à crítica de Lecourt ao pensamento francês pós-68; o estabelecimento e a entronização (justa) de grandes referências intelectuais como especialistas ou profissionais da crítica, retirou força a uma possibilidade de insurreição do pensamento em bruto e em massa. O facto da percentagem cada vez maior de população de formação universitária não utilizar o seu potencial insurreccional crítico e político no quotidiano torna-se trágico à vista da progressiva desistência dos próprios pensadores profissionais, dos sonhos que tiveram em A.

De todas as categorias profissionais são os artistas, naturalmente, a estar aptos para dar saltos de tigre, viver à custa do poder, com poder, pelo poder e contra o poder, fieis soldados e abomináveis traidores e assassinos, numa existência desequilibrada em mil corpos, pela acção, pensamento, poética, impostura.

E não dançar esta dança macabra com quem nos determina a vida é miséria pior do que morrer. (continua....)


sexta-feira, 6 de março de 2009

Wallace Berman (Verifax Collages)






Descobri-o na discreta galeria Frank Elbaz (Paris). Wallace Berman, nascido a 1926 e de ascendência russo-judaica em Staten Island foi viver para Los Angeles aos nove anos, onde, no envolvimento que foi tendo com o Jazz, substâncias psico-cinéticas, Dada, desporto e esoterismo (particularmente um interesse pela Cabala) desenvolveu também as suas pulsões poéticas. Assim, Berman e bem cedo, tornar-se-ia numa figura clássica do underground da Costa Oeste. A principio aluno de uma escola de artes, rapidamente incompatibilizou-se com a metodologia académica e escolar. Seguindo então no seu percurso próprio, empregou-se e o trabalho que obteve numa fábrica de mobiliário permitiu-lhe não apenas tornar-se autónomo como desenvolver o gosto pela assemblage, o modo de trabalho que melhor caracterizou a sua variada produção. De interesses múltiplos Berman viveu imerso em poesia e criou à sua volta um círculo criativo tornando-se numa das personagens geradoras do movimento beat. "Besides a collagist, painter, photographer and poet; his immersion in art was complete. He not only made it but also inspired others to make it, sparking hidden aptitude in startling places. After meeting him, drifters, movie stars, ex-marines and petty criminals found themselves starting to paint and write."(1) Segundo Dennis Hopper "He affected and influencied seriously involved in the arts in Los Angeles in the 50's. If there was a guru, he was it - the high priest, the holy man, the rabbi."(2). Momento fundador para a sua influência foi a criação da revista Semina (ver imagem), que enviava por correio (foi um pioneiro da mail-art); "The magazine, its pages randomly compiled, mixed Berman heroes like Antonin Artaud and Jean Cocteau with established American poets like Robert Duncan and Allen Ginsberg, then added a slew of younger writers and artists — Philip Lamantia, Jack Anderson, Patricia Jordan, Kirby Doyle, Bob Kaufman, Aya Tarlow, Ruth Weiss, Michael McClure, the great gay poet John Wieners — all barely out of the starting gate. Sent, copy by copy, through the mail, Semina defined a distinctively trippy, sardonic West Coast surrealism. New York had hard, cold Pop; the West Coast had a woozy Peyote-Funk that prefigured the hippie era." (3) Expôs pela primeira vez em 1957 na galeria Ferus. Nessa ocasião chegou mesmo a ser preso por mostrar imagens ofensivas ao decoro. Dedicou-se também ao cinema; um único filme "Aleph" (nome dado posteriormente à sua morte pelo filho) realizado, que ia sendo expandido e que nunca quis mostrar a grandes audiências. Este filme, um mosaico quase abstracto de sobreposições texturadas, impressões fugazes a ritmo alucinante, ilustra muito bem a inclinação de Berman para o universo experimental da livre associação de imagens. Um lado menos imediato e construido da sua obra, são justamente estas colagens, que se tornaram na sua obra mais significativa e madura, o seu principal veículo poético desde 1964 até ao acidente mortal que o matou em 1976. "After World War II, 3M and Eastman Kodak introduced the Thermo-Fax and VERIFAX copiers into the workplace. The copies were of poor quality and continued to darken long after they had been pulled from the machine. Although the office models were relatively inexpensive and easy to use, their special paper eventually cost users a fortune."(4) Wallace Berman via na palavra Verifax qualquer coisa próxima de "true facts", uma associação simbólica que lhe abria lugar a uma asserção de realidade do imaginário. No aspecto mais prático, este método rudimentar de fotocópia permitiu-lhe usar mediuns expressivos que desde sempre lhe foram caros, a fotografia, as artes gráficas e claro está, a colagem. Como "suporte" ou "moldura" utilizou constantemente a fotografia de um pequeno transistor retirado de uma página publicitária. Retirando-lhe o rectángulo do altifalante substituia-o então com as imagens que ia descobrindo. Berman experimentou todas as possibilidades deste dispositivo a fundo. Através dos acidentes que criava com as dosagens de revelador e fixador, dos vários tons e misturas de cor que obtinha, nunca obtinha cópias. Depois compunha as peças, recortando os "originais" que obtinha, realizando assim as imagens finais sob a forma de séries individuais. Foi com as colagens Verifax, a sua obra derradeira, que Berman encontrou por fim, em método, ritmo e forma de disseminação, o meio perfeito de realização de um reencontro das suas origens culturais, o espirito experimental e libertário californiano e por fim o lado mais oculto e profundo das deambulações espirituais nas quais habitou.

(1) e (3) A Return Trip to a Faraway Place Called Underground - NYT 26/Jan/2006
(2) Sophie Dannenmüller (Press Release-Galerie Frank Elbaz)
(4) www.smithsonianeducation.org/scitech/carbons/copiers.html

quarta-feira, 4 de março de 2009

Escritos de Artista (2)



Anatoly Osmolovsky Bread (2006)


(continuação) Numa conversa na recente exposição Lá Fora, na Central Tejo, ao falar com um profissional da crítica de Arte que tenho por amigo, falou-me de um certo blogue anónimo que andava por aí a circular, que ainda não tinha lido, mas que desde logo condenava pelo covarde anonimato de falar dissimulado sobre a obra de quem assina. Disse-lhe imediatamente que era e sou eu (Gonçalo Pena) um dos “cabecilhas” de tal acto de covardia (não gostei de ouvir o reparo e não seria capaz de manter o silêncio). Da surpresa dele nasceu uma conversa onde fomos pondo sobre a mesa questões sobre o anonimato neste lugar específico. É dessa conversa e de conversas posteriores com outras pessoas que nasce este texto.

Esta discussão visa esclarecer as razões mais profundas para a existência de um espaço de crítica para “artistas” e simultaneamente tentar obter dados que permitam avaliar as condições de possibilidade de existência dessa crítica. A questão do anonimato, usual pelo uso de pseudónimos nos mails, no Messenger etc., a bem ou a mal, acabou apenas por ser o detonador destas questões.

Observando o objecto da crítica de arte, ou seja, aquilo que ordinariamente chamamos “mundo da arte” e ao pretender avaliar os regimes de existência desta crítica temos forçosamente de adquirir modelos de análise noutros campos. Esta transferência de âmbito, do mundo artístico para a sociedade em geral, justifica-se pelo facto de qualquer subsistema social replicar a anatomia estrutural do sistema “parental” de onde é originado. O mundo da arte tal como o conhecemos é um fruto necessário das contradições inerentes ao mundo moderno. Obviamente nada disto é novo e pelo contrário, tem vindo a constituir-se como a temática dominante para os discursos politicamente motivados por artistas e curadores (Documenta XII) à procura de objecto relevante numa paisagem caótica de ruínas utópicas e emergências locais. Mas se tal assunto não é novo, não deixa de ser actual e por temos de reavaliar permanentemente os utensílios de análise, será impossível não passarmos de novo por uma revisão do conceito marxista das relações de produção.

A herança marxista é ambivalente à luz da actualidade. Se por um lado faz parte, como símbolo ou discurso científico ultrapassado, consoante a posição política do observador, dessa textura épocal em descalabro (a modernidade), este mesmo marxismo, já não como ciência mas como ideologia (Ricoeur) é por outro lado reavaliada como uma inesgotável fonte de metodologia de combate. Geertz na antropologia recuperou contra as pretensões modernas o valor ideológico como edificador de situações locais de emancipação. O modo como nos podemos valer de discursos não científicos como alavancas válidas para questionar a realidade é um factor libertador para a intervenção popular no seio dos debates especializados. A ideologia, ou o conjunto das coisas que se vão dizendo sobre grandes temas, com mais ou menos “correcção” constituem uma base legitima de questionamento e participação de todos no cenário da excessiva especialização e perda de controlo sobre a actualidade. Nesta perspectiva da recobro da legitimidade operativa do ideológico, o próprio marxismo torna-se então recuperável em alguns, muitos dos seus aspectos como um gerador dessa vontade actualizada da praxis. Embora tenham, desde o século XIX, mudado os termos clássicos da arena da luta de classes (burguesia e classe operária), o instrumento analítico das relações de produção mantém-se então actual no quatro presente de desenvolvimento e crises do capitalismo.

A classe operária transformou-se ou cedeu o seu papel na dramaturgia marxista de “classe do destino” a novos actores devido ás várias transformações operadas na estrutura produtiva.



Martha Rosler


O mundo industrializado ou pós-industrializado mantém-se, porém, central na definição dos modos de vida determinantes e da criação de sistemas que engendram por si outros subsistemas num efeito de transmissão por vagas. A proeminência da China e logo a seguir da Índia, como novas superpotências económicas e novos super-mercados, por si, pouco ou nada importa de verdadeiramente novo às estruturas produtivas da sociedade; foi e continuará a ser sobretudo a evolução tecnológica a verdadeira alavanca revolucionária na criação das novas classes produtivas e por consequência das novas relações daí engendradas. Se nos facultam um parêntesis então daqui surge que o designer é um ideólogo da tecnologia. Seria ele o responsável por transformar numa arena de combate social o interface, o lugar ideológico onde o utilizador ou consumidor é hoje orientado, e não teria de o ser, pela tecnocracia.

A classe dominante industrial, comerciante ou financeira vive uma relação cada vez mais intrincada com o enorme universo assalariado urbano. A recente crise demonstra bem a importância do ânimo desta classe média, que, ao perder a confiança faz soçobrar todo o sistema. Todo o mercado e as suas agências se orientam para a satisfação desta enormíssima fatia da população ocidental. Mais do que produtiva, esta classe é instrumental no modo como consome; é a já velha lengalenga baudrillardiana sobre a sociedade de consumo. A grande urgência hoje, é contrabalançar os efeitos planetários que virão dos biliões de novos consumidores das sociedades chinesas e indianas. Por baixo de toda esta gigantesca e pesada classe média vive outra, a miserável. Esta veio a substituir a do lumpenproletariat (proletários miseráveis) no sistema classista de Marx. São desempregados, imigrantes precários, indesejáveis, populações da africa sub-sahariana, os tais despojados em luta de que fala Negri e afinal o verdadeiro sujeito central da dramaturgia do pensamento pós-colonial.

São os modos de produção a determinar não apenas as classes mas fundamentalmente as suas relações. Marx não poderia prever em pleno século XIX que o modo de produção sobre o qual hoje incidiria a sua analítica do capital seria o complexo gerado pela autonomização e desenvolvimento da tecnologia (há quem defenda que se constitui como uma nova forma de existência “biológica” autónoma tanto da natureza como da cultura) e o consumo motivado na exploração do desejo das classes médias. As relações de classe manifestam-se complexamente neste cenário, aquilo a que frequentemente chamamos sociedade pós-industrial ou simplesmente sistema, efectividade e actualidade. (continua...)

domingo, 1 de março de 2009

O Inferno das Pizz



















Barnett Newman
"Selected writings and interviews"
Edited by John P. O'Neill
University of California press, Berkeley. LA.  1992




















Jean François Lyotard
"O inumano" - consideraçõe sobre o tempo
Trad. Ana Cristina Seabra e Elisabete Alexandre, Ed. Estampa, Lisboa. 1997



















Barnett Newman
"Eve", 1950
Óleo sobre tela. 238.8 x 172.1 cm
Colecção da Tate, Londres.
 











Vista da exposição "Inferno: apareceu em Rio Tinto" de Pizz buin. 
Rock gallery, rua da Boavista nº 84. Lisboa, até 21 de Março.


Na Rock gallery as Pizz Buin apresentam um conjunto de torradas emolduradas. 
Estas torradas queimadas têm como títulos, títulos de pinturas de carácter religioso.
Ouvi falar que, ao mesmo tempo no Espaço Avenida, estão expostas um conjunto de torradas queimadas desta feita com a imagem da Nossa Senhora . 
A diferença entre ambas as torradas não está no motivo mas na forma. 
Enquanto uma das propostas pega literalmente num facto que mereceu a atenção dos media (a aparição da Nossa Senhora numa torrada) a proposta das Pizz Buin desvia-se da mera transferência do quotidiano para  a criação de discurso em torno da representação e da representação negativa.
As torradas queimadas são a negação do título. Para ver algo, Cristo descendo a cruz  ou A aparição seria de facto necessário acreditar; Aliás estar iludido, querer ver onde nada está.
Esta impossibilidade que as Pizz Buin levantam remete  para a obra de Barnett Newman e a impossibilidade de representação que exponenciou nos anos 50. 
Após o Holocausto, não era possível fazerem-se retratos, pintar naturezas mortas ou belas paisagens. Não era sequer possível acreditar no humano como construtor racional de um mundo melhor a vir. 
A obra de Barnett Newman, figura essencial da Arte americana do Pós-Guerra foi, segundo J. François Lyotard, o inventor do tempo Pós-Moderno. Nas suas obras como "The sublime is Now" (traduzido: O Sublime é agora.) temos um campo de côr demarcado ou ampliado por duas linhas verticais (zips).  O agora é essa demonstração de um tempo perdido, e a intensificação da experiência o sublime. Neste contexto, J. François Lyotard vê as pinturas como "Eve", na sua impossibilidade de representação como representação negativa. Esta fórmula ou condição tem repercussões na forma como tomamos o tempo. Um tempo em perda que resgata-nos para um modo ou tempo lento; Que tenta, sem o conseguir, andar para tràs. É nesta forma de desaceleração que eu julgo que alguns artistas conseguem produzir um trabalho verdadeiramente político. 
Em"Pintura e representação política" in "O inumano" Lyotard escreve-nos:"Não foi só a fotografia que tornou impossível a profissão de pintar. Dir-se-ia o mesmo dizendo que a obra de Mallarmé ou a de James Joyce rispostam aos progressos do jornalismo. A "impossibilidade" vem do mundo tecno-científico do capitalismo industrial e Pós industrial. Este mundo precisa da fotografia e quase nada da pintura, do mesmo modo que precisa mais do jornalismo do que da literatura. Mas sobretudo ele não é possível senão com a supressão das profissões "nobres"que pertencem a outro mundo, e com a supressão desse mesmo mundo."
De origem provavelmente diversa (visto serem um grupo de quatro pessoas) as Pizz Buin  levantam uma questão verdadeiramente importante para o meio em que nos inserimos mas com a tónica do riso que nos liberta do meio onde vivemos, demasiado pesado,  e sempre na expectativa, sem coragem de afirmar o que quer que seja.  
Esta exposição consegue colocar todos os espectadores a passar mais algum tempo entre o título e uma mancha negra  que aconteceu  numa fatia de pão de forma, que também é uma pintura negra, de carácter abstracto e informal.
O teor conceptual desta exposição vem da nomeação de uma obra e do intervalo entre esta e a mancha negra.  
A instalação  de carácter museológico, sendo o veículo ideal, caí porém no lugar comum  da utilização da retórica museológica sem adicionar nada a esta temática (1) antes servindo-se dela, por uma boa causa.


(1) "The museum as muse" foi uma exposição feita em 1999 no MOMA de Nova Iorque que  toma como ponto de partida a reflexão sobre o espaço museológico feita pelos artistas: a exposição de Surrealismo comissariada por Duchamp, o quarto do abstraccionismo de Lissitzsky , o Musée des aigles de  Marcel Broadthaers, o Brooklin Museum de Joseph Kossuth entre tantos outros.