sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Hipnotismo e acção

Algumas das estimulantes (1) exposições realizadas este ano no nosso país por artistas internacionais passaram ao lado da crítica. O país fechado sobre si mesmo, sobre a ideia que somos melhores que os outros, rejeita trazer este conjunto de exposições para discussão. A crítica está demasiado fragilizada (ou será desinteressada?) pela coexistência com os outros agentes culturais num meio pequeno, não fazendo o seu trabalho: Perceber o fluxo de acontecimentos que acontecem diante de si! E nesse sentido, dar eco à apresentação de uma obra ou autor que tem vindo a ganhar interesse internacional ou que o meio toma como importante, estabelecer pontes de entendimento entre estas práticas e aquilo que fazemos, recebemos, compramos ou usufruímos de forma gratuita. Afinal o que rejeitamos ou adquirimos como mais valia para a nossa cena artística.
É nesse sentido que tento organizar um conjunto de ideias em torno da belíssima exposição de Matt Mullican na Galeria Cristina Guerra, mais uma vez, como artista, na minha relação directa com a obra, sem a dependência de leitura prévia sobre o autor.
Foi antes de mais, uma exposição generosa, com as paredes cobertas de trabalhos mostrando uma certa multiplicidade da sua obra que a meu ver é mais formal (a multiplicidade!), pelos diversos meios apresentados, que conceptual. Essa multiplicidade de meios estava agregada por um conjunto de muros policromáticos que agarravam todo o espaço expositivo, seccionando e ordenando as diferentes partes.
O meu entusiasmo pelos muros policromáticos tem a haver com uma certa perversão na utilidade dos planos monocromáticos, e ao mesmo tempo na capacidade de condensação do sentido, tornando-se força motriz para o contacto com o outro, com a outra entidade.
A menção feita à abundância de trabalho serve também para pensar no trabalho de Mullican também como trabalho pulsional, de carácter dionisíaco, feito por uma força motriz interior, feito no sentido da revelação, de um Eu/Autor, elástico, capaz de crescer, com os acontecimentos que acontecem diante de si - as suas obras.
E é neste sentido que o meu interesse maior pela obra de Mullican está nas acções que tem vindo a desenvolver hipnotizado.
Vi pela primeira vez uma das suas performances feita na Tate Modern e aquilo que eu senti na altura é que a performance renasce ali, ganha de novo aura, torna-se novamente evento e não há fotografias que a possam substituir.
Quando Matt Mullican entra no espaço designado para a performance , ele está hipnotizado.
O que eu fui levado a pensar, primeiro, foi que o autor está lá inconsciente e que nós somos os primeiros a estar em contacto com a sua obra. Aquilo que ele fizer será obrigatoriamente obra a partir do momento em que foi tomado como tal pelos espectadores e que é o autor que terá de incorporar este acto a posteriori quando visualizar a gravação em vídeo.
Mas este estado inconsciente é um preconceito em relação ao estado hipnótico. Matt Mullican está de facto "acordado", num estado de concentração, de muita sugestibilidade sensível. Está segundo os teóricos num estado de relaxamento físico, com uma capacidade de concentração mental, de abstracção. O que me pareceu foi que Mullican perde a "relação com a sua periferia" - os espectadores não estão lá. Está ele consigo mesmo, numa rara possibilidade de aceder aos segredos , à força produtiva de um autor, pois ele não está em reacção para com um público: A força de um corpo expande-se sobre paredes largas , desenhando não com o saber das mãos (consciente) mas com o corpo, estabelecendo uma ponte mágica com o legado de Jackson Pollock.
Pollock contribuiu definitivamente para o desenvolvimento da pintura , procurando entender aquilo que os grandes mestres Europeus diziam quando chegavam Aos Estados Unidos fugindo da Guerra: "A grande força da arte é o inconsciente.".
Mas a sua contribuição acaba por ter eco também no surgimento da acção e da performance. É Allan Kaprow que define a acção do pintor gestual abstracto como ritual criativo, mãe da acção performática.
Por outro lado temos os pequenos gestos inscritos, desenhos na parede, folhas de jornal amachucadas, impulsos tímicos que em conjunto com as palavras ditas por vezes a duas vozes colocam à tona uma arte que nasce de uma falha, de uma décalage entre algo que sabemos e outra que não conseguimos organizar, que continua a escapar-nos. O acesso quase mágico ao ritual de passagem de Matt Mullican deixa-nos outra vez no mesmo lugar como que repondo a sua relação com o mundo sem mediação, logo sem mentiras. Reescrevendo Sérgio Solmi: é apenas na mentira que o homem consegue exprimir a sua vontade. A verdade é transparente.

Vista da exposição de Matt Mullican na galeria Cristina Guerra.




















































"Hypnotised woman in red room" de Sigurdur Gudmundson. Galeria van Gelder - Amsterdão.
Vista da exposição de Sigurdur Gudmundsson na Galeria van Gelder - Amsterdão.

Um ponte enriquecedora de um autor que julgo nunca ter exposto em Portugal é a exposição que Sigdur Gudmundsson realizou, em Maio de 2009, na galeria van Gelder em Amesterdão. Gudmunsson apresentou um conjunto de novas peças realizadas entre as suas duas residências, China e Holanda. Ao centro da galeria um conjunto de peças escultóricas de carácter poético, dispostas numa estrutura de madeira, é velada por uma cortina translúcida deixando ver as peças mas ao mesmo tempo estimular a imaginação dos visitantes ou ate a sua condição de voyeur. Nas paredes Gudmundsson expõe as suas últimas séries fotográficas que têm dividido aqueles que tem seguido mais atentamente a sua obra. O conjunto de objectos estranhos e heterogéneos, com qualidades poéticas, políticas e até espirituais parece ser consonante com a sua sólida carreira de artista desde os anos 70 e este conjunto de fotografias de carácter panfletário/conceptual muito em voga nos anos 90 parece ser um claro corte com o passado.
Gudmundsson aparece hipnotizado na inauguração e estabelece diálogo com o seu galerista.
Mais uma vez sem rede, o autor hipnotizado desta vez fala sobre a obra realizada o que em relação a Mullican cria a dicotomia apresentação/representação. Gudmundsson fala sobre a sua obra sempre de modo formal, falando da obra de um outro. Aquilo que lhe interessa é aquilo que ele consegue apreender esteticamente recusando-se a falar sobre possíveis conceitos que jazem nos seus trabalhos sem esta primeira relação com a obra num pleno exercício filosófico.


(1) Por estimulante quero dizer exposições que despertem ou excitem . No meu caso, as exposições que me estimulam são aquelas que são mais difíceis de compreender, que utilizam um outro jogo de valores e que têm algo que eu não consigo organizar. Como exemplos maiores deste estímulo as exposições de JCJ Vanderheyden na Culturgest, de Heimo Zoebernig no CAM e de John Baldessari na galeria Cristina Guerra.
No primeiro caso, aliberdade de Vanderheyden e o erotismo do seu pensamento, sempre à procura de um novo na sua obra, potenciando as possibilidades da pintura merecia discusssão. Em Heimo Zoebernig seria necessária uma transvaluação para que eu o compreendesse. As obras acontecem sempre de forma crítica, através de um desenvolvimento formal que, como se sabe carrega consigo um pensamento próprio. Foi um verdadeiro ovni em Lisboa mas houve quem fechasse os olhos. Por último, as pinturas (?) de Baldessari são a passagem para o lado de lá. Ácidas quanto baste para poder levantar algumas questões sobre psicadelismo e conceptualismo!

domingo, 22 de novembro de 2009

Anos 70

Não me sinto intitulado para reflectir sobre os anos 70 em exposição no CAM da Fundação Calouste Gulbenkian. Não me cabe a mim re-territorializar este período do ponto de vista crítico. Mas não posso deixar de dizer que como em todo o mundo, onde os museus têm vindo a fazer as primeiras incursões historicistas a este período, os anos setenta são de importância vital para aquilo que fazemos hoje, podendo dizer que os anos setenta se tornaram numa geração fetiche.
São aliás amplamente reconhecidas as estratégias conceptuais de vários jovens artistas portugueses que asssim resgatam do passado um capital intelectual que teimava ser esquecido, tornando-se esse resgate, também um escudo intelectual ou ferramenta retórica que puxa o espectador para um determinado tipo de reflexão, para além do estético.

















O conjunto de trabalhos exibidos no CAM, podiam estar em qualquer outra parte do mundo. Podiam ter acontecido na Polónia (1) ou na América Latina, pois pertencem a um movimento que se tornou global, onde as mudanças socio-políticas se repercutiram de forma intensa no plano artístico, não sendo possível por vezes, separar uma acção artística de uma demonstração política. Os anos setenta foram acima de tudo o momento onde as várias partes do todos se imiscuíram. Como exemplo maior, a exposição "When attitudes become form " que Harald Szeeman comissariou na Kunsthalle Berne em 1969, onde pela primeira vez se institucionalizou a pluralidade de géneros, conseguindo ter na mesma exposição vários media e sujeitos temáticos, assim como estilos ou variações estéticas.
No nosso imaginário fica marcado o ano zero da arte contemporânea em Portugal com a realização da "Alternativa zero" , organizada por Ernesto de Sousa em 1977 na Galeria Nacional de Arte Contemporânea em Lisboa (para saberem mais por favor consultem o site http://www.ernestodesousa.com) , juntando artistas que não tinham afinidade pessoal ou artística e sugerindo a ideia de um todo a partir de partes diversas.
Esta característica está aliás presente na exposição do CAM. Não há melhores nem piores artistas, há sim um todo que tem repercussões na sua dinâmica. Uns desapareceram , mas todos se fazem sentir como peças úteis para o desenvolvimento daquele que é hoje o nosso chão cultural, a partir do qual devemos exigir um movimento progressivo, cultural, político e social.

(1) Para maior aprofundamento deste tema leia "68, Revolution I love you - art, politics and philosophy", catálogo publicado pela Miriad Manchester University , 2008 (ISBN 1905476345) por Maja e Reuben Fowkes (ver também em http://translocal.org/revolutioniloveyou/).

sábado, 14 de novembro de 2009

Vem aí a feira.

A primeira feira de arte em Colónia, aconteceu em 1970 e foi rodeada de grande contestação por um grupo de artistas entre os quais Wolf Wostel, Joseph Beuys e Marcel Broodthaers. Queixavam-se que a feira de Colónia era um momento de "constrangimento criativo e de práticas de exclusão injustas ", "trazido por esta "moda".
O que é um facto é que crescente número de galerias mostrou bem o crescimento de mercado na Alemanha. Seguiu-se a feira Dortmund na qual apenas figurava uma galeria alemã ! A cena artística nos anos 60 na Alemanha cresceu até 73 de 4 para mais de 400 galerias! E com um mercado em crescendo a arte desenvolveu-se bastante, possibilitando uma crescente recepção às práticas contemporâneas. De destacar o facto de artistas como Blinky Palermo e Gerhard Richter serem absolutamente pró mercado em reacção às práticas conceptuais vigentes (a arte conceptual era no início não mercantilizável).
As feiras de arte eram o momento em que todos podiam manusear trabalhos, falar com artistas e galeristas e acima de tudo onde os clientes viam outros clientes a comprar. Tudo isto faz (ia?) uma feira algo de importante para cena artística, criando mais e melhores condições para todos os agentes culturais (oportunidades, visibilidade, mercado).
Em Portugal, ainda não se percebeu que o modelo desta feira é um nado morto.
Não existe aliás uma aparente razão para a feira existir nestes moldes. Porque é que as galerias devem investir tanto dinheiro quando são sempre os mesmos coleccionadores a comprar?
A feira de arte de Lisboa nem sequer consegue ser uma celebração da arte contemporânea, num ambiente festivo onde todos os agentes (artistas, galeristas. curadores, coleccionadores e público) pudessem comungar as suas ideias. Não há festa, não há eventos, nem há um bom bar ou restaurante.
Acima de tudo não há ideias para fazer desta feira, uma boa feira.
Como exemplos que constatei no ano passado, de países periféricos, a feira de Amesterdão, na celebração dos seus 25 anos, solicitou que todas as galerias fizessem exposições individuais o que deu um novo interesse à feira. Foi de facto uma das melhores feiras que vi em termos de legibilidade. A feira de Viena, que tem servido de eixo para o mercado de leste, ofereceu em 2007, lugares para galerias de todos os países de leste que fizeram furor com apresentações ousadas e sem a pressão de ter de vender. Este ano Viena convidou os curadores Dan Cameron, Maria de Corral, Mathew Higgs, Gianni Jetzer e Jerôme Sans para comissariar exposições nas galerias de Viena durante o período da feira.
Existe também um divórcio entre as instituições portuguesas e a feira. Donde se torna tudo mais amador e de menor qualidade. As galerias e instituições portuguesas são também responsáveis pela não proliferação da arte portuguesa na sociedade. Não se compram espaços nas revistas, patrocinando mas também divulgando a sua actividade. Não existe aliás qualquer tipo de estratégia para colocar definitivamente o termo Arte contemporânea na lingua portuguesa, como o Design o fez e a Moda como o seu programa na TV: 86-60-86.
A arte não chega à televisão ou, quando chega, chega mediada. Chega sempre em segunda mão. Não será altura de termos direito a uns minutos de intervenção na primeira pessoa? Parece-me que sim, pois as práticas contemporâneas assim o exigem. Exigem muito mais do que os 0,4% do orçamento do estado para a cultura, onde a arte jaz no fundo, calcado pelo cinema, arquitectura, teatro etc. Mesmo assim, os jovens artistas portugueses correm às urnas para votar, participando activamente no sistema democrático. Pergunto votar em quem? Quem é que dispensou uma palavra que fosse para a Cultura? Para aqueles que acreditam no sistema democrático-capitalista em que estamos inseridos, pois criem um sindicato! Façam uma greve geral, fechem os museus a cadeado, não comprem os jornais que não dão espaço à critica de arte - como me foi sugerido quando auscultei vários artistas para a criação de uma associação.

Voltando à feira, acredito mum modelo mais internacional. Acreditaria mais numa feira que desse condições excepcionais a uma dúzia de galerias novas que trouxesse de todos os cantos do planeta as mais recentes práticas no nosso meio. Acredito num sistema em que todos os anos uma instituição portuguesa fizesse um grande projecto na feira. Imagino que se dessem um bom espaço para um projecto individual de um artista como o Mike Kelley, muitos seriam aqueles que viajariam de propósito à feira. E acredito que umas boas festas não fariam mal a ninguém.
Também acredito que se fizessem alguns comentários podíamos chegar a uma solução a apresentar. Talvez para uma outra feira, desta feita no Porto?

Nevertheless, I will talk about Matthew Brannon


Um texto simples, mas sem simplicidade (prezando o artista em causa). Um certo embaraço por ocupar espaço aqui, deste modo, sem intenção disruptiva. Ainda assim, há o afecto e a sensibilidade. Perdoem-me (que todo o texto [público] fosse uma revolta, mas por vezes é a partilha de uma atracção).














Matthew Brannon é um segredo o qual recentemente descobri partilhar com um bom amigo. Uma paixão partilhada portanto, ao ponto deste (amigo com paixão em comum) ter um recorte de uma gravura do artista em causa – Matthew Brannon – cortada de um página da Frieze, emoldurada e exposta na sua própria sala. Infelizmente não a vi, a distância impede-me. Mas satisfaz-me o pensamento.



















Farei uma elipse. Julgo que Brannon concordaria – com Brannon a mensagem, evocação que seja, demora-se sempre um pouco mais.


Brideshead Revisited (1945) é um livro fundamental de Evelyn Waugh, mais tarde filmado pela BBC (1981) para televisão com Jeremy Irons como actor principal – mais tarde ainda tornado filme ridiculamente adolescente, infantilização da História que percorre o nosso tempo (2008). Curta e sucintamente, B.R. narra a relação de Charles Ryder, middleclass, literato e ateu, com a família Marchmain, aristocrata e piamente católica, numa sucessão de anos (1923-1943) os quais, em última

instância, expõem o encerrar de uma aristocracia britânica oitocentista; a desilusão moderna e a impotência do pensamento intelectual; os restos de uma religiosidade vitoriana.













Para quem, como eu, sobreviveu à revisitação de Brideshead, versão BBC, mas por igual o próprio romance, e prossegue a vida agora com o ressoar da travessia atlântica por mar que marca o interstício da narrativa, um intermezzo teatral, a última exposição individual de Brannon em Londres não poderia ter por igual ressoado de outro modo: decadente, alucinogénica mesmo, e paródica, em suma, tragicómica.


A cena a que me refiro preenche dois episódios da série, ou seja, aproximadamente duas horas de vida – o tempo é aqui fundamental. As referidas duas horas de tempo fílmico paralelizam o tempo de viagem transatlântica dos personagens, Charles Ryder e Julia Flyte, os quais, reencontrando-se naquele navio após um hiato de vários anos, abandonam-se em deambulação, psicológica e física, pelas memórias de um e outro. O balanço da tempestade isola o casal na sua deambulação pelo navio, por infindáveis corredores, pela proa, numa hipnose temporal, sem tempo e pelo tempo, entre a desilusão da juventude, o decadentismo da época (entre guerras) e a ascensão subliminar de um erotismo compensatório – o amor homo-erótico e original de Ryder, Lord Sebastian Flyte, perdido no álcool, algures em Marrocos, fora da narrativa à vários capítulos. A cena continua a comover-me.


Matthew Brannon podia bem ir naquele navio, sem que Charles ou Julia por tal dessem. Talvez Brannon escrevesse aquela história, e não Waugh, como enviesadamente pareceu fazer na sua última exposição na The Approach, em Londres.














Iguana, 2009

Brannon é um escritor, acima de tudo, embora seja artista, como é evidente. Diria mesmo que Brannon é uma espécie de Robbe-Grillet, em táctica expandida (ainda assim não tanta que em Robbe-Grillet). Gravuras de narrativa obscura com diálogos cruzados ou em fuga; instalações como palcos de teatro, vazios e por preencher; romances escritos pelo próprio, colocados a uma distância impossível de acesso. O trabalho de Brannon, ou melhor, o ambiente que instaura, é de um outro tempo, de uma outra temporalidade que hoje, uma temporalidade passada, reminiscente tanto de um modernismo início de século como de uma época de ouro: lifestyle 1950, América, sem dúvida. Os modos de socialização, a retórica, as relações intuídas, a pose, o cuidado, os trejeitos: etiquetas assim não nos pertencem já. Olhar, percorrer as narrativas que Brannon impõe, de página para página, no tempo e no espaço de caminhar a cada gravura, por entre placares, é viajar no tempo, reconhecermo-nos na distância, identificarmo-nos na estranheza.



















Not Necessary, 2008


[Se algo se diluiu com o passar do tempo foi essa perfeitamente clara distinção entre modos de privacidade e de figura pública. Refiro-me aqui a modos de comunicação, e não à exposição e/ ou julgamento público dos nossos actos: uma diluição entre figura pública e figura privada. Refiro-me a uma linguagem específica, tanto verbal quanto física, de pose, na socialização. Posturas sociais. Em Inglaterra a genealogia prolonga-se ao Vitorianismo, mas não é necessário ir tão longe e remotamente. E por favor, não me falem de divisão de classes, sei bem como modos são política e estratificação.]



















A Well Pissed on Tree, 2007


Mas é precisamente através dessa identificação na estranheza, entre páginas, na intuição da narrativa, que os ambientes instaurados por Brannon parecem retornar, devolver um tempo – os seus modos, estilos de vida e expectativas, imaginados em retrospectiva claro está – a outro mais presente: este. Os modos não nos pertencem já, mas copiamo-los, esvaziados de etiqueta. A devolução é ácida e plena de sofisticação; chic e decadente. Olhar gravuras de Brannon é olhar o espelho, reconhecermo-nos [perdoem, mas é plural] com um certo terror: cá vamos nós, intelectuais chic, de inauguração em inauguração.


Feita a elipse, quem diria, a paixão revelou-se crítica novamente.


quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Bruno Cidra

A primeira exposição do Bruno Cidra na galeria Baginski em Lisboa é composta por um conjunto de objectos a que o próprio denomina como 8 esculturas: Um conjunto de formas orgânicas de média dimensão recortadas em chapa metálica e preenchidas por faixas de papel que na sua justaposição formam linhas.
Não tenho imagens da exposição e julgo que esse facto é uma mais valia para o texto.

Através das suas formas orgânicas, apenas 8 peças com medidas próximas de 160 x 100 x 10 cm conseguem agarrar muito bem o espaço, estabelecendo inúmeros pontos de contacto e tensão. O trabalho de preenchimento de cada forma, rígida ainda que orgânica mas também pré-definida, é redefinida pela repetição de linhas em papel, como se tratasse de um desenho feito por acerto, até chegar à forma exacta. Desta maneira, a forma é investida dessa incerteza ou vibração do pequeno ajuste, da vibração lumínica, do quente do papel sobre a chapa fria e ferida com as marcas da solda.
São desenhos, disse-lhe. E são eróticos porque carregam um tempo que é perdido. Que queremos experienciar e ficamos de fora a olhar. São desenhos no mesmo sentido em que um gato mumificado é também desenho. Com todas as características de composição, motivo, repetição, e religiosidade que encerra uma actividade pré-definida que possibilita àquele que a faz transformar-se interiormente.
8 esculturas - para mim também oito desenhos - é também uma exposição absurda! Absurda na forma como lida com o tempo. o tempo de leitura destas peças, ou tempo que estas convocam que é para mim a sua força maior. Penso paralelamente na "Peste" de Albert Camus, na qual todos aguardam que a morte os tome. Enquanto esperam, marcam o tempo, re-escrevendo a primeira frase de um livro, morrendo sem que esta tenha sido acabada ou, apenas passando feijões de um tacho para o outro como forma de passar os dias.
Num tempo em que não são precisos artistas, mas fotógrafos- jornalistas, em que não precisamos de literatura mas sim de jornalismo, a condição de um certo tipo de artista, com um tempo muito próprio é contra producente no meio político-económico em que vivemos, podendo ver esta exposição- como muitas outras poderiam ser aqui mencionadas - também como um acto de resistência.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Pedro Barateiro - Teoria da fala



















































Escrevemos neste blogue, de forma positiva, no sentido em que escrevemos acima de tudo daquilo que gostamos ou que achamos ter relevância para o meio. Hoje escrevo sobre uma exposição que não gostei num primeiro momento e que se manteve na minha cabeça até agora. Escrevo até no sentido de organizar as minhas ideias sobre esta exposição. Escrevo também na tentativa de me relacionar com este objecto (esta exposição) como um outro, sem acesso a textos de parede ou textos que medeiem a minha relação.


A exposição do Pedro Barateiro na casa de Serralves levantou-me algumas questões que me parecem ser importantes para a prática contemporânea. Como exposição e vista do ponto de vista formal ela é aparentemente menos conseguida que a sua exposição anterior - "Domingo" no Museu da Cidade; Parece não conseguir autonomizar-se nem autonomizar as peças como obras. "Teoria da fala" apresenta-se quase como não-exposição, ficando num limbo que vincula interesse à exposição e que nos faz pensar mais levando um conjunto de ideias para casa, para tentarmos organizar.
Hoje digo, que é uma belíssima exposição (e espero que faça sentido esta contradição a vós leitores).

O Pedro tem vindo a realizar um trabalho ancorado históricamente onde as suas exposições denotam grande acuidade curatorial. Eu coloco à partida a possibilidade desta exposição ser então feita por dois curadores: um activo - o Ricardo Nicolau, que propõe uma exposição em relação estreita com a exposição de Jacques Émile Ruhlman no piso térreo da Casa de Serralves. E o outro passivo, o Pedro Barateiro, um passivo no sentido em que produz objectos dentro de uma determinada janela e que os investe de qualidades que actuam no inconsciente ou que são fruto desse inconsciente (a força maior no sentido nietszchiano) (1).

No segundo piso da Casa de Serralves, conseguimos esquecer o problema da exposição do piso térreo onde a mobília desenhada pelo mestre de Art Déco, está delimitada fisicamente do espaço. Os monos onde assentam as peças de mobiliário torna a exposição de Ruhlman, um mau exemplo de museologia.
Os objectos que Pedro Barateiro transladou da fábrica de textéis do Duque de Vizela, que mantinha algumas relações estreitas em termos de décor, e os objectos que construíu - ou as partes de mobília que se transformam, embebidos em modernismo - conseguem activar a Casa de Serralves de forma diametralmente oposta à exposição do piso térreo.

As possibilidades de discurso em termos de Pós-colonialismo e modernismo, mantém-se intactas mas eu diria que estas são as forças reactivas, porque conscientes (reactivas ao meio), e aquilo a que me proponho é a nomear a força activa nesta exposição.

Uma cadeira dobrada e um pé de uma mesa inclinado contra a parede que passam a esculturas
Objectos pobres como caixas de cartão, troncos, restos de mobiliário que são um preversão de um certo formalismo e que estabelecem uma ponte com as "Eight eccentric sculptures" da Eva Hesse.

Decoração - que provém da herança moderna, que se imbuíu na população- Os lápis são absolutamente decorativos, irritantes e funcionam com dignificadores de uma escultura. Funcionam como ligação mimética à casa de Serralves.

Três vídeos. Dois com imagens feitas na fábrica. Sentimo-nos a olhar através do Stalker. e com isso vemos de novo os objectos no seu local já como obra.
O outro vídeo transporta-nos para os anos setenta princípio dos oitenta e para um certo conceptualismo vigente.

Um biombo que pertence ali quase por negação. Um banco estranho com duas mantas, construído com a mesma estética do biombo.
Um conjunto de fotografias que são perfeitamente identificáveis como obra (como arte) e por isso são a excepção da exposição.

A "Teoria da fala" é um exercício de grande fôlego em que é dada a responsabilidade ao visitante de olhar e ver, em vez de se ancorar em ligações formais, ou textos de parede.
A sua heterogeneidade devolve o espectador à fragiliddae e incerteza do que está diante de si o que é de facto um factor mais nos dias em que correm.



(1) Activo e passivo são termos retirados de F. Nietzsche no qual a força nihilista é uma força reactiva porque consciente, em contacto com o exterior. E a Força activa é essa grupo maior da nossa actividade que é inconsciente, interior. Para saber mais ler Deleuze, Gilles; "Nietzsche et la Philosophie", Editions Quadrige/Presses Universitaires de France; paris; 1997.

domingo, 11 de outubro de 2009

Arena, de João Salaviza

(Este texto trata de uma certa preponderância do aspecto poético sobre o aspecto social na obra “Arena” e do modo como tanto este segundo aspecto quanto o facto barulhento de a obra ter ganho um prémio de enorme reconhecimento podem obscurecer as circularidades rigorosas e luminosas sobre as quais a pequena obra assenta e que aqui se tentam apresentar.)






O filme “Arena”, de João Salaviza, ganhou a competição de curtas metragens do Festival de Cannes. Vou escrever este texto porque estive a vê-lo em ante-estreia no bairro da Flamenga, na Bela Vista, onde foi filmado. Vou escrevê-lo porque apesar das centenas de pessoas que lá estavam a vê-lo, não tenho bem a certeza dele ter sido visto. Também não tenho a certeza de que, sendo exibido antes da longa-metragem de Ang Lee, "Taking Woodstock", venha de qualquer modo a ser visto. A palavra Cannes esmaga muito facilmente quinze minutos de película e facilmente os transforma também em pouco para o que podemos esperar que tão luminosa atribuição. Ver, ver realmente, é também uma actividade que requer um certo esvaziamento de si e que uma ante-estreia num local justo mas tão ruidoso (nos diversos sentidos da palavra) ou um visionamento antes de uma longa-metragem não deixam ver com muita facilidade.

No entanto, a palavra Luz, essa sim, é uma óptima palavra para começar a falar de Arena. Em cada plano deste filme assoma uma luz aberta e veranil. É em um meio de sol. Este filme é um desenho curto e geométrico sobre violência, debaixo de sol. Ou é um desenho sobre geometrias e ciclos de poder, debaixo do sol. Mas esse desenho tem arredondados os ângulos da sua cuidada e pequena geometria, de maneira a que, não magoando nem mostrando tudo, se mostre um pouco melhor o coração da dor. É constituído de dois ou três círculos e de duas ou três caixas. Vou tentar explicar isto.

O filme é o protagonista a estar em prisão domiciliária, tatuador; a ser a acossado por um adolescente local acompanhado de amigos, por via de uma questão de dinheiros respeitante a uma tatuagem supostamente mal feita; a ser atacado e espancado por esses mesmo miúdos, que logram entrar-lhe em casa e roubar-lhe dinheiro que lá tem; a recuperar do ataque e a preparar-se para sair; a procurar pelo miúdo; a encontrar um dos amigos, que coagido, lhe diz onde está o miúdo; a encontrar o miúdo no topo de um edifício, enquanto este mexia num velho carro avariado; a tentar extorquir-lhe o dinheiro; não conseguindo, a fechá-lo dentro da mala desse carro; a vigiá-lo lá dentro por um bocado; a deitar-se nesse terraço debaixo do sol, não reparando na fuga do rapaz.

Isto que acabei de dizer, parecendo que diz tudo o que a curta é, não explica praticamente nada. Não diz, por exemplo, a beleza do tempo que o olhar que a câmara é demora para ser isto tudo. O cinema é a experiência voluntária de ser a visão de quem filmou, e eventualmente de ser-lhe uma espécie de sobre-consciência; de receber como balões vazios as escolhas do olhar que o filme é, e depois insuflá-los com a nossa própria vida e noções. Ora, a possibilidade que eu tive de Ver, se é que vi, este filme, teve muito que ver com este cuidado temporal do João e com a capacidade de “não fazer do espectador refém da manipulação de emoções”(citando de memória Abbas Kiarostami) e apenas apresentar as cenas pousadamente sobre o real. Assim, em meio de um “é só isto?” que muita gente sentiu no final da projecção, e do qual eu também semi-compartilhava, pôde começar a nascer em mim, logo no momento do escurecimento da tela, um vivíssimo pós-filme, feito de tudo aquilo que o realizador não quis impor mas que ficou pela pregnância de cada imagem e do modo de as verter umas nas outras. Começou a aparecer o desenho, o tal desenho debaixo do sol. Provavelmente o que me apareceu é tanto meu quanto dele, porque o realizador deixou espaço para isso. É já quase lugar comum dizer-se que importa dos filmes sobretudo aquela matéria de consciência e vida que eles emanam para lá do seu visionamento, não tanto o impacto imediato de gosto ou dissabor. Como felizmente não tenho nada contra lugares comuns (é bom estar num sítio com mais gente, sítio comum, desde que o sítio seja arejado e as pessoas lá realmente vivas e presentes), sento-me com prazer nessa cadeira que diz: só vi o filme depois dele acabar.




Vi então, e também porque a escolha dos planos era límpida e nada auto-referente e permitia então estas clarezas à posteriori, que havia um homem preso, e preso em casa. Vi que a sua casa era quase em si uma prisão, mesmo que ele eventualmente não estivesse com a pulseira electrónica. Vi isto no modo como ele e o vizinho eram músculos preparados para o combate. Combate em casa. Vi que a própria geometria do lugar configurava uma prisão, uma arena, claro. Sem que apareça tão literalmente no filme, o próprio local onde o vimos a estrear-se é o centro dessa arena: um longo pátio onde confluem as traseiras de vários prédios do bairro da Flamenga, prédios esses ligados por passagens aéreas para as pessoas. Certamente esta disposição contaminou o desenho que o filme é. A descabida e taveiresca arquitectura do local, desdobrando-se em pesados e circulares motivos decorativos das janelas e em egocêntricas afirmações de rectas dispostas com a sensibilidade de uma retro-escavadora, não faz mais do que confirmar a tensão constante que é a vida nesta casa colectiva.

Numa arena combate-se ao sol. E nesta combate-se perante o escrutínio constante dos vizinhos. É a comunidade dos homens que constitui as leis que regem o corpo social. E as leis erguem-se para que se saiba o que há a fazer, para que não se tenha de estar sempre a explicar e a perceber, para que não se tenha de estar sempre a comunicar e reconstruir, para que se possa ver tranquilamente a televisão sabendo que lá fora, debaixo do sol, para cada tentação há uma lei que a proíbe e uma tensão policiária que a dissuade. Mas mesmo preso o corpo pede sol, ser irremediavelmente bicho, e se tenta cumprir em rigor a punição de estar confinado a casa, vem o corpo social a casa provocá-lo, chamá-lo, convocá-lo para a sua arena natural, lá fora. Mesmo arriscando agravar-se-lhe a pena por sair do perímetro ditado, o protagonista persegue o Alemão, o puto que veio a casa roubar-lhe o guito. E as pessoas acorrem cá fora a ver o que persegue aquela personagem agitada (Mauro, cerca de 25 anos, representado por Carloto Cota). Pelo caminho, numa das Imagens do filme, o protagonista encontra sobre uma das pontes entre os edifícios um dos rapazes que foi lá casa com o alemão e, entre agressões e perguntas sobre o dinheiro e o paradeiro do Alemão, faz chantagem pendurando a bicicleta do rapaz por fora da varanda da ponte. Depois deixa-a cair. Essa ponte, em conjunto com uma segunda ponte por cima desta e com os prédios que as ladeiam, configura uma espécie de duplo vazio do ecrã, com a cidade ao longe e tranquilamente como fundo. Todo o filme é desta tensão em primeiro plano com a cidade ao fundo. Sob o sol.

Por indicação deste miúdo da ponte, Mauro sabe onde está o Alemão e, de novo filmado marcadamente em relação com a arquitectura, subindo um espiralado acesso para carros, vai encontrá-lo finalmente no terraço amplo de um prédio, possivelmente uma fábrica abandonada. Intimida-o para que lhe dê o dinheiro, ameaça atirá-lo lá para baixo e, nada conseguindo com a força dos braços e das palavras, vai trancá-lo na mala do carro avariado em que este mexia. Fica ali a vigiá-lo, naquela posição absurda. A inexistência de um farol de trás do carro permite que o rapaz estique a mão e consiga abrir a mala, mas o fracasso desta fuga por Mauro ainda o estar a vigiar sublinha ainda mais o absurdo de estar preso na mala de um carro avariado no topo de um edifício, debaixo do sol, com a cidade toda ao fundo. Esta situação de punição, fechamento e vigia é como um eco da outra que Mauro vivia lá em baixo, preso no apartamento. Mas, tal como Mauro, o rapaz acaba mesmo por escapar-se. Porque Mauro, a certo ponto da vigia, já demasiado cansado daquilo tudo, deita-se ao sol no terraço e como que adormece, nessa outra arena que é o terraço aberto. Também Mauro, neste ajuste de contas, saiu da prisão domiciliária. Aqui acaba o filme. Diz-nos o filme, ou está feito de maneira a que dizemos a nós mesmos: terá de voltar para casa, prender-se. Diz: presos pela cadeia social e do tempo, tal como a Ordem prendeu Mauro em casa e este prendeu o Alemão, mais novo, no porta-bagagens, também um dia o Alemão será provavelmente preso. Diz, não diz mas faz suspeitar: que Mauro a descansar no terraço aberto ao sol tem melhor e mais intimamente desejada recompensa do que o mero retorno da guita que lhe foi roubada.

Eis a ordem das caixas: corpo, carro, edifício. Entre as caixas circulam energias conforme leis muito antigas, debaixo do sol. Este conto só não é sem-esperança porque há qualquer coisa de compreendedor no olhar que é apresentado aqui: tem espaço entre as coisas, não acusa mas compreende, mostra e deixa em aberto. Deixar em aberto certas coisas é em si uma absolvição, porque dá possibilidade de escolha. Algures, ocorreu-me que este conto (vou chamar-lhe assim, porque tem uma tal concentração justa de palavras visuais e arquétipos que não desencaixa muito dessa categoria antiga) era sobre a mobilidade reduzida, sobre a impossibilidade de mover-se. Senão vejamos: lei-prisão, desejo de ter uma tatuagem com uma águia mas que parece apenas uma andorinha, arena-luta, bicicleta atirada da ponte, carro avariado, fechamento dentro de mala.



Ser ante-estreado no Bairro da Flamenga, onde foi em boa parte filmado, se por um lado demonstra a generosidade do realizador para com o sítio aonde nasceu o objecto de filme e a consideração que tem para com a aspereza de viver num bairro como aquele, por outro lado pode fazer crer que esse pendor social seja o cerne desta pequena obra. A nosso ver, não é. Encaixaria muito melhor na dimensão atemporal do conto, erguendo-se (e isso é contudo muito relevante) a partir de material deste local e tempo presente. De outro modo: na balança entre o poético e o social neste filme (fosse algum dia possível artificialmente separar os ossos da carne, para pesá-los), a balança pende para o poético. O cuidado extremo é posto neste segundo factor, não tanto no primeiro. A ver: a estrutura narrativa, visual e dramatúrgica da curta (como já referido) é quase impecável e, por outro lado, na realidade entroncada daquele lugar, custa facilmente a crer que algum dia dois miúdos muito mais novos entrassem na casa de um mais velho e mais forte para se vingarem. É uma questão de propriedades do território, de hierarquia local. “Arena” não é nunca o exercício de estética desatenta ao real dali mas, face à atenção tanta a certas propriedades do corpo social, a visível desatenção a outras diz duas coisas: que o pousar sobre o real leva tempo (e o João tem 25 anos), que é a poética a área inequivocamente conquistada por este filme.

Não é um filme espectacular, não é um filme fechado sobre si, não é um filme fácil e é um filme solar e atento. Muito atento às peculiaridades de ser um filme e deste ser sobre pessoas. Filme cuidado e pequeno. É um filme de um realizador a nascer. E não pretendia nem pretende ser mais do que isso, como aliás a atitude pessoal do realizador só confirma. Este texto nasce da vontade de isto seja visível, muito além e, felizmente, muito aquém do estrondo do prémio de Cannes.

Falta falar de uma última motivação para estas palavras, e que não deve ser vista como antítese da anterior, porque se Cannes pode fazer esperar demasiado deste filme é também uma notável aceitação e porta que se abre: notar, talvez desavisadamente mas com a intuição de estar a apontar uma verdade inequívoca e motivadora, esta consagração de “Arena” como sendo também parte de uma crescente e sensível dinâmica criativa neste país. Notar a felicidade pelo reconhecimento (não por ser internacional, mas por ser amplo) de alguém que, como muitos, “anda aí por Lisboa a fazer coisas”. Notar toda esta dinâmica, visível entre muitas outras coisas pelo facto de não se ter notícia de um fim semana desde Maio (exceptuando Agosto, claro) deste ano de 2009 em que em Lisboa hajam menos de dez eventos culturais de interesse, num momento chamado de especial “crise”. Se isto recorda talvez por um lado a especial ligação entre criação artística e parcimónia de meios, por outro lado é consequência do trabalho e entusiasmo de múltiplos criadores, professores, programadores e instituições mais ou menos formais ao longo dos últimos anos. Não pode isto resultar num elogio à maioria das entidades culturais oficiais, porquanto é por exemplo notória a estagnação de sectores como os da crítica artística de fundo e de vários outros sectores, mas num elogio a quem de facto no terreno tem constituído o tecido deste primeiro momento em que, sob múltiplos aspectos culturais, é mentira dizer que Lisboa é uma cidade parada.





sexta-feira, 31 de julho de 2009

Nozolino e um Algarve que anda leiloado em conjunto com a ética


«EXERCÍCIO DO DIREITO DE RESPOSTA AO ABRIGO DA LEI DE IMPRENSA N.º 2/99 DE 13 DE JANEIRO E RECTIFICAÇÃO DE 9/99, CAPÍTULO V, SECÇÃO I

Como autor da fotografia Lagos 1979 indevidamente publicada na capa e no editorial da vossa revista n.º 19, de Junho de 2009, venho pois exercer o meu direito de resposta.

I – Uma prova desta fotografia, exemplar único em platinotipia sobre papel de arroz japonês, pertence à colecção do C.A.V., Coimbra. Os direitos de reprodução da mesma são e serão sempre meus. No entanto, um ficheiro em alta definição da minha obra foi enviado à vossa redacção, a vosso pedido, para utilização da mesma como capa, não tendo eu sido contactado nem pelo C.A.V., nem pela Artes & Leilões, a fim de conceder ou não autorização para publicação.
Este abuso revela uma falta de ética inaceitável.

II – Fui confrontado com a capa da revista já impressa utilizando não só a minha fotografia na vertical (horizontal no original), reenquadrada e sobre a qual foram inscritas as chamadas de capa a cor-de-rosa!!!
Não vejo como um gráfico profissional possa ainda cometer devaneios deste tipo, nem vejo como pode escapar a um editor de uma revista de arte semelhante deturpação de uma imagem.
Reina em todo este processo a total irresponsabilidade, o maior desprezo pelos meus direitos de autor e pela minha obra. Quando confrontei o director da revista, foi-me dito com condescendência que deveria “estar contente com a publicação em capa da imagem” e que o mesmo facto “faria subir a minha cotação no mercado” (!?!). Tudo isto com a maior das ingenuidades, atributo da prepotência vigente.

III – No interior do dito n.º 19, na página 5, aparece de novo a fotografia, desta vez, a ilustrar o editorial. Vejo-me pois obrigado a contestar o uso da mesma à luz do conteúdo do texto que passo a citar: “Da primavera aos pares, de beijos húmidos, de arte no quarto, passamos ao verão colectivo, de abraços abrasadores nas feiras, de arte ao sol.” (…) “E, como os tempos quentes são tempos de eleição, tempos de arte na praia, fomos todos ao Algarve, ao novo Hotel Tivoli Victoria, em Vilamoura, para um Debate Papo sobre o turismo cultural, em antecipação do Art Algarve 2009…”
Oponho-me a que a minha fotografia ilustre tão leviana prosa.

IV – Finalmente, não posso deixar de me demarcar do evento cultural em que fui envolvido à minha revelia. O Art Algarve, subsidiado pelo Ministério da Economia via Turismo de Portugal, parece estar preocupado com tudo menos com arte. A Arte, tal como eu a vivo (parte dos três grandes A: Amor, Amizade, Arte) só o pode ser verdadeiramente não estando vinculada a qualquer poder. Não é aqui o caso, pois a promiscuidade entre instituições bancárias, política, gastronomia, museus, hotelaria e colecções privadas deixou de ser invisível. Mais, é motivo de orgulho e de progresso! Serve para dar de comer a comissários, directores de museus, de revistas, promotores imobiliários, chefes de cozinha, enólogos, jornalistas e toda uma fauna social faminta de protagonismo.
Demarco-me de tudo isto. Estou do outro lado da barricada. Não vou a banhos ao Algarve, não aceito almoços gratuitos, nem estou presente nas inaugurações sociais. A realidade que vejo e fotografo é infelizmente bem mais pobre. É para mim obsceno ouvir falar de mais um hotel de 5 estrelas, de mais um campo de golfe, de mais uma pousada num monumento nacional, num país onde a fome já não pode ser ignorada, tudo isto a bem da visão economicista da cultura.
A fotografia Lagos 1979 foi como a data indica tirada há 30 anos. Representa a mãe do meu filho na água de um Algarve infelizmente perdido. É grave que uma imagem do paraíso sirva para promover o inferno do betão povoado de turistas tatuados cuja única preocupação é bronzear, beber cerveja e bovinamente contemplar plasmas de televisão depois do pôr-do-sol.
Espero que estes abusos de utilização não se voltem a repetir, nem comigo, nem com os artistas que não ousam reclamar.
Paulo Nozolino

“Nada falta ao triunfo da civilização.
Nem o terror político nem a miséria afectiva.
Nem a esterilidade universal.
O deserto não pode crescer mais: está por todo o lado.
Mas pode aprofundar-se.”
(Appel, Edições Antipáticas, Abril 2008)
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domingo, 19 de julho de 2009

Malevitch: Utopia não é um conceito de Esquerda.

Por entre tamanha obsessão por utopias, ou mais precisamente pelo falhanço das mais variadas propostas utópicas, maioritariamente modernistas - como se a utopia se circunscrevesse a tal e não a toda a modernidade - talvez devesse-mos focar-nos mais na realidade crua da desilusão ou do retorno à ordem (uma e outra realidade não são o mesmo) do que propriamente na proposta utópica.

No Città di Como, onde não há muito que fazer caso não se avance a Norte onde os Alpes se dramatizam mais e a comparação é feita ao lago de Garda, deparei-me inesperadamente com a ausência de pinacotecas mas em contrapartida com uma tocante exposição dedicada à vanguarda russa de princípios do séc. XX, nomeadamente Chagall, Kandinsky e Malevitch.

Fechando a exposição encontravam-se cerca de vinte pinturas de Malevitch. Expostas em painéis de demasiada presença - relembrando-me estar em Itália - no interior de um salão oitocentista que em tempo albergou Garibaldi - relembrando-me estar em Itália - a escolha das pinturas estendia-se de princípios da década de 10 à ascensão de Stalin na transição da década de 20 para 30. Entre estas encontravam-se pinturas suprematistas justapostas com o figurativismo abstracto que Malevitch inicia após a revolução - ceifeiras e camponeses – e, fechando a exposição, o retorno ao realismo das pinturas tardias, como por exemplo o auto-retrato de 1933. Ver o percurso de Malevitch concentrado numa única sala a meia luz foi uma experiência tocante, devo confessar. Há muito que esperava ver pinturas abstracto-figurativas como "Mulheres no Campo" e "Cabeça de um Camponês" (ambas de 1928-30). A verdade é que reprodução alguma lhes faz justiça.
















Mas não foi somente a pintura em si mesma (as cores; a pincelada; as formas) que me marcou e me demorou na sala, mas a densidade do conjunto e a transparência melancólica da passagem da revolução suprematista à representação do movimento comunista presente no figurativismo abstracto. Ou seja, a adesão de Malevitch à necessidade de um conservadorismo, devolvido à representação do mundo e da vida, para a compreensão da revolução.

É precisamente o reconhecimento do paradoxo encontrado neste ponto de viragem que não cessa de me pesar: a necessidade do conservadorismo na representação ou de um regresso ao figurativo e ao reconhecível - nas formas e na leitura, em suma, na passagem do conhecimento e das propostas - para a ocorrência da revolução.

É certo que a mudança que se dá na pintura de Malevitch durante a década de 10 se encontra imbuída das condicionantes políticas; que o suprematismo e a concretude dos quadros negros/ vermelhos, não podia prosseguir em simultâneo com a revolução; que Malevitch teve, para prosseguir enquanto pintor e sob perigo de exclusão, de aderir ao movimento. Mas é precisamente a transformação na sua obra o que revela e torna tocante (humana, demasiado humana) a relação entre a Arte e a Política. Malevitch acompanha radicalmente a revolução, a queda de Lenin e a ascensão de Stalin e o consequente fim da terceira internacional. É aqui que a melancolia se abate sobre as pinturas de Malevitch; que a Cabeça do Camponês ganha introspecção, e a religiosidade, tão presente na tela, transborda.



















Escondidas a um canto e dirigindo-se para a porta de saída encontravam-se duas pinturas realistas de Malevitch datadas de 1933 - retratos sobre fundo negro. A um outro ponto da sala, fechando a exposição, também uma pintura inicial - "Banhistas" de 1908 - reconhecendo subtilmente a circularidade do percurso de Malevitch. Transposta de 1908 a 1933 (Malevitch morre em 35) as banhistas, colocadas naquele ponto da narrativa expositiva, não me puderam senão funcionar como a devolução da revolução modernista iniciada por Cézanne nas banhistas de 1906, contrastada agora pelo recuo ou esvanecer das figuras, na desilusão do necessário falhanço da vanguarda para o sucesso da ascensão de um ideal.



















Retomando, talvez nos faça falta, perante tanto entusiasmo por utopias e o seus falhanços, perante o reactivar de planos não realizados ou pelo seu imprevisto cessar prévio, entender a constante iminência do retorno à ordem, quer queiramos quer não, compreensível histórica e contextualmente. A utopia não é um conceito de Esquerda - nem de Direita - e a sua relação com o Presente, que se quer capaz de utopia, não é sinónimo de vanguarda ou progressismo.

Que propósito há em retomar utopias passadas; repescar visões? Podemos revê-las, deve-mos revê-las, mas na consideração da necessidade de utopias há que reconhecer em simultâneo o enraizar destas no Presente. Mais que reactivar utopias perdidas, parece-me fundamental compreender as lógicas de relação entre estas e o real, e que a utopia não é linearmente sinónimo de revolução.


Nota: Malevitch pode ser entendido como um dos percursores fundamentais do Conceptualismo avançado antes demais por Duchamp, e da inclusão quer da performatividade quer da linguagem na concepção e transmissão da Arte que baseia por inteiro a Arte Contemporânea. O nomear atributivo de Duchamp deve ser comparado com o discurso que Malevitch fez frente à pintura “Quadrado Preto” aquando da sua primeira apresentação pública em 1915, proclamando através da presença viva do seu corpo e voz aquela não ser uma representação mas a concretude do plano da pintura.














Malevitch morto em 1935; envolto em pinturas, o quadrado
preto é colocado precisamente no alinhamento da sua cabeça.



quarta-feira, 15 de julho de 2009

Duas pinturas no Rijksmuseum- Amsterdão



















Rembrandt Harmenszoon van Rijn
Jeremias lamentando a destruição de Jerusalém


A figura está pintada em perfeito detalhe. Os tecidos aveludados em contraste com os metais que adornam as suas vestes constroem, em conjunto com a diferença de temperatura entre o manto e a pele dos seus pés, uma figura na qual se o rosto se esbate. A cabeça de Jeremias no seu estado melancólico  dissolve-se no fundo do quadro. 
Do ponto de vista formal, uma zona de luz limpa incide no pano inferior esquerdo estabelecendo uma diagonal  com um segundo momento , uma luz turva que incide na cabeça de Jeremias. O triângulo de luz  que compõe este quadro é fechado com um ponto de luz proveniente de Jerusalém em chamas, no lado esquerdo do quadro.
A figura fixa no detalhe ocorre como "now" constante enquanto a imagem de Jerusalém em chamas, feitas em pinceladas expressionistas, transporta-nos para um tempo passado.
Conseguimos assim nesta pintura de Rembrandt dois tempos: um agora presente e um agora  que já passou. O triângulo compositivo entre zonas de luz é absolutamente discursivo : Uma figura em detalhe para que seja  entendido como  Jeremias. Ao mesmo tempo a figura humana é dissolvida no fundo pois Jeremias será também passível de irrepresentabilidade. E uma zona em que o expressionismo da pincelada devolve o símbolo à imagem, como algo perdido ou imemorial.
As zonas densas de escuridão que balanceiam o resto do quadro são  um espaço de projecção do nosso eu.


















Rembrandt Harmenszoon van Rijn
Senhora idosa lendo, provavelmente a profeta Ana.


De acordo com o novo testamento, a velha profeta Ana passou toda a sua vida servindo Deus no Templo. Rembrandt retrata-a lendo. 
Contra um fundo negro um detalhado manto e túnica envolvem um corpo frágil . O rosto dissolve-se.
O manto vermelho é recortado por uma linha branca de luz. O vermelho é carne, efervescência material e dor.
E essa luz branca é o anúncio. Uma luz que ilumina o livro que nos é negado, que não nos é dado a ler.
A focagem, a precisão técnica no detalhe, cria uma segunda linha oblíqua, perpendicular à luz virgem porque branca. Esta segunda luz, incide sobre a mão que marca o texto - que marca também o tempo de leitura. Voltamos à sua face que se esvai no fundo, com uma leve expressão de penitência sem a possibilidade de maior envolvimento, pela menos aturada definição, que nos faz antes projectar-nos a nós mesmos sobre o informe, desistindo de ouvir  aquilo que está diante de nós.