terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O tempo dentro de nós

Sobre o trabalho de Filipa César apresentado no Prémio BES no Museu Colecção Berardo em Lisboa, até dia 4 de Abril.



Atravesso a sala.
De um lado, um retrato filmado; do outro, uma impressão de grande escala que regista as folhas sublinhadas de "As lágrimas amargas de Petra van Kant". As palavras sublinhadas não são para relembrar mas sim para rasurar, censurar. O não, não tem valor psicológico. As palavras sublinhadas tornam-se aqui e agora, as palavras mais fortes, activas na memória.
Do outro lado do muro, que separa a sala, está projectado um filme. Um plano fixo que se altera através das minímas variações de luminosidade, num tempo demorado.
Sentado sobre o banco sento-me (sinto-me) passivo perante o que vejo, tomado por uma experiência que se poderá aproximar do sublime, repondo a minha condição humana no mundo, denunciando que o tempo nos é superior.
O monte de sal transformado em rocha dura, atabafa um conjunto de estórias que nos revolvem a percepção de Castro Marim, através do seu enquadramento social e histórico.
Oiço vozes. Algumas conheço, outras quero conhecer. As vozes de levante trazem o calor de um tempo perdido que gostaríamos de poder viver, ou de ter sabido antes, tornando-se eróticas.
O sentido daquela montanha, que continuo a olhar e que se refaz lentamente, transforma-se. Penso em Hosukai e nas sucessivas repetições do monte Fuji e penso na cópia que no Japão possibilita ou provoca a destruição do original.
O tempo parou. Já não tenho de ir-me embora. O mundo lá fora já não consegue pôr-me a correr para lado nenhum. Estou a viver muito tempo dentro do tempo, apenas interrompido pela visão lateral do outro filme - que primeiro apelidei de retrato filmado - que se torna ainda mais erótico pela visão segura porque enviesada, que me coloca numa situação voyeurista.
Passei algum tempo entre estes dois vídeos até que o monte de sal cedeu a luz e o céu escuro.
Saí para tomar de frente o primeiro vídeo.
Existe uma liberdade redemptória neste filme que o aproxima da poesia visual e do erotismo puro. As figuras femininas moldam o topografia das salinas em dicotomia suave - duro, quente - mais quente ou quente diferente desta feita carne.
Existe algo neste filme que nos agarra psicológicamente, colando-nos ao "quadro". Primeiro, pensei numa memória curta freudiana. De forma livre, associo electivamente, as mãos sujas de negro que tocam a parte interior das pernas com o trabalho de Ana Mendieta; Noutros momentos surge-me o corpo estendido de "Etant donnés" de Duchamp e até o "Deserto vermelho" de Antonioni. Porventura, serão muitas mais as imagens que jazem debaixo deste filme.
Num segundo momento, julgo que o filme está mais próximo de arquétipos universais jungianos. O conjunto de imagens que nos pregam ao filme são imagens que já existiam antes de começarmos a tratar de arte. Estes arquétipos jungianos libertam-nos da auto-reflexividade do mundo da arte e tornam-se universais, criando relação entre um novo que nasce dentro de nós e o mundo, agarrando-nos ao mundo com mais força, devolvendo a tensão entre o humano e o mundo.
A luz de Castro Marim que desce do céu e se espelha na paisagem é esmagada pela luz que brota desses montes de sal, mantendo a luz pairante no ar. Esta luz que cega, é a luz da hipérbole, da intensificação da experiência, longe das leis, pulsional. É a mesma luz que cegou por breves momentos Monsieur Mersault em "O estrangeiro" de Alberto Camus, fazendo-o disparar aquela arma.
No filme da Filipa César dois corpos de luz média - cinzento médio e negro sombra, desenvolvem-se entre essa luz intensa que cega. Os corpos femininos em "Insert" iniciam uma relação interior: entre elas e dentro de nós; E exterior : um corpo leve e desenvolto serpenteia pela paisagem. Que se toca, que se tocam. Olham, olham também para nós, como a Virgem em "La tempesta" de Giorgione, colocando-nos dentro do quadro.
Este filme da Filipa, consegue colocar-nos lá dentro, experienciando o tempo da obra, que é o tempo cosmológico que existe em Castro Marim, mas também dentro de cada um de nós.

2 comentários:

  1. há um momento nesse primeiro filme, em que uma das mulheres dá uma mão cheia de sal a provar à segunda, que se aproxima para tocar com a lingua... a partir desta cena, o filme, de facto carregado de erotismo, tornou-se mais conscientemente assim. o sabor a sal que invade a boca traz consigo significados concretos, comuns, físicos. é revigorante essa ligação ao real. muita arte requisita demasiada inteligência e deixa o corpo,, censurado

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  2. A. Cancela, Gosto muito da perspectiva em que o filme se torna mais concreto. E acho mesmo poético a forma como nos dá o exemplo. Quero acreditar nesse chão comum, a partir do qual qualquer pessoas pode usufruir de uma obra - quero no entanto ressalvar que não acho que devemos ser paternalistas e baixar nível intelectual. A arte é feita em função do autor, de uma coisa interior que deseja tornar-se exterior, senão passamos a trabalhar em função das expectativas do público. A arte requisita acima de tudo, um espirito e corpo livres que a possam receber. Aquilo que normalmente se confunde com inteligência é neste período em que vivemos, não muito mais do que informação de tipo diferente. A inteligência em arte é também uma inteligência do corpo, inteligência essa que é suprimida cultural e politicamente, para dar lugar à informação, manipulável, e que que pode ter maior ou menor resultado em função da curiosidade que esta possa despertar em relação a uma agenda cultural social e até política.

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