domingo, 19 de julho de 2009

Malevitch: Utopia não é um conceito de Esquerda.

Por entre tamanha obsessão por utopias, ou mais precisamente pelo falhanço das mais variadas propostas utópicas, maioritariamente modernistas - como se a utopia se circunscrevesse a tal e não a toda a modernidade - talvez devesse-mos focar-nos mais na realidade crua da desilusão ou do retorno à ordem (uma e outra realidade não são o mesmo) do que propriamente na proposta utópica.

No Città di Como, onde não há muito que fazer caso não se avance a Norte onde os Alpes se dramatizam mais e a comparação é feita ao lago de Garda, deparei-me inesperadamente com a ausência de pinacotecas mas em contrapartida com uma tocante exposição dedicada à vanguarda russa de princípios do séc. XX, nomeadamente Chagall, Kandinsky e Malevitch.

Fechando a exposição encontravam-se cerca de vinte pinturas de Malevitch. Expostas em painéis de demasiada presença - relembrando-me estar em Itália - no interior de um salão oitocentista que em tempo albergou Garibaldi - relembrando-me estar em Itália - a escolha das pinturas estendia-se de princípios da década de 10 à ascensão de Stalin na transição da década de 20 para 30. Entre estas encontravam-se pinturas suprematistas justapostas com o figurativismo abstracto que Malevitch inicia após a revolução - ceifeiras e camponeses – e, fechando a exposição, o retorno ao realismo das pinturas tardias, como por exemplo o auto-retrato de 1933. Ver o percurso de Malevitch concentrado numa única sala a meia luz foi uma experiência tocante, devo confessar. Há muito que esperava ver pinturas abstracto-figurativas como "Mulheres no Campo" e "Cabeça de um Camponês" (ambas de 1928-30). A verdade é que reprodução alguma lhes faz justiça.
















Mas não foi somente a pintura em si mesma (as cores; a pincelada; as formas) que me marcou e me demorou na sala, mas a densidade do conjunto e a transparência melancólica da passagem da revolução suprematista à representação do movimento comunista presente no figurativismo abstracto. Ou seja, a adesão de Malevitch à necessidade de um conservadorismo, devolvido à representação do mundo e da vida, para a compreensão da revolução.

É precisamente o reconhecimento do paradoxo encontrado neste ponto de viragem que não cessa de me pesar: a necessidade do conservadorismo na representação ou de um regresso ao figurativo e ao reconhecível - nas formas e na leitura, em suma, na passagem do conhecimento e das propostas - para a ocorrência da revolução.

É certo que a mudança que se dá na pintura de Malevitch durante a década de 10 se encontra imbuída das condicionantes políticas; que o suprematismo e a concretude dos quadros negros/ vermelhos, não podia prosseguir em simultâneo com a revolução; que Malevitch teve, para prosseguir enquanto pintor e sob perigo de exclusão, de aderir ao movimento. Mas é precisamente a transformação na sua obra o que revela e torna tocante (humana, demasiado humana) a relação entre a Arte e a Política. Malevitch acompanha radicalmente a revolução, a queda de Lenin e a ascensão de Stalin e o consequente fim da terceira internacional. É aqui que a melancolia se abate sobre as pinturas de Malevitch; que a Cabeça do Camponês ganha introspecção, e a religiosidade, tão presente na tela, transborda.



















Escondidas a um canto e dirigindo-se para a porta de saída encontravam-se duas pinturas realistas de Malevitch datadas de 1933 - retratos sobre fundo negro. A um outro ponto da sala, fechando a exposição, também uma pintura inicial - "Banhistas" de 1908 - reconhecendo subtilmente a circularidade do percurso de Malevitch. Transposta de 1908 a 1933 (Malevitch morre em 35) as banhistas, colocadas naquele ponto da narrativa expositiva, não me puderam senão funcionar como a devolução da revolução modernista iniciada por Cézanne nas banhistas de 1906, contrastada agora pelo recuo ou esvanecer das figuras, na desilusão do necessário falhanço da vanguarda para o sucesso da ascensão de um ideal.



















Retomando, talvez nos faça falta, perante tanto entusiasmo por utopias e o seus falhanços, perante o reactivar de planos não realizados ou pelo seu imprevisto cessar prévio, entender a constante iminência do retorno à ordem, quer queiramos quer não, compreensível histórica e contextualmente. A utopia não é um conceito de Esquerda - nem de Direita - e a sua relação com o Presente, que se quer capaz de utopia, não é sinónimo de vanguarda ou progressismo.

Que propósito há em retomar utopias passadas; repescar visões? Podemos revê-las, deve-mos revê-las, mas na consideração da necessidade de utopias há que reconhecer em simultâneo o enraizar destas no Presente. Mais que reactivar utopias perdidas, parece-me fundamental compreender as lógicas de relação entre estas e o real, e que a utopia não é linearmente sinónimo de revolução.


Nota: Malevitch pode ser entendido como um dos percursores fundamentais do Conceptualismo avançado antes demais por Duchamp, e da inclusão quer da performatividade quer da linguagem na concepção e transmissão da Arte que baseia por inteiro a Arte Contemporânea. O nomear atributivo de Duchamp deve ser comparado com o discurso que Malevitch fez frente à pintura “Quadrado Preto” aquando da sua primeira apresentação pública em 1915, proclamando através da presença viva do seu corpo e voz aquela não ser uma representação mas a concretude do plano da pintura.














Malevitch morto em 1935; envolto em pinturas, o quadrado
preto é colocado precisamente no alinhamento da sua cabeça.



3 comentários:

  1. Pedro,
    Muito obrigado pela clarividência com que colocas alto a contribuição significativa de Malevich para as possibilidades daquilo que fazemos hoje. Numa altura em que Alexandre Pomar se refere a Sérgio Fernandes como melhor que John Baldessari ou Óscar Faria se refere a Blinky Palermo para falar da exposição de João Marçal ou escrevendo que Tatjana Doll é o momento mais interessante da exposição da colecção em Serralves, o teu artigo é um feixe de luz que me conforta e que luta (porque expõe-se) contra a estupidez que se torna preconceito.
    Será que podemos ambicionar uma cena crítica que se torna voz em vez do zurro meramente decorativo que para aí anda?

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  2. Não olhar (diferentemente) para Malevitch, ou olhar apenas para específicos períodos ou visões do seu trabalho artístico, é esquecer o quão fundamental a sua figura, as suas opções e vida - e não apenas a sua Arte - são para o entendimento da Arte hoje e da sua relação não só com a Política - quando toda a Arte se faz política - mas com algo que me parece em constante negação (relegado ao inconsciente e ao escape dos gestos): o sentido religioso da vida.

    Perdoa a frase em jeito de Haiku, mas por vezes acontece.

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  3. Vi quase a mesma exposição há três anos em Barcelona. Na Pedrera, creio. Fiquei igualmente cilindrado, por tudo o que ele fez-foi. Viva!

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