sábado, 14 de novembro de 2009

Nevertheless, I will talk about Matthew Brannon


Um texto simples, mas sem simplicidade (prezando o artista em causa). Um certo embaraço por ocupar espaço aqui, deste modo, sem intenção disruptiva. Ainda assim, há o afecto e a sensibilidade. Perdoem-me (que todo o texto [público] fosse uma revolta, mas por vezes é a partilha de uma atracção).














Matthew Brannon é um segredo o qual recentemente descobri partilhar com um bom amigo. Uma paixão partilhada portanto, ao ponto deste (amigo com paixão em comum) ter um recorte de uma gravura do artista em causa – Matthew Brannon – cortada de um página da Frieze, emoldurada e exposta na sua própria sala. Infelizmente não a vi, a distância impede-me. Mas satisfaz-me o pensamento.



















Farei uma elipse. Julgo que Brannon concordaria – com Brannon a mensagem, evocação que seja, demora-se sempre um pouco mais.


Brideshead Revisited (1945) é um livro fundamental de Evelyn Waugh, mais tarde filmado pela BBC (1981) para televisão com Jeremy Irons como actor principal – mais tarde ainda tornado filme ridiculamente adolescente, infantilização da História que percorre o nosso tempo (2008). Curta e sucintamente, B.R. narra a relação de Charles Ryder, middleclass, literato e ateu, com a família Marchmain, aristocrata e piamente católica, numa sucessão de anos (1923-1943) os quais, em última

instância, expõem o encerrar de uma aristocracia britânica oitocentista; a desilusão moderna e a impotência do pensamento intelectual; os restos de uma religiosidade vitoriana.













Para quem, como eu, sobreviveu à revisitação de Brideshead, versão BBC, mas por igual o próprio romance, e prossegue a vida agora com o ressoar da travessia atlântica por mar que marca o interstício da narrativa, um intermezzo teatral, a última exposição individual de Brannon em Londres não poderia ter por igual ressoado de outro modo: decadente, alucinogénica mesmo, e paródica, em suma, tragicómica.


A cena a que me refiro preenche dois episódios da série, ou seja, aproximadamente duas horas de vida – o tempo é aqui fundamental. As referidas duas horas de tempo fílmico paralelizam o tempo de viagem transatlântica dos personagens, Charles Ryder e Julia Flyte, os quais, reencontrando-se naquele navio após um hiato de vários anos, abandonam-se em deambulação, psicológica e física, pelas memórias de um e outro. O balanço da tempestade isola o casal na sua deambulação pelo navio, por infindáveis corredores, pela proa, numa hipnose temporal, sem tempo e pelo tempo, entre a desilusão da juventude, o decadentismo da época (entre guerras) e a ascensão subliminar de um erotismo compensatório – o amor homo-erótico e original de Ryder, Lord Sebastian Flyte, perdido no álcool, algures em Marrocos, fora da narrativa à vários capítulos. A cena continua a comover-me.


Matthew Brannon podia bem ir naquele navio, sem que Charles ou Julia por tal dessem. Talvez Brannon escrevesse aquela história, e não Waugh, como enviesadamente pareceu fazer na sua última exposição na The Approach, em Londres.














Iguana, 2009

Brannon é um escritor, acima de tudo, embora seja artista, como é evidente. Diria mesmo que Brannon é uma espécie de Robbe-Grillet, em táctica expandida (ainda assim não tanta que em Robbe-Grillet). Gravuras de narrativa obscura com diálogos cruzados ou em fuga; instalações como palcos de teatro, vazios e por preencher; romances escritos pelo próprio, colocados a uma distância impossível de acesso. O trabalho de Brannon, ou melhor, o ambiente que instaura, é de um outro tempo, de uma outra temporalidade que hoje, uma temporalidade passada, reminiscente tanto de um modernismo início de século como de uma época de ouro: lifestyle 1950, América, sem dúvida. Os modos de socialização, a retórica, as relações intuídas, a pose, o cuidado, os trejeitos: etiquetas assim não nos pertencem já. Olhar, percorrer as narrativas que Brannon impõe, de página para página, no tempo e no espaço de caminhar a cada gravura, por entre placares, é viajar no tempo, reconhecermo-nos na distância, identificarmo-nos na estranheza.



















Not Necessary, 2008


[Se algo se diluiu com o passar do tempo foi essa perfeitamente clara distinção entre modos de privacidade e de figura pública. Refiro-me aqui a modos de comunicação, e não à exposição e/ ou julgamento público dos nossos actos: uma diluição entre figura pública e figura privada. Refiro-me a uma linguagem específica, tanto verbal quanto física, de pose, na socialização. Posturas sociais. Em Inglaterra a genealogia prolonga-se ao Vitorianismo, mas não é necessário ir tão longe e remotamente. E por favor, não me falem de divisão de classes, sei bem como modos são política e estratificação.]



















A Well Pissed on Tree, 2007


Mas é precisamente através dessa identificação na estranheza, entre páginas, na intuição da narrativa, que os ambientes instaurados por Brannon parecem retornar, devolver um tempo – os seus modos, estilos de vida e expectativas, imaginados em retrospectiva claro está – a outro mais presente: este. Os modos não nos pertencem já, mas copiamo-los, esvaziados de etiqueta. A devolução é ácida e plena de sofisticação; chic e decadente. Olhar gravuras de Brannon é olhar o espelho, reconhecermo-nos [perdoem, mas é plural] com um certo terror: cá vamos nós, intelectuais chic, de inauguração em inauguração.


Feita a elipse, quem diria, a paixão revelou-se crítica novamente.


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