sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Hipnotismo e acção

Algumas das estimulantes (1) exposições realizadas este ano no nosso país por artistas internacionais passaram ao lado da crítica. O país fechado sobre si mesmo, sobre a ideia que somos melhores que os outros, rejeita trazer este conjunto de exposições para discussão. A crítica está demasiado fragilizada (ou será desinteressada?) pela coexistência com os outros agentes culturais num meio pequeno, não fazendo o seu trabalho: Perceber o fluxo de acontecimentos que acontecem diante de si! E nesse sentido, dar eco à apresentação de uma obra ou autor que tem vindo a ganhar interesse internacional ou que o meio toma como importante, estabelecer pontes de entendimento entre estas práticas e aquilo que fazemos, recebemos, compramos ou usufruímos de forma gratuita. Afinal o que rejeitamos ou adquirimos como mais valia para a nossa cena artística.
É nesse sentido que tento organizar um conjunto de ideias em torno da belíssima exposição de Matt Mullican na Galeria Cristina Guerra, mais uma vez, como artista, na minha relação directa com a obra, sem a dependência de leitura prévia sobre o autor.
Foi antes de mais, uma exposição generosa, com as paredes cobertas de trabalhos mostrando uma certa multiplicidade da sua obra que a meu ver é mais formal (a multiplicidade!), pelos diversos meios apresentados, que conceptual. Essa multiplicidade de meios estava agregada por um conjunto de muros policromáticos que agarravam todo o espaço expositivo, seccionando e ordenando as diferentes partes.
O meu entusiasmo pelos muros policromáticos tem a haver com uma certa perversão na utilidade dos planos monocromáticos, e ao mesmo tempo na capacidade de condensação do sentido, tornando-se força motriz para o contacto com o outro, com a outra entidade.
A menção feita à abundância de trabalho serve também para pensar no trabalho de Mullican também como trabalho pulsional, de carácter dionisíaco, feito por uma força motriz interior, feito no sentido da revelação, de um Eu/Autor, elástico, capaz de crescer, com os acontecimentos que acontecem diante de si - as suas obras.
E é neste sentido que o meu interesse maior pela obra de Mullican está nas acções que tem vindo a desenvolver hipnotizado.
Vi pela primeira vez uma das suas performances feita na Tate Modern e aquilo que eu senti na altura é que a performance renasce ali, ganha de novo aura, torna-se novamente evento e não há fotografias que a possam substituir.
Quando Matt Mullican entra no espaço designado para a performance , ele está hipnotizado.
O que eu fui levado a pensar, primeiro, foi que o autor está lá inconsciente e que nós somos os primeiros a estar em contacto com a sua obra. Aquilo que ele fizer será obrigatoriamente obra a partir do momento em que foi tomado como tal pelos espectadores e que é o autor que terá de incorporar este acto a posteriori quando visualizar a gravação em vídeo.
Mas este estado inconsciente é um preconceito em relação ao estado hipnótico. Matt Mullican está de facto "acordado", num estado de concentração, de muita sugestibilidade sensível. Está segundo os teóricos num estado de relaxamento físico, com uma capacidade de concentração mental, de abstracção. O que me pareceu foi que Mullican perde a "relação com a sua periferia" - os espectadores não estão lá. Está ele consigo mesmo, numa rara possibilidade de aceder aos segredos , à força produtiva de um autor, pois ele não está em reacção para com um público: A força de um corpo expande-se sobre paredes largas , desenhando não com o saber das mãos (consciente) mas com o corpo, estabelecendo uma ponte mágica com o legado de Jackson Pollock.
Pollock contribuiu definitivamente para o desenvolvimento da pintura , procurando entender aquilo que os grandes mestres Europeus diziam quando chegavam Aos Estados Unidos fugindo da Guerra: "A grande força da arte é o inconsciente.".
Mas a sua contribuição acaba por ter eco também no surgimento da acção e da performance. É Allan Kaprow que define a acção do pintor gestual abstracto como ritual criativo, mãe da acção performática.
Por outro lado temos os pequenos gestos inscritos, desenhos na parede, folhas de jornal amachucadas, impulsos tímicos que em conjunto com as palavras ditas por vezes a duas vozes colocam à tona uma arte que nasce de uma falha, de uma décalage entre algo que sabemos e outra que não conseguimos organizar, que continua a escapar-nos. O acesso quase mágico ao ritual de passagem de Matt Mullican deixa-nos outra vez no mesmo lugar como que repondo a sua relação com o mundo sem mediação, logo sem mentiras. Reescrevendo Sérgio Solmi: é apenas na mentira que o homem consegue exprimir a sua vontade. A verdade é transparente.

Vista da exposição de Matt Mullican na galeria Cristina Guerra.




















































"Hypnotised woman in red room" de Sigurdur Gudmundson. Galeria van Gelder - Amsterdão.
Vista da exposição de Sigurdur Gudmundsson na Galeria van Gelder - Amsterdão.

Um ponte enriquecedora de um autor que julgo nunca ter exposto em Portugal é a exposição que Sigdur Gudmundsson realizou, em Maio de 2009, na galeria van Gelder em Amesterdão. Gudmunsson apresentou um conjunto de novas peças realizadas entre as suas duas residências, China e Holanda. Ao centro da galeria um conjunto de peças escultóricas de carácter poético, dispostas numa estrutura de madeira, é velada por uma cortina translúcida deixando ver as peças mas ao mesmo tempo estimular a imaginação dos visitantes ou ate a sua condição de voyeur. Nas paredes Gudmundsson expõe as suas últimas séries fotográficas que têm dividido aqueles que tem seguido mais atentamente a sua obra. O conjunto de objectos estranhos e heterogéneos, com qualidades poéticas, políticas e até espirituais parece ser consonante com a sua sólida carreira de artista desde os anos 70 e este conjunto de fotografias de carácter panfletário/conceptual muito em voga nos anos 90 parece ser um claro corte com o passado.
Gudmundsson aparece hipnotizado na inauguração e estabelece diálogo com o seu galerista.
Mais uma vez sem rede, o autor hipnotizado desta vez fala sobre a obra realizada o que em relação a Mullican cria a dicotomia apresentação/representação. Gudmundsson fala sobre a sua obra sempre de modo formal, falando da obra de um outro. Aquilo que lhe interessa é aquilo que ele consegue apreender esteticamente recusando-se a falar sobre possíveis conceitos que jazem nos seus trabalhos sem esta primeira relação com a obra num pleno exercício filosófico.


(1) Por estimulante quero dizer exposições que despertem ou excitem . No meu caso, as exposições que me estimulam são aquelas que são mais difíceis de compreender, que utilizam um outro jogo de valores e que têm algo que eu não consigo organizar. Como exemplos maiores deste estímulo as exposições de JCJ Vanderheyden na Culturgest, de Heimo Zoebernig no CAM e de John Baldessari na galeria Cristina Guerra.
No primeiro caso, aliberdade de Vanderheyden e o erotismo do seu pensamento, sempre à procura de um novo na sua obra, potenciando as possibilidades da pintura merecia discusssão. Em Heimo Zoebernig seria necessária uma transvaluação para que eu o compreendesse. As obras acontecem sempre de forma crítica, através de um desenvolvimento formal que, como se sabe carrega consigo um pensamento próprio. Foi um verdadeiro ovni em Lisboa mas houve quem fechasse os olhos. Por último, as pinturas (?) de Baldessari são a passagem para o lado de lá. Ácidas quanto baste para poder levantar algumas questões sobre psicadelismo e conceptualismo!

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