quarta-feira, 3 de junho de 2009

O Fim da Buchholz (II) Um passado obscuro.











Foi editada recentemente uma biografia de Karl Buchholz em alemão da autoria da filha, Gundula Buchholz. Esta biografia, naturalmente laudatória, surge paralelamente ao recente surgir de polémicas relacionadas com o destino das obras de arte confiscadas pelos Nazis num período que se estendeu sensivelmente entre o ano de 1935, o início da kulturkampf, até 1944. Vão-se avolumando processos contra instituições e museus (principalmente norte-americanos) por parte de famílias judaicas desapossadas, ou mesmo da parte de autoridades europeias que pretendem agora reaver este espólio que consideram roubado. A Galeria Buchholz não teve um papel menor neste processo. A descoberta progressiva mesmo que indicial, do montante e extensão da participação de Karl Bucholz neste processo fazem com que este artigo, que pretendia no início ser meramente uma memória sobre o papel cultural da Galeria-livraria em Lisboa escorregasse involuntariamente para um ensaio de literatura de espionagem.


A história da livraria Buchholz (ou das livrarias) flui no rio da história e isto não é um eufemismo. Em Berlim, nos anos 20, a par da maré da inflação e com a introdução do Reichmark, fundou o jovem Karl Buchholz a sua primeira livraria. Dez anos mais tarde, em 1934, após a subida de Hitler ao poder, realiza um sonho. Na Leipziger Straße, no coração da cidade, abre uma grande livraria com uma galeria de arte anexa, que em breve será uma das mais importantes da cidade. Porém, os artistas que expõe são aqueles que em breve o novo regime ostracizará sob o epíteto de “degenerados”. Max Beckmann, Karl Hofer, Schmidt-Rottluff, Käthe Kollwitz, Georg Kolbe, Gerhard Marcks e Renée Sintenis foram alguns dos nomes com os quais organizou exposições.


Numa época terrível para livreiros e galeristas de arte moderna, Buchholz soube ir mantendo uma difícil posição de compromisso; Se por um lado participava nas acções de propaganda do regime por outro, sendo perito na pintura alemã de vanguarda da época. No texto citado na parte 1, sobre esse passado, lê-se somente: "a relação de Buchholz com o regime era algo dúbia pois tanto compactuava em manobras de propaganda alemã como salvava da fogueira obras de Picasso e Braque, condenadas pela fúria nazi." O conteúdo desta frase diz muito pouco sobre a verdadeira natureza desta colaboração dando ênfase ao salvamento a destruição das obras. A realidade dos factos parece, no entanto, ser outra.


Buchholz realmente vendeu muitas das mais famosas e importantes obras de "Arte Degenerada" mas a sua acção não terá sido tanto a de um salvador à imagem de um Schindler a la Spielberg. Karl Bucholz foi, de facto, um dos raros marchands a ser indicado pelo regime para comerciar tais obras. Conseguiu ou melhor, permitiram-lhe desse modo, resgatar muitos trabalhos que eram retirados dos museus e aparentemente evitar a sua destruição. A vantagem para ele era dupla. As obras iam sendo vendidas fora da Alemanha e desse modo, Buchholz conseguiria para além de bons negócios, construir uma rede internacional de contactos que lhe seria útil mais tarde.


Segundo Stephanie Barron (Modern Art and Politics in Prewar Germany in (ed. S. Barron Degenerate Art: the fate of the Avant-Garde in Nazi Germany, LA county Museum of Art, 1991) a exposição Entartete Kunst (Arte Degenerada) de 1937, montada em Munique a par da exposição de "Grande Arte Alemã" na Haus der Deustche Kunst, mostrava apenas uma pequena parte do que foi nesses anos confiscado a colecções públicas e privadas (judeus). The comission (nomeada por Goebbels e que incluia um official das SS) revisited most of the museums later in the summer and selected additional works, so that a total of sixteen thousand paintings, sculptures, drawings, and prints by fourteen hundred artists were confiscated and shipped to Berlin to await final disposal.(…)


A comissão extravasou-se e incluiu na selecção, não apenas obras anteriores a 1910 como outras da autoria de estrangeiros-não judeus, como Gauguin, Braque ou Picasso. “(...) The works not included in Entartete Kunst and those from the second round of confiscations were sent to Berlin and stored in a warehouse on Köpenicker Strasse where they were inventoried. Those of “international value” that could be sold outside Germany for substantial sums were later weeded out and sent to another facility at Schloss Niederschönhauser.” Aqui foi nomeada uma segunda comissão que preparou um enorme leilão. E foi aqui que entrou Karl Bucholz ao lado de uma casa leiloeira suíça e de três outros marchands. “In 1937, (sic.)Heinrich Goebbels ordered that all works of painting and sculpture created after 1910, which did not conform to the Nazis esthetic standard, be collected from German museums in order to be shown in a big exhibition "Degenerate Art" in Munich. Later, in 1939, four art dealers and a Swiss auction house were commissioned to sell the works. (The four art dealers were Ferdinand Möller, Bernhard Böhmer, Karl Buchholz and Hildebrand Gurlitt). - German Law Journal No. 10 (1 October 2006)


Buchholz foi instrumental neste processo. Teria de possuir capacidades de distribuição que assegurassem o sucesso da operação. Em 1939 a Alemanha prepara-se para a guerra e as receitas das vendas dessa "Arte Degenerada" de alta cotação internacional seriam bem recebidas e Buchholz tinha uma relação previlegiada com Nova Iorque, na pessoa de Curt Valentin. Valentin, judeu, igualmente comerciante de Arte, tinha iniciado a sua carreira com Buchholz em Berlim. Em 1937 emigra na companhia de muitos artistas plásticos (incluindo Grosz) para os EUA. Em Nova Iorque funda uma nova galeria à qual chama Buchholz em honra de Karl, de quem chegara a ser sócio.


Curt Valentin, era uma personagem controversa, defendida em 1942 por Alfred Barr director do MOMA como um bom americano. Mr. Valentin is a refugee from the Nazis both because of Jewish extraction and because of his affiliation with free art movements. banned by Hitler. He came to this country in 1937, robbed by the Nazis of virtually all possessions and funds” (na imagem). No website do MOMA lê-se também - “Widely respected as one of the most astute dealers in modern art, Valentin organized influential exhibitions and attracted major artists to his Gallery. His enthusiasm for sculpture is obvious from the artists and exhibitions he selected. Valentin also published several distinguished, limited edition books in which the writings of poets and novelists were "illustrated" by a contemporary artist.”


No entanto hoje sabe-se que Valentin não tinha o currículo assim tão limpo como Barr quereria fazer crer. On November 14, 1936, the Nazi Reich Chamber of Fine Arts gave a secret written authorization to Curt Valentin, Alfred Flechtheim’s former assistant, to –… make use of your connections with the German art circle and thereby establish supplementary export opportunities, if [this is done] outside Germany. Once you are in a foreign country, you are free to purchase works by German artists in Germany and make use of them in America.” [translated from original]. (Exhibit 10). Na imagem (…)Following his appointment as a Nazi agent, Valentin established the Buchholz Gallery in New York. The gallery was associated with Galerie Buchholz in Berlin, perhaps the largest and best-known dealer in Nazi-confiscated artworks.” (texto do processo de acusação de Martin e Lilian Grosz (herdeiros de George Grosz) contra o MOMA)

Sabe-se então hoje que Valentin emigrara já como espião. Em 1944, porém, todo o recheio da sua galeria seria confiscado pelas autoridades americanas como propriedade do inimigo. By 1942, Barr certainly knew that his statement on Valentin’s behalf was completely false. Clearly, Barr was protecting MOMA’s source of Nazi-looted artwork. (…) On September 16, 1944, as published in the Federal Register, the U.S. Alien Property Custodian seized the artworks and assets of Buchholz Gallery in New York as property of Nazi Germany under the Trading with the Enemy Act.” (idem.) Valentin reabriria a galeria sob o seu próprio nome já no pós-guerra e viria a morrer com um ataque de coração em Italia em casa do escultor Marino Marini.

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Sobre a natureza da relação de Buchholz e Valentin, um relatório do Philadelphia Museum of Art sobre a proveniência do Proun 2 (1920) de El Lissitsky, refere que; “Four prominent German dealers were appointed to market the inventory of confiscated works, including Karl Buchholz. (…) this painting (a de Lissitsky) was assigned to Buchholz, owner of the Buchholz Gallery in Berlin. He was the mentor and pre-war partner of Curt Valentin (1902-1954) who named the New York gallery he opened in 1937 in Buchholz' honor. Between 1934 and 1937 Valentin ran his own gallery in Buchholz' dealership in Berlin (…). Valentin, a German citizen, left Germany in 1937 to go into exile. However, he maintained contact with Buchholz, frequently travelling to Germany, where he acquired works from the Schloss Niederschönhausen and the Lucerne 1939 auction. According to Nicholas (refere-se aqui o livro The Rape of Europa: The Fate of Europe's Treasures in the Third Reich and the Second World War de Lynn H. Nicholas) he "was able to obtain from this source [Germany] much of the inventory which established him as a major New York dealer. Hüneke, (refere-se aqui o livro de Andreas Hüneke - Die faschistische Aktion "Entartete Kunst" 1937 in Halle) underscoring the connection between Buchholz and Valentin, refers to the latter's New York gallery as "a ready-made platform from which Buchholz could sell to America”. Receipt from the Buchholz Gallery/Curt Valentin to Gallatin (o comprador do quadro de Lissitsky) dated August 24, 1939, for purchase of both the Lissitzky and Mondrian's "Composition with Blue" (stamped "Paid" August 31, 1939).


Neste relatório, verdadeira ponta de iceberg, percebe-se de uma só vez, não apenas a importância das obras que neste período dramático passaram pelas mãos de Buchholz e o networking internacional que criou mas também e ao mesmo tempo a dúbia posição que este ocupava então na vida cultural alemã. As suas acções trancenderam claramente a mera "propaganda".


Todas as histórias podem ser lidas por varios lados pelo facto simples que a verdade dos factos produz multiplos significados. Por isso, se por um lado o livreiro-marchand pode claramente ser acusado, no minimo de oportunismo, tal atitude permitiu a subsistência de um ilhéu de sanidade mental no meio do horror. A livaria Buchholz era, nas palavras de Werner Haftmann, “um oásis miraculoso no meio do abominável clima cultural da Berlim de então, na qual as pessoas se podiam refugiar um pouco do poder omnipresente e inflexível, através da liberdade criativa e a sensação de conforto. Os artistas e apreciadores de arte que viveram em Berlim durante esses terríveis anos têm hoje da galeria uma agradecida memória.” (Haftmann, para além de um especialista em arte moderna alemã, foi sob a direcção de Arnold Bode o responsável teórico das três primeiras Documentas).


Veio inevitavelmente a guerra e com a guerra, para além do fim da possibilidade de negócios, vieram os bombardeamentos. Em 1943 a livraria foi bombardeada e Buchholz saiu da Alemanha. De Bucareste, capital de um país aliado, passou para Lisboa. E aqui fundou uma nova livraria. (continua...)

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