“(…) Depressa compreendi estar perante um trabalho que ganhava autonomia, que o meio começava a conformar um fim.” – É assim que Jorge Molder traça a génese desta ideia. A partir da observação dos “replicantes”, copias do próprio corpo (expostas por duas vezes em Espanha) e do seu processo de fabrico, compreendeu a força própria destas imagens. Com estas decidiu realizar o seu mais recente projecto, em exposição no espaço Chiado 8, ao qual chamou “Pinocchio”. Somos levados a percorrer com o olhar, uma série de impressões fotográficas das máscaras e dos moldes realizados para o fabrico destes “duplos” como lhes chama Bruno Marchand, o autor de um dos textos do catálogo. Como em outras séries fotográficas, Molder confronta-nos aqui de novo com a estranheza de um corpo reificado, como natureza morta. Este, “de novo”, reporta-se à própria natureza lutuosa do registo fotográfico. Nas anteriores series, como em Secret-Agent a mise-en-scéne e a artificialidade produzida no auto-retrato poderiam ter já esta leitura; por outro lado poder-se-ia também ler nesses trabalhos dos anos noventa, manifestações complexas de narcisismo, teatralidade, personificação de uma alteridade. Na presente série, paradoxalmente, ao representar-se uma máscara (suposto objecto de ocultação) sente-se a presença mais forte do auto-retrato de Molder na sua verdade possível. Tal acontece porque Jorge Molder acaba por realizar máscaras mortuárias de si próprio e o confronto com a morte provoca o desabar do jogo dos espelhos. A chave deste confronto é o próprio autor que nos indicia, no pequeno trecho do seu texto aqui citado. O convivio com o simulacro do seu rosto morto induziu-o à execução de uma vanitas peculiar, a uma seria conversação mal justicada na encenação retórica ou teatralização funerária comum a muita arte contemporânea. Molder já não teatraliza: negoceia com a morte, como o cavaleiro no filme de Bergman. O confronto joga-se na inquietante brilho dos olhos de vidro numa pele de gesso indistinto, no desalinho de cabelo de um moribundo, na fotografia escolhida para o outdoor.
Ao percorrer a exposição surgiu-me imediata na memória o retrato de um romano com os bustos dos seus antepassados e por associação toda a história dos preceitos fúnebres, desde as máscaras de Fayum, ex-votos de cera, o gesso retirado das faces dos grandes homens (Beethoven, Napoleão) após a morte, para que fossem eternizados em mármore. É a fotografia a preencher hoje essa memória dos que passam.
É uma obra a um tempo tremendamente clássica e cutâneamente pessoal. Um gesto gigante.
São tremendos auto-retratos. E sente-se o homem, o florentino, o aristocrata, e o veneno da melancolia sorrir por detrás deles. Pinóquio.
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