quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Four Chambered Heart - Inteligente e Frio




Israelitas e Palestinos, estudantes de cinema, falam de La Pyramide Humaine de Jean Rouch e das diferenças entre comunidades, sob a atenta câmara da portuguesa Filipa César. O objecto central do dispositivo expositivo actualmente na galeria Cristina Guerra, é essa projecção de um vídeo “documental” realizado a partir da posição tomada por Rouch no seu filme de 1959. Este consiste num sociodrama organizado e filmado numa escola onde os estudantes fazem de si próprios. Uma estudante, Nadine Ballot (que será a partir daí a estrela de alguns filmes subsequentes do realizador), chega a uma escola mista de Abidjan. A sua chegada é também o ponto de partida para a descrição ficcionada que a câmara de Rouch faz sobre as relações inter raciais e sentimentais dos alunos uns pelos outros.
Filipa César durante uma residência artística em Israel no Centro para as Artes Digitais em Holon, teve a ideia de aplicar o ponto de vista de Rouch ao conflito israelo-árabe. O ponto de partida não é a chegada de ninguém mas sim o visionamento do filme de Rouch. Os estudantes de cinema de ambas as comunidades sob conhecimento prévio para o que se destina o filme, desencadeiam um acting out em forma de uma suave terapia de grupo. “discutem-no, questionam o papel do cinema, do realizador, as posições de cada um e, desconstroem mesmo o dispositivo cinematográfico ali accionado, realçando as diferenças entre a experiência de Rouch e a de César. Progressivamente, uma conversa sobre cinema é deslocada para um debate sobre Israel e a Palestina, sobre colonialismo e linguagem, culminando na questão da intervenção exterior” (da press release), neste caso a europeia por intermédio de Filipa César.
A exposição notabiliza-se sobretudo pelo lugar que dá a uma reflexão posterior sobre os mais variados aspectos, qualidades e problemas que encena, encerra e enferma. A comparação do filme de Filipa César com Rouch existe apenas num paralelismo das regras do jogo entre realizador e actores. Não seria no entanto o intuito da artista portuguesa fazer um simples remake de La Pyramide Humaine. O resultado é uma construção a partir de Rouch e para se perceber o mecanismo detonador está presente na exposição uma "projecção da projecção" deste filme aos alunos com legendas em hebraico por cima e árabe por baixo. O antropólogo-cineasta realizou uma ficção que está a meio caminho das suas relações com o Leiris de L’Afrique Fantôme, o surrealismo (o nome do filme homenageia o les dessous d’une vie ou la pyramide humaine de Eluard) e a Nouvelle Vague. É um filme com um encanto especial, pedagógico mas ao mesmo tempo lírico e triste. É belo como objecto cinematográfico. O filme de Filipa César é um documentário frio e cirúrgico, ficcionado na medida em que a maior parte dos documentários o são. A ficção é dada pela perspectiva do realizador no acto de filmar e editar, - diz a certa altura um dos alunos; - É um discurso.
Filmado numa sala de aula em repetidos e vulgares grandes planos das faces de cada aluno sustenta-se como obra cinematográfica sobretudo em dois aspectos. O primeiro, o mais interessante e que faz em grande medida a qualidade da experiência de quem o vê, é o ritmo regular e pausado com que surgem faces mais ou menos alheadas ou perdidas em reacção aos statements solitários que vão surgindo na banda sonora dos diálogos; aparentemente não existe ligação sincrónica entre voz e imagem. O efeito é algo hipnótico. O segundo aspecto é o próprio conteúdo temático do vídeo. É por aqui que surgem as questões fundamentais que motivaram este texto. Para um frequentador mais ou menos habitual do DocLisboa, o filme de Filipa César, sendo aparentemente um documento ou testemunho sobre as dificuldades de resolução de uma situação social de conflito, não é um acto convincente. Se tem um interesse relativo como um exercício psicológico de montagem, deixa de o ter a partir do momento em que um grau relativo de exigência de efectividade se imiscui na leitura socio-política do filme. Mas talvez seja necessário então olhar, não já para um documentário sobre a Palestina mas para aquilo que, afinal poderá ser outra coisa.
É certo que, talvez não fosse o pensamento dos alunos o que mais interessaria a Filipa César captar, mas sim a solidão de quem discursa. É esse o sentimento com o qual ficamos a partir de um exercício da nossa memória sobre o visionamento do vídeo. A reforçar esta ideia, a do desinteresse discursivo, está o próprio facto destes alunos serem universitários, habituados por isso ao debate e como tal, nada de verdadeiramente surpreendente suceder ali.
Duas tendências interpretativas contraditórias ficam então em balanço irresoluto: O press release, a temática política, algo óbvia para quem participa numa residência artística em Israel, o texto do guia de cinema datando do ano fatídico de 1948, o conteúdo textual das declarações dos alunos, parecem indicar o empenho da artista na realização de uma forma de arte que de algum modo possa participar no debate sobre a possibilidade ou não de política. Por outro lado, o efeito poético de isolamento de quem fala e a natural mercantilização dos registos da “acção” politizada parecem dizer o contrário. Em última análise, o posicionamento paralelo do público sentado em cadeiras de aula e a receber numa galeria uma espécie de lição, a partir de uma “autenticidade” forçada a figurar a sua separação por língua, religião e cultura, sobre racismo, pós-colonialismo, identidade, torna qualquer adepto ferrenho da paz na Palestina, glacial a este modo de se apresentar o drama real, que existe mas muito para lá do mundo da arte.
É, parece-me, a solidão de quem vive um drama e a indiferença do voyeur, o objecto imaterial dado a sentir no colectivo desta proposta.

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