O ponto forte de “A Escolha a Crítica” foi exactamente a justaposição de vários posicionamentos do autor e do objecto face à instituição, tanto no que diz respeito aos motivos como à sua efectividade. Se entendermos a crítica não como uma agência, mas como um tema ou assunto, deixa de ser problemática, no meu entender, a aceitação desta proposta específica da Lígia Afonso ou de outras possíveis lidando com o mesmo tema.
Existe porém, uma outra perspectiva e que poderá contrariar em parte o que até agora escrevi. Entenda-se o mundo da arte perfeitamente interdependente e solidário com a ordem sócio-económica dominante, como sem dúvida é; - Daqui compreende-se a impossibilidade de um combate exterior ao sistema. Com o colapso do gigante “outro” mundo socialista deixou de ser possível imaginar um “outro” mundo, eticamente superior, de artes. Os nichos exteriores de combate, as “bases rebeldes”, existem hoje rarefeitas, dispersas e pouco esclarecidas. Não existe qualquer sustentação económica para um outro sistema artístico. Este facto tem duas consequências para esta discussão: primeiro, o combate ao sistema terá de ser geral. Não se pode criticar o mundo da arte sem se criticar o todo social. Num grau de belicosidade superior afirmar-se-ia que não se poderá combater o mundo da arte tal como existe, sem se modificar (revolucionariamente) a orgânica ou mecânica social. Segundo; na ausência ou na espera do colapso do sistema actual pela crise, esgotamento ou autodestruição, a crítica ganha o valor de utopia ou distopia; - formas romanescas de escrita social. Como configuração única de oposição ao regime dominante e hegemónico, apesar de não serem de modo algum efectivas como crítica, podem eventualmente ter mesmo assim um valor progressivo e de vanguarda contra o balofo discurso celebratório do regime cultural incumbente.
É justamente por este prisma que a exposição me interessa. Mas poderia ser anexada a este último juízo a reserva de que a mais motivadora crítica institucional é aquela que se motiva de uma fractura íntima do autor com a totalidade do mundo que o rodeia. Porquê criticar a institucionalidade da “cultura” quando esta é apenas um modo menor e elitista da reificação global do capitalismo como forma de dominação? Como intelectuais, nãodeveríamos autores, virar-nos de armas contra o mundo que nos viu nascer, as escolas, os hospitais, a empresa, o estado, a comunicação, a linguagem? A resposta não tarda; - o mundo da arte é par e parte de tudo isto. Por outro lado, tratando-se de utopias ou distopias, as formulações de crítica institucional passam a validar-se na sua qualidade estética e não tanto no conteúdo. Este passa a ser apenas um motivo, um ponto de partida para uma outra coisa.
Após estas considerações retorno aos objectos presentes. Como referi parecem-me mais convincentes as propostas onde se extravasa a crítica precisa e o mal-estar geral é presente e de algum modo interiorizado e consciente. I’m not happy so what, de Eduardo Matos e Atelier de João Tabarra discretamente, alargam os limites da crítica para o existencial. Susana Gaudêncio propõe já concretamente uma crítica institucional mas em modo alargado. O trabalho recobre o universo Foucaultiano da arqueologia institucional utilizando animações como modelos de simulação comportamental. Os objectos da crítica são toda e quaisquer estruturas instituidoras do poder. A arte é uma das mais poderosas dessas estruturas mas Agent Provocateur diversamente, põe em jogo, não o mundo da arte, mas o da justiça, utilizando para isso o espaço do tribunal internacional de Haia.
As restantes propostas incidem mais concretamente sobre industrialização cultural. Pedro Amaral com Do something nice for a wall, buy a poster, sem se desviar um milímetro da sua poética pictórica manifestou o seu mal-estar sobre a interligação entre o sério caso do seu próprio trabalho e a “feira” de arte. Será possível pensar este como um mal-estar genérico do confronto entre esse tempo sem lugar da pintura em acto e a quantificação violenta do preço? A feira será apenas a face mais grosseira da mercantilização do inquantificável. Conflito irresolúvel; as contas têm de ser pagas e assim sendo o trabalho do Pedro Amaral e de João Fonte Santa (Glock19) ocupam o lugar central deste conflito Arte Vs. Instituição como os exemplos clássicos de manifesto com todo os conflitos que tal encerra.
O vídeo Exit de Pedro Cabral Santo e Ruy Otero em forma de um acto de standup comedy expõe um humor nonsense sem definir uma linha demarcada de engajamento face à instituição. Igualmente indefenida por detrás de um humor florentino é a posição de João Pombeiro (I’m a Real Deal) em que se auto-retrata em citação ao I’m a Real Artist do fotógrafo Keith Arnatt. Real Deal é a expressão de ambiguidade inteligente entre a proposta de sinceridade e bom negócio. João Pombeiro, conjuntamente com a dupla Sara & André, faz da crítica institucional o móbil de toda a sua obra. Enquanto João Pombeiro utiliza dispositivos linguísticos como uma mercadoria ambígua, Sara & André utilizam-se a eles próprios em efígie, nome, marca auto-suficiente para lá da produção de obra, na obtenção de sucesso, que acabam realmente por obter. Neste paradoxo, a atitude contínua do claim to fame amplia ou põe em evidência caricaturalmente o já referido índice essencial de mercantilização e valorização da arte; o nome e a assinatura. A inexistência de obra própria, trabalho físico e mesmo intelectual correlato à assinatura e a subsistência da mesma como índice instituído, constitui a caricatura, o carbono catorze introduzido no sistema e o põe a nu. Crítica cínica e parasitária é por isso mesmo a mais virulenta de todas.
A ambiguidade entre crítica e celebração do sistema artístico, referida no início deste já longo ensaio, habita nos últimos trabalhos aqui em análise. Mafalda Santos, com Ambiente de Trabalho, realiza uma operação próxima à que Paulo Mendes realizara já com A escolha do Crítico e actualiza-a para o contexto desta exposição. Penso não ser descabida ao evocar aqui o fantasma de Haacke, um dos grandes patriarcas da crítica institucional, nesta relação síncrona entre obra e contexto da sua exposição. Miguel Palma, por outro lado, no seu projecto Aríete, com o qual vai forçando de “castelo” em “castelo” (galerias de arte contemporânea) a sua entrada no mainstream internacional através da entrega do seu portfólio nas portarias dos mesmos, coloca esta ambiguidade ao serviço da sua legítima promoção social. O irónico nome Aríete, o Porsche e a “lata” da qual o autor dá provas em cada uma das suas investidas, transmuta a temática da crítica institucional para o reduto correlacionado da autocrítica. Ao realizar de facto esse projecto de divulgação ultrapassa-se o momento crítico para um assumir paradoxal e sem reservas, do papel do artista como funcionário do dispositivo institucional.
Conclui-se do que escrevi que realmente ficou muito por debater em torno desta proposta. Foi de qualquer modo uma exposição que me permitiu, o que é raro em colectivas, a uma passeata intelectual por questões que me perturbam quotidianamente o trabalho. Agentes provocadores acabaram por ser, para mim, estes trabalhos, à medida que os fui colocando em confronto no desejo da reflexão sobre ética profissional.
Sem comentários:
Enviar um comentário