sexta-feira, 29 de maio de 2009
O homem é uma cruz que deus faz na terra à noite para saber aonde não está
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Há alguns anos, um amigo próximo contou-me isto : quando há uns anos atrás fazia várias vezes por semana a estrada entre Évora e uma pequena terra espanhola aonde dava aulas de português, no regresso voltava sempre por um caminho diferente daquele pelo qual ia, porque tenho esse hábito sempre que vou a qualquer lado. Tenho a sensação de que a vida anda para trás, se voltar pelo mesmo caminho... Então, quando voltava, era já sempre de noite e por uma estrada secundária. O que é estranho é que sempre que me aproximava de uma terra chamada Juromenha, começava a sentir um aperto estranho no peito e, quando avistava ao longe a ponte antiga chamada da Juromenha, chegava às vezes a chorar mesmo. Isto repetidas vezes, sem explicação alguma. O resto da longa viagem até Évora, e tudo o que depois vai passando pela cabeça, chegava normalmente para diluir esta coisa... Uns tempos depois, estávamos nós ainda a viver em Évora, a coisa estava de tal modo complicada em termos financeiros que cheguei a ir lá a uma tipa que chamavam de bruxa, a ver se a mulher me dava alguma luz sobre como sair daquilo. Ela, entre outras coisas, falou-me de um cavaleiro que costumava esperar perto de uma ponte uma tal dama que vivia num castelo. Seria nesse local que tinham os seus encontros. Certo dia, ela não compareceu e ele, desgostoso, cometeu suicídio nesse mesmo local. Não me recordo das outras coisas que a mulher me tenha dito, mas dessa recordo-me. Mais recentemente, a Lídia [sua mulher], ofereceu-me um livros de lendas amorosas de Portugal. Nesse livro, encontrei isto: Haveria uma dama, de nome Menha, que, jurando ela firmemente não consentir aos desejos incestuosos de seu irmão, foi por ele encarcerada na alta torre do castelo da terra, de que era senhor, ficando doravante essa terra nomeada pelo povo segundo essa obstinada jura: Juromenha.
No seu livro de referência Flesh and Stone*, Richard Sennet narra também como, desde o dealbar da civilização dita Ocidental, corpo humano e tecido urbano evoluem indestrinçavelmente na criação de lugares de assombração e cumprimento de desejos. Dos vapores de passado que a arquitectura emana, alguns constituem especial peso. Quer se creia quer não se creia em fantasmas, é inegável que há toda uma musicalidade da nossa relação com os volumes arquitectónicos que é medida pela constante projecção que fazemos dos nossos corpos a sítios e a tempos aos quais não temos acesso directo. Se essa projecção é ou não fantasmática, é discutível, e que coisa é um fantasma, outra discussão. O que me parece natural chamar aqui agora é o facto de, construidas ou factuais, essas imaginações serem parte inteira do que é andar por aí com uma cabeça que tem ideias entre nós e as coisas. A cabeça tem ideias entre nós e as coisas. Quando um corpo é dilacerado junto a uma esquina, dizem alguns, toda essa esquina fica impregnada do drama dessa alma. O modo como as histórias vão sendo progressivamente adaptadas às cabeças posteriores de um mesmo povo é um processo em tudo semelhante àquele pelo qual o mar molda a forma dos seixos, até lhes dar a perfeita e irrepetível forma elíptica: tornam-se então formas muito resistentes ao atrito e ao desgaste, dispostas a acolher durante séculos a multidão das coisas que acorrem à beira-água. Do mesmo modo, uma narração (ou: uma fantasmação de um acontecer passado), se a imprecisão do contar sucessivo a debulha da textura convincente do real, inscreve-a paulatinamente numa dimensão dos contares perfeitos, universalizados, polidos até ao ponto de falarem apenas do modo como nós póprios rodamos o eixo do tempo. Escusado será dizer que são as crianças os piores repetidores de histórias, e portanto os melhores contadores. Um criador é um copista falhado. O interesse que tenha aquela história da Juromenha vem na exacta medida em que aquilo que em nós sempre pensa retrabalha o sabido e o reapresenta de modo a criar hoje aquilo que mais interessa, mas sempre na convicção de que “foi mesmo assim”. É aqui, pela mão das crianças, que entram os joelhos da Márcia.
Que faz ela no palco, dos joelhos para baixo? Recorta à mão folhas A4 até lhes subtrair a forma daquelas figurinhas humanas estereotipadas; dispõe casas, igrejas, torres, silos, sintetíssimas arquitectices feitas de papel; vai submetendo as figurinhas às mais rigorosas torturas da alma e do corpo(queimações, danças seguidas de esmagamento, encharcares, esperas na esquina para ser tesourado e guardado depois na tumba de uma dessas arquitecturas, atropelamentos pelo deslocamento súbito e lento de uma igreja de papel); sobretudo a Márcia vai erguendo pequenas terras e lugares de papel pelo palco, sagrando minimamente cada sítio e acontecer com o acontecimento de uma pequena luz de candeeiro ou lanterna. O palco está todo escuro, e só acontecem estas luzes e estes fazeres. Nem lento nem rápido, ao tempo justo para que cada acção seja o que é. Ao voar sobre os homens perdidos na noite dos tempos que é a cidade, talvez deus não tivesse uma visão demasiado distinta daquilo que nós víamos naquele palco. Cena da cena. Criança de tudo a brincar com o mundo terrível e possível mundo entre as mãos. Ou seria talvez sobre aldeias. Seria decerto sobre a visão nocturna do espaço, a uma luz amarela-alaranjada que só sabe quem já esperou demasiado tempo em lugares inúteis. Seria, melhor, sobre o espaço de dentro da cabeça do observador dessa cena nocturna. Espera e pensa, não pode não evocar. Não aguentamos que as coisas não tenham sentido, não narrem em direcção a. A Márcia sabe isso bem. De onde a teimosia de querermos continuar a ver casas e gente naqueles papéis descaradamente falsos? Lute que lute contra o que sabe, qualquer ouvinte de histórias não pode deixar de querer entrar na garganta de noite do contador e esquecer-lhe o rosto, para que os seus rostos se igualem.
A inflexão peculiar nesta história é que são crianças que nos contam esta história muda e torturada. Ou é um modo de contar como crianças, ou foi com elas que a performer aprendeu a não saber certas coisas nas imagens que lhe levaram a isto. A peça baseia-se numa sequência de desenhos feitos ao longo de um ano pela autora. Neles, a cartografia do movimento de um corpo num dado espaço é feita pelos sucessivos desenhar e apagar de uma figura ao longo da folha. Nasceu este desenhar da observação de um desenho de criança num ATL, bebendo dele a perturbação pela impossibilidade de sucesso total na tentativa de apagamento das figuras. Nasce depois o fazer da peça "passando do suporte folha de papel ao suporte espaço", mantendo a folha de papel e a ideia de que "os percursos e os movimentos das pessoas no desenho podiam ser reconstruídos pelo rasto que era deixado ao apagar."**Dos Joelhos Para Baixo é a apresentação dos mais doridos e universais fantasmas na economia infantil do papel e da marioneta. Fala das coisas que acontecem às pessoas nas terras ou fala dos que circulam em nós num sítio chamado: antigo. As crianças trazem um calor muito velho porque informulado, e parece que entendem logo as histórias com a pele, fazendo assim gestos largos com as mãos para as explicar quando as ouvem pela primeira vez. Através dos olhos, trabalham a imaginação pelo ar à sua frente, com se tudo o contado fosse imediatamente palpável na carne do mundo que habitamos. Se a Márcia não quer nunca fazer crer que é possível a um adulto mover-se assim no corpo das imagens-sítio, é contudo evidente que os seus joelhos o sabem ainda muito bem. E é essa dor de assentar na terra muitas partes do corpo ao trabalhar, essa dor, à falta de melhor expressão, do marionetista, que exala neste trabalho. Qualquer pessoa que tenha trabalhado com crianças e ao mesmo tempo tenha mantido os olhos abertos sabe que se lhes pode explicar tudo, desde que traduzido para as referências que elas conseguem entender; outrossim, qualquer adulto sabe que ao se evocar o universo das crianças se está abordar uma dor antiquíssima que, e isso nem todos recordam, tem tudo a ver com o futuro e com a direcção que cada um quer hoje dar ao seu existir. Uma criança concentrada a brincar não precisa de falar para explicar os mundos que lhe nascem espontânea e suadamente entre as mãos. A história muda: conforme a precisão da atenção da consciência a cada momento do contar. A história muda.
Não faço a mínima ideia sobre qual é a história que é ali contada. Há um lindíssimo e comovedoramente parado baile final de figuras de papel reconstruídas após tantas violências pequenas. Esse baile, que é ao som de uma reprodução de um cantar da autora, evoca um outro momento anterior da peça em que outras duas figuras são feitas dançar voando enquanto a autora canta pela primeira vez o que depois é reproduzido na cena final, num rádio a pilhas. Mas depois acabam esmagados, mas depois acabam dançando parados. Não interessa. O olhar percebe sem compreender todas aquelas circulações abertas. Sei perfeitamente que história é ali contada.
Das narrações colectivas e individuais nascem os lugares. Somos fundados pelas histórias que circulam nos nomes. Também circular por Portugal ou pelo interior de uma casa nocturna exiguamente iluminada é circular por luzes muito antigas. É óbvio mas é preciso repetir: é a luz que traz a sombra ao corpo. À luz do candeeiro tremendo sem a mãe no quarto, a criança acha o seu corpo feito da mesma matéria fantástica das paredes meio iluminadas. Do medo nascem as histórias. E para aplacar o medo nascem as histórias.
Não é possível descrever por inteiro o modo sensível e seco como a autora circula em silêncio pelo espaço activando tudo aquilo, sem nunca fingir não existir e sem nunca fingir ter aquele espanto primordial que os adultos, já se sabe, só às vezes podem ter. Mas é um convite, aos que estamos no espaço do observador, e que estamos livres de poder escolher aderir à narração o suficiente para ouvirmos em nós aquilo que já antes queríamos dizer-nos a nós mesmos mas para o qual ainda não tínhamos encontrado forma. É um apelo terno e rigoroso a esse encontro mudo. Ao sair da sala, escutei as mesmas pessoas elogiando coisas e alternadamente comentando também sobre a curteza demasiada da peça e dos seus quarenta minutos. Não, não é um “espectáculo espectacular”. Não é uma peça sobre emoção trabalhada com a faca da catarse. Pede abertura e dá trabalho. Não embala o espectador até a um final redentor, é uma peça de pensamento poético feita já com alguma generosidade no momento que é dada a ver, mas que fica para depois e trabalha mais como um eco subtil, descendo dos olhos até ao nosso estômago de animal-de-tempo.
Era para dizer aqui também, finalmente, algo sobre a ligação de Márcia Lança a João Fiadeiro, a Cláudia Dias, e àquele rigoroso e seminal trabalho de desmultiplicação de possibilidades performativas e intelectuais que tem vindo a ser feito desde há mais de uma década em torno da estrutura chamada Re.Al, mas creio que essa conversa requer toda uma outra atenção e tempo. Este escrever limita-se apenas, por agora, a um levantamento de impactos que provocou essa peça de delicadeza e assombração discretos, Dos Joelhos Para Baixo, espécie de: oh!, sei bem que esta construçãozita que se me ergue entre as mãos é falsa, mas quão extraordinário é estar a um tempo assustada e fascinada, ao mesmo tempo no seu coração e a milhas mentais dela. Talvez seja uma peça sobre a sombra que havia debaixo da folha do desenho de criança com a qual tudo começou.
*[Flesh and Stone: The Body and the City in Western Civilization, New York: W.W. Norton, 1994]
** do blogue da peça: http://dosjoelhosparabaixo.blogspot.com/
Fotografias de Alessandro Scarano, em http://danae.fotoup.net/gallery/marcia
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