Algumas equações a propósito da exposição "À esquerda da esquerda" que terminou a semana passada na ZDB em Lisboa.
Num capítulo do livro "Jean Paul Sartre - Between Existentialism and Marxism" ( colecção Radical Thinkers, ed. Verso, Londres/ NY 2008), Sartre fala-nos do "fundamento do intelectual".
Primeiro convém dizer que o intelectual não é aquele que utiliza apenas a inteligência para trabalhar (também, para citar o autor:"Não há um tipo de trabalho que utilize apenas a inteligência e também nenhum trabalho dispensa a inteligência.").
O intelectual, nos termos de Sartre, o técnico do conhecimeno prático, é aquele que emprega o conhecimento na melhoria das condições de vida da sociedade, partilhando o conhecimento com o outro; O conhecimento é algo que aspira à universalidade e como tal tem como finalidade ser partilhado por todos, voltar a essa universalidade. Assim, o intelectual é aquele que vive na "consciência infeliz", pois a sociedade capitalista em que vivemos mantém o conhecimento preso, numa circulação menor entre a burguesia intelectual, não chegando às classes mais baixas que constituem a maioria da população.
O trabalho intelectual é assim feito por todos os técnicos do conhecimento prático, que visem romper preconceitos ou falta de informação sobre um determinado tema, que intefere directamente na nossa qualidade como humanos. Por exemplo, um cientista, junta-se a uma comisão anti-guerra para explicar o tipo de químicos utilizados no Vietname ou mais recentemente na invasão dos EUA ao Iraque criando uma consciência geral do acontecimento.
Na minha realidade mais próxima, na cultura, este gesto terá sempre a haver com a dissolução do provincianismo intelectual , que mantém os portugueses cheios de preconceitos quanto à produção cultural e à efectividade desta como parte da actividade humana, necessária; a meu ver introdutória de grão humano, salvando-nos da tábula rasa.
É este o primeiro sentido positivo da exposição "À esquerda da esquerda". Uma exposição pobre na sua produção, recorrendo à execução mais acertada para a mostragem de trabalhos que envolvem o espectador de diferentes modos em torno da estética do período do PREC. A saber: Um conjunto de documentos históricos do período do
PREC (edições, cartazes, bandeiras, etc) que colocam o espectador a olhar para estes com uma distância histórica; Um conjunto de pinturas murais, copiadas por um conjunto de artistas, a partir de cartazes/murais do MRPP que colocam o espectador em confronto com uma re-apresentação de uma pintura mural, desta vez dentro de um espaço expositivo; Um conjunto de postais (dois deles abaixo reproduzidos) que reproduzem fotografias de José Marques da Estrada de Benfica que são um documento para levar para casa, que talvez funcionem mais como arte postal at large, e toda a sua mensagem de carácter anarca se torne poesia visual; Um filme de Ana Hatherly que evoca essa poesia visual e que a meu ver é uma forma práctica de incorporação de um acontecimento por parte da autora (acabada de chegar a Portugal e provavelmente sem filiação à esquerda portuguesa e ao fluxo selvagem que dizem ter-se vivido naqueles tempos). Este vídeo acaba por ter a capacidade emancipatória do género ao ser sem qualquer tipo de dúvida uma obra maior da arte contemporânea portuguesa. Um mural no exterior do edifício da ZDB evocativo da estética e conteúdos do murais do PREC.
Todos os trabalhos apresentados, no seu modo correcto e forçando o espectador a um movimento diverso no modo de recepção, culminam com uma décalàge final: Esta exposição de "propaganda política" está a ser mostrada como exposição, num local que tem produzido algumas das boas exposições de arte contemporânea nos últimos anos em Lisboa. Julgo que as questões que se levantam com esta exposição (e
não há eco da crítica!?) não se prendem apenas com uma luta pela derrota do preconceito que existe na pequeno-burguesia cultural portuguesa. Os problemas que se levantam batem em todos os escalões da cultura , passando muito também pelos autores que a fazem. Assim, e também em resposta ao "entoucinhamento"- para utilizar a expressão do Bravo, que têm feito da pintura (também neste blogue), pergunto o que é que implica a realização de uma pintura do PREC numa parede da ZDB ? Implica, no meu entendimento, ver primeiro o objecto individualmente e não o sujeito da pintura. No sentido em que não gostamos de uma pintura porque ela representa uma coisa que gostamos. Nesse caso gostamos da coisa representada e a pintura é uma mediação que nos evoca essa coisa que nos é querida. A pintura ela mesma objecto, está para além dessa filiação menor, pois não está certo do ponto de vista do objecto continuarmos a falar de um sujeito. A perfeita objectivação, para recorrer a Nietzsche, implica que o objecto se torne absolutamente exterior ao sujeito. E é o que acontece neste caso. As pinturas murais feitas nas paredes da ZDB, são anónimas, não têm sujeito. Não têm sujeito no sentido em que quem as fez foi um grupo de jovens artistas que aparecem apenas na ficha técnica, não sendo possível vislumbrar qualquer implicação da obra de cada um deles naqueles trabalhos. Estas pinturas são anónimas no sentido em que ninguém mais está por detrás delas a dizer presente - por outro lado sente-se que a crescente utilização desta estética e conteúdo, é um reflexo do "produto" que a sociedade tem criado, relegando o artista para uma posição sem eco.
Mais interessante será ver que estas pinturas estabelecem uma ponte com a arte dita formalista, no sentido em que o tipo de meta-linguagem utilizado (linhas de fuga, justaposição de cores, peso, composição etc), se aproxima muito da produção abstracta, que por certo terá a haver com a filiação à esquerda de pintores abstractos americanos como Ad Reinhardt, Jackson Pollock, Guston etc.
Por fim, estas pinturas tomam a face de toda a exposição, pois para ver esta exposição, é preciso um espectador autónomo capaz de ver, sem as muletas referenciais, que era por fim a contingência da objectividade a que me referia. E só assim, autónomos, podemos olhar de novo para esta exposição, com o pensamento claro que a liberdade não pode ser herdada, que a liberdade terá sempre de ser re-equacionada. Podemos mesmo avançar com uma tarefa a fazer na sociedade de hoje: recolocar, na nossa qualidade de técnicos de um conhecimento prático, a questão da liberdade na agenda política.
A primeira coisa a faltar é a agenda política. Se a liberdade ou a igualdade são um bem maior isso será posterior. Parece-me antes o exercício de ma consciencia política muito rarefeita no "millieu" das artes.
ResponderEliminarquria dizer "uma consciencia política" e não Má consciencia política... fica o reparo
ResponderEliminarOntem num jantar animado que durou até às 6 da manhã em conversa contínua, ficou também a ideia que as instituições portuguesas e a crítica estão a cometer um erro grave que se prende com a memória e com a herança dessa memória. Escreve-se como se começássemos no ano zero e organizam-se exposições sem a densidade de investigação que traria vinculações e desvios (por negação consciente) em relação a uma história. Afinal onde está o Lapa, o Noronha, o Bravo, o Areal e o Ernesto de Sousa?
ResponderEliminarEntre tantos outros claro...
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