(continuação) O que poderá ser então crítica institucional? Constituiu-se no tempo como um ramo temático do conceptualismo originado com o velho Marcelo D., mas sobretudo com abertura de campo experimental aberto dentro do mundo da arte que possibilitasse a inclusão do texto crítico sobre o próprio mundo da arte. Raramente foi esse discurso verdadeiramente auto-corrosivo; quero com isto dizer que, raramente na história da arte pós-duchampiana, o discurso da crítica institucional se voltou com efeitos sobre o próprio produzir artístico. O urinol, ao desmascarar pelo simples facto de ser exposto, todo o maquinismo de entronização operado pelas instâncias que instituem o que é (ou quando é) arte, preencheu a essência de um gesto verdadeira e sinceramente crítico, mesmo que o silêncio posterior de Duchamp tenha incomodado artistas-activistas nas décadas de luta de sessenta e setenta. O que aos meus olhos confere veracidade a gesto de Duchamp não é o gesto isolado da exposição do pissoir mas a consciência a partir perspectiva que hoje nos é dada pelo ambiente social e político dos anos em redor da primeira guerra mundial; - Dadá em redor de Duchamp, para além de outros movimentos e sobretudo escolas (Stijl, Bauhaus, Vkuthemas) é de facto a caixa de ressonância da vontade revolucionária e sobretudo da aliança entre os intelectuais e o progressismo da qual Duchamp retira reflexões e intuições.
A acusação de “traição” apontada aos artistas foi sendo feita e subindo de tom e clareza, paralelamente ao surgimento e à consolidação da consciência revolucionária nas fileiras dos próprios autores. Entendo, nesta perspectiva que se pode falar de crítica institucional verdadeira na retirada ou deserção que o pintor socialista William Morris executa a partir do mundo da arte pela arte em direcção ao credo de uma arte aplicada ao serviço verdadeiro da sociedade (crafts). Aqui está contido um nó importantíssimo e que marcou o início da consciência do design como arte socialmente crítica. Ossip Brik, Tretyakov, Kruchenykh e Levidov (LEF) por volta de 1923, defendiam em termos hegelianos o fim do conceito burguês da arte. Nos anos 60, Germano Celant ao preconizar a arquitectura radical numa Itália em convulsão política actualiza o lugar desse contornar do mundo da arte em direcção à utopia desta vez perante as pesquisas vanguardistas dos gabinetes de arquitectura e design Archizoom ou Superstudio.
Corporizada e sensorialmente expressa com violência a crítica institucional na abjecção do urinol ou da merda de Manzoni o discurso crítico institucional institucionaliza-se. O mundo da arte aceita e incorpora com frisson e prazer a provocação. Se com Duchamp a provocação demorará tempo a ser aceite, com Manzoni é imediatamente deglutida e digerida. Este desvio histórico serve apenas para sublinhar a estreita dependência a partir da realidade sócio-política, das condições de existência de plataformas efectivas para a crítica institucional da arte. Para além do credo Benjaminiano sobre o potencial revolucionário das imagens tecnicamente reproduzidas, só uma convulsão social violenta e hegemónica (Gramsci) estabeleceria as condições efectivas para a produção de uma “arte” crítica ao modo burguês de instituir.
O lugar chave da institucionalização da poética como arte contemporânea continua a ser a assinatura. Foi para Morris a moral de um arte espiritualmente superior e anónima que tomou como modelo crítico para o sistema social e produtivo da sua época. Foi também baseado na ideia de servir uma causa maior, a da revolução, que no século XX o artista revolucionário acabou por viver a tensão entre duas autoridades, a sua e a do partido ou causa. O nome do autor foi, desde que a arte se autonomizou como tal, o centro focal de todos os discursos, a unidade base que permitiu a construção de uma história descritiva, interpretações, discursos apologéticos, monográficos, o supremo índice de catalogação e organização do que nunca poderia ser organizado. A organização de um mercado fez disso a sua condição de base. Se a crítica institucional é dirigida à relação entre o capital e a mercantilização da arte e a sua própria existência como sistema sócio-económico, é na crítica da economia política do símbolo (Baudrillard), incorporado no nome do autor, que encontra a sua nemésis. Um dos autores expostos, Miguel Carneiro, com o seu “cospe aqui” situa-se a si e ao trabalho exactamente neste ponto de tensão entre o anonimato como condição essencial para responder efectivamente problema do sujeito do discurso crítico (quem fala?) e o fim dessa condição a partir do momento em que o próprio acto crítico deixa de ser documento para passar a ser objecto de autor.
Resta a possibilidade de crítica institucional despojada da sua efectividade. Será interessante pensar agora nas motivações de uma critica consciente da sua própria falência. Como criticar o instituir da arte no preciso momento em que a crítica é instituída como tal, inter-pares a outro género dito burguês? Não será a crítica institucional instituída vítima do mesmo jogo de espelhos ao qual Baudrillard submeteu a crítica da economia política? – Um mero modelo de simulação? Mais; será a crítica institucional um mero reflexo narcísico da própria institucionalização personificada nos seus agentes (artistas, curadores e outros)? É este último, aliás, o sentido que leio na já clássica série de desenhos sobre configurações institucionais (museum, gallery, etc.) realizados por Pedro Barateiro e que também se puderam ver nesta exposição. Se estas suspeitas forem verdadeiras como penso, então a crítica institucional é apenas mais um género tão burguês como outros, tão válido ou inválido como outros, pertinente ou impertinente mas apenas na sua efectividade dramatúrgica ou espectacular. (continua...)
Gostava de te propor mais um elemento à tua reflexão que se prende com uma conversa a que assisti de Jean Luc Boltansky na Staedlschulle em Frankfurt. Numa abordagem à esquerda, à qual ele se sente intimamente ligado como alguém que vive uma memória "poetisada" de 68, faz uma crítica áspera à participação da esquerda no sistema democrático-capitalista.
ResponderEliminarA seu ver a crítica dá a ver, torna visível as falhas do sistema, donde, a critica da esquerda, é essencial para a permanente reforma do sistema (teoria que encaixa na perfeição com a teoria da invisibilidade como arma de Jean Luc Nancy) .
Em arte- porque podemos dizer que ambos os sistemas democrático/capitalista e arte são estruturas rizomáticas - a critica é um movimento reformista, burguês no sentido em que deseja manter a estrutura intocada. O problema aqui parece-me ser a forma como tornamos visível no sentido em que um pensamento crítico toma forma, apresentando-se .
Existe uma dicotomia na apresentação da peça de Duchamp e na crítica de hoje que não se apresenta antes re-apresenta-se (representa-se), dando lugar a uma visibilidade que tem a ver com a compreensão do objecto que assim se torna confortável porque manuseável.
Mas, Hugo... uma coisa é crítica; outra é arte. Ambas podem conviver na mesma situação ou objecto, mas as finalidades são diversas. Creio na crítica política, creio na força poética da arte; tal como creio na força poética de muitas coisas para além da arte (Crítica poética, por exemplo) Creio mesmo e ainda na possibilidade de uma colusão entre poética, política e justiça (um pouco o lugar da razão entre liberdade e igualdade. A arte não é o sítio exclusivo da acção crítica de um artista. Porque não a acção política pura e dura? porquê esta exibição de "engagement" exclusiva à produção artística? Porquê todos estes sermões dados de púlpitos suspeitos...?
ResponderEliminarMas quase todos com mais ou menos piada fizemos declarações políticas e particularmente de política anti-institucional nos nossos trabalhos. Mas não lhes gosto de chamar obras... opus, com toda essa carga autoral e solene. Prefiro pensar a reflexão sobre as condições de produção de arte, reflectidas no trabalho "artístico" como ensaio. O ensaio mantem-se sob escrutínio permanente, sobre a sua autoria, autoridade, consequência.