sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Escritos de Artista (1)



















Kerry James Marshall

Inventámos, eu e outros que tais, um blogue de crítica.
E como sucedeu tal coisa? Esses outros que tais e eu, no decorrer do ano passado, 2008 e durante a residência na ZDB tomámos o contacto com o pico de histerismo com a possibilidade fantástica de termos finalmente pós-colonialismo em Portugal! O ponto focal era desta vez colocado à volta dos trabalhos de um pequeno grupo de artistas emergentes angolanos que vivem actualmente em Lisboa e que vão realizando um trabalho com mérito próprio. O facto do meio ser diminuto faz com que novidades se tornem rapidamente um foco gerador de histeria. A identidade tem sido realmente um chavão demasiado utilizado na atribuição de valor e legitimidade na arte contemporânea. O excessivo uso deste critério produz situações algo cómicas. Lá fomos observando, com algum e triste divertimento a instituição desses critérios identitários para a definição da africanidade de uns e a não-africanidade de outros. No reduzidíssimo quintal beirão, entre a adega e o lagar, onde vivemos, lá se vai instituindo sem ser grandemente contestada, uma discursividade para uma poética passe-partout e sem aguilhão crítico para que melhor possa viver à sombra de grandes interesses. Alguns artistas com olho tornam-se rapidamente nos verdadeiros Têtes de Colonne deste ou daquele discurso ou veio discursivo que têm tido nas Documentas o lugar e identificação e vulgarização ao uso. As ideias adquirem-se como no supermercado, numa estante entre várias opções.

O problema não tem a ver com a teoria em si, do pós-colonialismo, tal como não tem a ver com os queer studies, tal como não teria a ver com o marxismo quando este foi abraçado superficialmente por tantos após a revolução. No caso da teoria pós-colonial, não se nega aqui a validade de um discurso que pretende avaliar as relações entre a Europa (neste caso Portugal) e o seu antigo espaço colonial. Irei mais longe; essa avaliação deve ser permanente. Mas o que dizer da rapidíssima transição, no nosso pequeno mundo da arte contemporânea, de um debate que deveria ser sério, fundado e contextualizado para rápido tráfico de nomes reificados á volta e em nome de um discurso que eles próprios não engendraram? O que dizer da súbita histeria sobre questões que em outros países estão em colóquio desde os anos 50 do século XX e passados mais de trinta anos sobre a descolonização? E com que seriedade, poderemos ainda nós querer normalizar apenas pela (aparente) consciência do passado, as nossas relações com esse mundo outro utilizando exactamente as mesmas estruturas de pensamento (capitalismo, mercado liberal, conceitos de “arte” e a tecnologia) que utilizámos durante todo o passado colonial? Como podemos pretender compreender e aceitar África quando ainda todos andamos a ler coisas sobre os EUA como “Império benigno” escritas pelos editores dos jornais nacionais e a desprezar esses islâmicos “terroristas” que vivem ao nosso lado pelo menos desde Carlos Magno? A histeria por África toma aqui em Portugal os contornos irritantemente desonestos dos modernos discursos dos peritos de Washington pelo Médio Oriente. Se eles teimam em não ter voz, representamo-los. A questão que nos surgiu foi o seguinte: - “E o que dizem os artistas azuis, vermelhos, pretos, amarelos e ás bolinhas sobre isso? Terão eles voz?”


















E pensámos; poderemos ter nós voz? Poderemos ter voz para além do que se passa dentro dos parâmetros definidores de “Ceci c’est un object d'Art” sobre este e tantos outros objectos? De repente a coisa já não é apenas sobre a africanidade ou não da minha ou da tua cor de pele, mas sobre Lisboa, aqui, o Porto, a exposição tal, a opinião de sei-lá-de-quem no Público, o futuro da crise, a comunidade de Berlim e a de Malmö ou a influência de Obama na arte contemporânea. A dúvida é sincera. De nós, o último a ter uma escrita poderosa foi o Almada que não tinha medo de ninguém e nada.

Este Blogue pretende ir respondendo a esta pendência. Poderemos nós escrever? Criticar? Teremos nós livre trânsito na poética aventura de falar com a linguagem de todos os dias e para além do café, sobre poesia? O anonimato surgiu como uma possibilidade e sem grandes reflexões. Também decidimos alguns de nós não o ser, e sermos Gonçalos, Hugos e Gabrieis e ser ao mesmo tempo anónimos – ou heterónimos. (continua...)

1 comentário:

  1. Sinceramente e respondendo à tua pergunta (que imagino que dispensa resposta), a resposta é sim. Devem escrever e devem criticar e é por isso que sigo este blog com atenção. Foi e é um passo importante no estabelecimento de uma nova forma de se fazer crítica (que entende, pelo que pude ver até hoje, que se centra nas obras e não é propriamente um ataque pessoal - como deveria ser a crítica).
    Sempre pensei que tem de ser o "tecido vivo" das Artes a falar mais sobre si e sobre o seu trabalho, ou pelo menos ter uma igual voz activa sobre o que está a acontecer.
    Porque os artistas, enquanto membros de uma comunidade onde todos "lutam" pelo seu lugar têm um maior poder de confrontação (ou deveriam) do que alguém que tem um pé dentro e outro fora e que muitas das vezes tem a sua própria agenda.
    Por isso o blog acaba por funcionar como uma "auto-crítica" (como pude até constantar no texto acerca da exposição do Carlos Noronha Feio, no Hospital Júlio de Matos).
    Sem essa confrontação nada muda. Continua-se a ir às inaugurações para ver e ser-se visto, bebem-se uns copos e nada passa daí... depois critica-se os processos menos claros da legitimação artística, mas nada de concreto acontece e a história vai-se repetindo indefinidamente.

    Contudo, falar do que se passa pontualmente no Porto, em Lisboa, Berlim ou Malmo... ou mesmo a influência de Obama na arte contemporânea, não deverá ser ignorada.
    Isso apenas mostra a extensão que o "produto" do trabalho dos artistas tem na sociedade onde se inscreve. A divulgação também é necessária, para que ajude a criar alguma massa crítica (e não crítica de arte) dentro do processo.
    Penso que existe espaço para vários graus de informação. Outras àreas da actividade humana (e a Arte é uma delas) fazem o mesmo. Alguém sabe de facto analisar com todo o rigor a Teoria da Relatividade de Einstein? Provavelmente não, mas todos (pelo menos os interessados) têm uma ideia do que se trata, porque existe justamente a chamada Divulgação Científica. Porque não existir Divulgação Artística, também? Isso até existe, mais ou menos organizado e em Português em websites como o E-Vai (http://www.evai.net).

    Apenas penso que talvez seja necessário mais verdade ou pelo menos haver mais discussão em torno de certos temas. Existe muita Arte, melhor ou pior, mas interessa entender o que poderá ser pior, para que se melhore.
    Julgo que este blog tem e terá um papel importante na construção dessa consciencialização e ainda mais porque é "straight from the source".
    Boa continuação. Escrevam, porque têm todo o direito e em parte até mesmo dever e porque há quem vos leia.
    Abraço.

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