segunda-feira, 30 de março de 2009

Escritos de Artista (6)

Ai Weiwei

(continuação) A aura é um interveniente fundamental. É de facto este o produto que interessa ao sistema social como um todo, destilar do sub-sistema do mundo da arte. Simultaneamente é o concurso em fluxo inverso, do capital financeiro por um lado, e da aura pelo outro, a fabricar a coesão de todo este pequeno universo. Voltemos um pouco atrás. Hoje o mundo das artes concorre a um lugar semelhante ao que a religião ocupou (e talvez ainda ocupe) nas sociedades pré-modernas (Houellebecq). Ambos os sistemas concorrem sobre a esfera laica com valores impalpáveis. De um lado a salvação fundamental (ou fundamentalista) para uma vida não terrena, do outro, particularmente após o julgamento e a “morte” de deus operada pelo iluminismo e pela burguesia, fornece-se a esta mesma burguesia sôfrega de espiritualismo e sobretudo de legitimação, esse valor intangível, aurático, mas que se pode possuir a partir do momento em que se financia, patrocina ou adquire uma obra de arte. A tradição institucionalista mantém que a função capital do mundo da arte é a própria validação da “categoria cultural da arte” e produzir o consentimento geral da sociedade neste acto. Obviamente esta visão de tradição anglo-saxónica (Danto) não mostra a imagem completa daquilo que na realidade se passa. O mundo da arte, determinado pelas condições sociais existentes, segundo outra visão (Bourdieu), não é mais do que a fábrica de aura, ou capital simbólico; valor, prestígio e outros factores intangíveis indispensáveis para a legitimação e sedimentação do verdadeiro poder do parvenu nas configurações societárias actuais.

Pode-se fazer drag and drop do processo de legitimação de estatuto social que se acabou de descrever, para o próprio incremento de proeminência e legitimação de um estado no seio do que foi o “concerto das nações” ou melhor ainda, na ordem mundial que o substituiu; o mercado de investimentos financeiros. Veja-se o caso da proliferação de bienais e colecções pelo mundo todo. Este não é mais do que um dos indicadores da globalização de cariz neo-liberal. É claro que ninguém subscreverá esta visão. Genuinamente a verdadeira arte é fabulosa e a aura que dela emana é verdadeiramente e em si, uma valia; é fascinante e “fascizante”, “ideológica”, “opiácia” conforme dirão os nossos humores quando se tornam mais marxistas, mas ninguém lhe é indiferente.


Allan Sekula

Do lado do coleccionador, o consumidor preferencial do produto do mundo da arte, haverá quase sempre a confissão mais ou menos sincera do amor pelas grandes obras. Os críticos gerem a suas opções encravadas entre as prioridades editoriais e financeiras dos media groups onde estão inseridos e os seus próprios ideais estéticos e políticos (quando os há). Os curadores da mesma forma, gerem a sua visibilidade e carreira em permanente flirt com o poder contra ou a favor dos próprios ideais. Os Galeristas (exceptuando os que não dependem do dinheiro da galeria para a sobrevivência e “correm por gosto”, no fim dizem todos o mesmo - a sua casa é uma casa comercial. Por fim os artistas, tantos e em diversas situações financeiras e laborais, convivem, com todos estes factores, ora submissos, ora coniventes, ora rebeldes, ora aparentemente submissos, coniventes ora aparentemente rebeldes.

No mundo da arte, no lugar da produção de objectos passíveis de ser fruídos como objectos de arte, temos um núcleo íntimo de agentes e são estes fundamentalmente artistas, curadores e críticos. Exteriormente a este processo fabril temos as suas extensões educativas, as escolas de arte e os académicos; as suas extensões difusoras, galerias, feiras, revistas, jornais e livros; as suas extensões de legitimação, museus, bienais, colecções importantes sem esquecer por fim o seu destinatário moderno; o coleccionador privado e o público. É no núcleo interno produtivo que se concentra o potencial ideológico não apenas expresso em objectos, acções, eventos mas também em pensamento escrito. É nas relações destes produtos com a sociedade transmitida pelos enumerados factores externos que se pode com propriedade falar de estética e política. Como foi escrevendo Celant no manifesto de arquitectura radical; a relação com o encomendador da obra é já arquitectura. Assim sendo, afastando-nos das teorias institucionalistas que parecem servir perfeitamente o espírito neo-liberal, poderemos pensar que a poética é já existente no corpo do artista e produz-se a todas as suas relações possíveis; manifesta-se em cada acto de fruição, em todos os momentos de crise, de contingência, de confrontos ou uníssonos gerados pela acção conjunta dos seus intervenientes interiores.

Não queremos dizer com o acima exposto, que se equipara a função de um artista á de um crítico ou curador. É certo antes, que as três funções profissionais manobram cada uma numa especificidade própria para a criação do sentido ou do sensível à experiência. E os papéis misturam-se. Em meios alargados e complexos como os das grandes cidades tal situação torna-se natural. O importante parece-nos, é que em cada momento incida a maior acuidade crítica e o maior espírito de exigência possível ao mesmo tempo que o gesto prévio ao consciente se liberta para ser facto. Nenhuma função nos foi oferecida em avanço, por exclusividade e para sempre. Se as funções de artista, curador e crítico são distintas (e poderia associar muitas outras) tal não se aplica a um sujeito existente e tal não seria outro que não o sonho de patrões de um mundo disciplinar exigido pelo trabalho alienado. (continua...)

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