segunda-feira, 9 de março de 2009

Escritos de Artista (3)





















Ernest Griset

(Continuação) A existência de uma classe “intelectual” ou “criativa” como defende Richard Florida, com modos de consumo próprios, nómada, de emprego precário tornou-se possível exactamente pelos mesmos eventos e canais que tornam hoje omnipresente ao nível global, a prática neo-liberal. São estes a queda do bloco de leste, a expansão da banda larga, aumento de poder de organizações universais como o Fórum Económico Mundial e etc. Se observarmos o caso particular europeu verificamos que a expansão do mercado único, a introdução do Euro, a possibilidade dos voos low-cost, possibilitaram a mobilidade de centenas de milhares de pessoas pelo espaço europeu em resposta a empregos ocasionais. No mesmo processo, a divisão clássica das ocupações e das fronteiras profissionais entrou em crise. A criatividade, para o melhor mas também para o pior, é hoje como nunca foi um factor determinante na avaliação de qualquer candidato a um emprego em quase todas as áreas.

Nunca como hoje, houve tanto interesse à volta da arquitectura e do design, das artes contemporâneas, das artes do espectáculo. As artes, o alternativo e o mainstream, na sua dialéctica de sucessões, constituem-se hoje como uma mais valia na imagem global da cidade, o chamado “efeito Guggenheim” (Harvey) e um instrumento importantíssimo para a manipulação política da opinião pública. Com a preponderância absoluta da classe média ou sociedade de consumo, o modo de vida low wage mas elitista desta chamada classe criativa constitui um apelo director para as tendências de consumo e factor determinante da moda. Ou seja; esta classe “jovem” criativa com todas as suas ramificações entre os media, management, universidade, vida nocturna, queer, politica e claro, mundos das artes, drogas, design e arquitectura, preenche hoje uma tarefa ainda mais colaborante num sistema de soberania global do que acontecia com a velha classe intelectual universitária na chamada era do liberalismo ordenado. Esta atitude acontece devido em grande parte à crise das meta-narrativas modernas e à resultante desorientação ideológica da pós-modernidade. Sem grandes e histéricas conduções de massa, sem mitos ao alcance da retórica criativa, sem o poderoso modelo marxista e derivações do mesmo, o discurso ideológico desta classe criativa enfraqueceu, tornou-se hedonista ou dividiu-se em especializações próprias.

A arte e a vida cultural começaram, com o ascender da globalização e rapidamente, a constituir mais-valias económicas capitais na promoção de mercados. Neste movimento, que suscitou na era Reagan, fortíssimo apoio e financiamento, sem qualquer arma conceptual de oposição, os novos intelectuais foram se rendendo, não apenas ao mercado, mas ao uso dos seus recursos expressivos como factores legitimadores da política que é hoje de facto, globalmente dominada pela doutrina neo-liberal.

Na solidão da lucidez individual não existe nenhum império benigno e tudo, desde o que comemos até ao modo como nos relacionamos, está contaminado por mentiras concatenadas em mais mentiras para a construção da nossa frágil boa-consciencia. Observadores, alguns economistas, intelectuais e mesmo alguns dirigentes políticos sentem o mal-estar de não se sentir a possibilidade de defesa, a agregação das vozes contra a união dos factos.

As próximas décadas trarão uma catástrofe ambiental inqualificável para Africa, calamidade essa que continua a ser “preparada” na massividade consumista das economias desenvolvidas, essas as mesmas economias que, após terem colonizado, exploram agora os mercados locais, as suas matérias primas, secam as águas, secam o pensamento e a memória, abatem a possibilidade do originário e da diferença para lá de valores de marca comercial.

John Tenniel

A classe criativa, filha de uma classe média que não é mais do que servo-motora (controlada, portanto) do dispositivo, esse mesmo que, na sua figuração mais aterradora e totalitária, Foucault chamou biopoder, replica os vícios e a má consciência da progenitora. Edward Said demonstrou-nos já que qualquer voz emanada do nosso lado da barricada mediterrânica em direcção a esse estranho Oriente ou a essa África das oportunidades, perdeu a legitimidade, não pelo passado mas pelo presente arengar que continua. O sujeito europeu ou norte-americano (caucasiano?) do discurso nunca esteve tão carregado de culpa no acto de enunciar como hoje. Perante a consciência histórica ocidental, perante a perda da inocência em face ao outro, mantém-se um mercado sustentador das formas de arruinar ocidentais como a matriz das relações sempre desiguais de ambos os lados do globo. O pragmatismo da exploração é então alvo de um processo de ocultação sob o discurso do multiculturalismo. Esta falta, o engajamento intelectual em discursos de diversão, cai igualmente sobre os “criadores”. A verdade é que a actualidade crítica da classe criativa sobre as instituições não se sente ou não é efectiva. Frequentemente comprometidos com o magma do mercado e por vezes directamente conotados com os seus porta-vozes políticos, os criativos perderam independência de manobra para a livre expressão da crítica ao sistema. Ao fundirem o discurso político como o artístico é sempre no segundo modo que este é recebido. Por outro lado e apesar de culpados, o potencial desta massa nómada, irrequieta, atenta está ligada à mais humana das faculdades; o pensamento e a sua expressão livre. A poesia exalta o poder pensar, o poder viral e transgressivo sobre todos os discursos instituídos.

A classe intelectual e criativa, de formação maioritariamente progressista, cai, entre muitas outras, em duas faltas recorrentes. Em primeiro lugar é possuída por uma incapacidade ou receio de criticar as instâncias de mecenato sejam estas estatais ou privadas. Esta impotência crítica agrava-se pela conotação que em geral se faz do discurso crítico realizado por um artista, com o interpretável do seu trabalho poético. Esta confusão é desnecessária porque se pode efectivamente separar os dois discursos. A validação de um discurso crítico de um artista está então associada à legitimação não apenas da obra desse artista como da conexão reconhecida entre esta e o dito discurso. A outra falha recorrente, comum aos que pertencem aquilo a que os franceses chamam “esquerda caviar” é a auto-exclusão de qualquer responsabilidade política sobre o sistema simplesmente pela solidariedade abstracta com as vítimas e que tem o seu contra-plano na figuração de símbolos de “iniquidade” contra os quais se destila todo e qualquer discurso crítico (Bush, o Vaticano, o fundamentalismo, Monsanto, McDonalds, Microsoft e Cocacola são os exemplos básicos e comuns desta diabolização) sendo que quase todas as vítimas são vítimas da vilania colectiva da mesmíssima classe média de onde provêem.

James Gillray

A nossa ideia é que, paradoxalmente, no admirável mundo do liberalismo e da plena e literata democracia, critica-se menos e com inferior profundidade. Não podemos deixar de associar esta observação à crítica de Lecourt ao pensamento francês pós-68; o estabelecimento e a entronização (justa) de grandes referências intelectuais como especialistas ou profissionais da crítica, retirou força a uma possibilidade de insurreição do pensamento em bruto e em massa. O facto da percentagem cada vez maior de população de formação universitária não utilizar o seu potencial insurreccional crítico e político no quotidiano torna-se trágico à vista da progressiva desistência dos próprios pensadores profissionais, dos sonhos que tiveram em A.

De todas as categorias profissionais são os artistas, naturalmente, a estar aptos para dar saltos de tigre, viver à custa do poder, com poder, pelo poder e contra o poder, fieis soldados e abomináveis traidores e assassinos, numa existência desequilibrada em mil corpos, pela acção, pensamento, poética, impostura.

E não dançar esta dança macabra com quem nos determina a vida é miséria pior do que morrer. (continua....)


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