Anatoly Osmolovsky Bread (2006)
(continuação) Numa conversa na recente exposição Lá Fora, na Central Tejo, ao falar com um profissional da crítica de Arte que tenho por amigo, falou-me de um certo blogue anónimo que andava por aí a circular, que ainda não tinha lido, mas que desde logo condenava pelo covarde anonimato de falar dissimulado sobre a obra de quem assina. Disse-lhe imediatamente que era e sou eu (Gonçalo Pena) um dos “cabecilhas” de tal acto de covardia (não gostei de ouvir o reparo e não seria capaz de manter o silêncio). Da surpresa dele nasceu uma conversa onde fomos pondo sobre a mesa questões sobre o anonimato neste lugar específico. É dessa conversa e de conversas posteriores com outras pessoas que nasce este texto.
Esta discussão visa esclarecer as razões mais profundas para a existência de um espaço de crítica para “artistas” e simultaneamente tentar obter dados que permitam avaliar as condições de possibilidade de existência dessa crítica. A questão do anonimato, usual pelo uso de pseudónimos nos mails, no Messenger etc., a bem ou a mal, acabou apenas por ser o detonador destas questões.
Observando o objecto da crítica de arte, ou seja, aquilo que ordinariamente chamamos “mundo da arte” e ao pretender avaliar os regimes de existência desta crítica temos forçosamente de adquirir modelos de análise noutros campos. Esta transferência de âmbito, do mundo artístico para a sociedade em geral, justifica-se pelo facto de qualquer subsistema social replicar a anatomia estrutural do sistema “parental” de onde é originado. O mundo da arte tal como o conhecemos é um fruto necessário das contradições inerentes ao mundo moderno. Obviamente nada disto é novo e pelo contrário, tem vindo a constituir-se como a temática dominante para os discursos politicamente motivados por artistas e curadores (Documenta XII) à procura de objecto relevante numa paisagem caótica de ruínas utópicas e emergências locais. Mas se tal assunto não é novo, não deixa de ser actual e por temos de reavaliar permanentemente os utensílios de análise, será impossível não passarmos de novo por uma revisão do conceito marxista das relações de produção.
A herança marxista é ambivalente à luz da actualidade. Se por um lado faz parte, como símbolo ou discurso científico ultrapassado, consoante a posição política do observador, dessa textura épocal em descalabro (a modernidade), este mesmo marxismo, já não como ciência mas como ideologia (Ricoeur) é por outro lado reavaliada como uma inesgotável fonte de metodologia de combate. Geertz na antropologia recuperou contra as pretensões modernas o valor ideológico como edificador de situações locais de emancipação. O modo como nos podemos valer de discursos não científicos como alavancas válidas para questionar a realidade é um factor libertador para a intervenção popular no seio dos debates especializados. A ideologia, ou o conjunto das coisas que se vão dizendo sobre grandes temas, com mais ou menos “correcção” constituem uma base legitima de questionamento e participação de todos no cenário da excessiva especialização e perda de controlo sobre a actualidade. Nesta perspectiva da recobro da legitimidade operativa do ideológico, o próprio marxismo torna-se então recuperável em alguns, muitos dos seus aspectos como um gerador dessa vontade actualizada da praxis. Embora tenham, desde o século XIX, mudado os termos clássicos da arena da luta de classes (burguesia e classe operária), o instrumento analítico das relações de produção mantém-se então actual no quatro presente de desenvolvimento e crises do capitalismo.
A classe operária transformou-se ou cedeu o seu papel na dramaturgia marxista de “classe do destino” a novos actores devido ás várias transformações operadas na estrutura produtiva.
O mundo industrializado ou pós-industrializado mantém-se, porém, central na definição dos modos de vida determinantes e da criação de sistemas que engendram por si outros subsistemas num efeito de transmissão por vagas. A proeminência da China e logo a seguir da Índia, como novas superpotências económicas e novos super-mercados, por si, pouco ou nada importa de verdadeiramente novo às estruturas produtivas da sociedade; foi e continuará a ser sobretudo a evolução tecnológica a verdadeira alavanca revolucionária na criação das novas classes produtivas e por consequência das novas relações daí engendradas. Se nos facultam um parêntesis então daqui surge que o designer é um ideólogo da tecnologia. Seria ele o responsável por transformar numa arena de combate social o interface, o lugar ideológico onde o utilizador ou consumidor é hoje orientado, e não teria de o ser, pela tecnocracia.
A classe dominante industrial, comerciante ou financeira vive uma relação cada vez mais intrincada com o enorme universo assalariado urbano. A recente crise demonstra bem a importância do ânimo desta classe média, que, ao perder a confiança faz soçobrar todo o sistema. Todo o mercado e as suas agências se orientam para a satisfação desta enormíssima fatia da população ocidental. Mais do que produtiva, esta classe é instrumental no modo como consome; é a já velha lengalenga baudrillardiana sobre a sociedade de consumo. A grande urgência hoje, é contrabalançar os efeitos planetários que virão dos biliões de novos consumidores das sociedades chinesas e indianas. Por baixo de toda esta gigantesca e pesada classe média vive outra, a miserável. Esta veio a substituir a do lumpenproletariat (proletários miseráveis) no sistema classista de Marx. São desempregados, imigrantes precários, indesejáveis, populações da africa sub-sahariana, os tais despojados em luta de que fala Negri e afinal o verdadeiro sujeito central da dramaturgia do pensamento pós-colonial.
São os modos de produção a determinar não apenas as classes mas fundamentalmente as suas relações. Marx não poderia prever em pleno século XIX que o modo de produção sobre o qual hoje incidiria a sua analítica do capital seria o complexo gerado pela autonomização e desenvolvimento da tecnologia (há quem defenda que se constitui como uma nova forma de existência “biológica” autónoma tanto da natureza como da cultura) e o consumo motivado na exploração do desejo das classes médias. As relações de classe manifestam-se complexamente neste cenário, aquilo a que frequentemente chamamos sociedade pós-industrial ou simplesmente sistema, efectividade e actualidade. (continua...)
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