domingo, 15 de março de 2009

Escritos de Artista (4)








Ibon Aramberri

À crise de valores sobrepõe-se agora uma crise económica e de emprego. Durante o tempo que vivi na Alemanha e particularmente, nos momentos em que percorria as ruas de Hildesheim, uma pequena cidade episcopal na Alemanha profunda, que em nada tem a ver com o cosmopolitismo de Berlim, ia-me perguntando, ou melhor, experimentando o meu imaginário em tentar perceber aqueles rostos carregados na fraca luz invernal a iluminarem-se na perseguição de bruxas e judeus. Não foi nada difícil. A tradição do direito germânico é a do direito privado. Foi desde a obscuridade dos tempos uma sociedade que dava mais valor às colheitas do que à vida. A propriedade, o ter como prioridade sobrepôs-se às tradições do direito público mediterrânico. Weber demonstrou-nos também como a ética do protestantismo foi crucial para o levantamento do interdito moral que o catolicismo colocava sobre a riqueza, ausência de culpabilidade essa que prepararia os espíritos do norte da Europa para o desenvolvimento e triunfo do capitalismo e do liberalismo. O resto já se sabe: o capitalismo foi o movimento revolucionário, no seu âmago económico e nas suas consequências socio-políticas, que mais profundamente transformou o planeta.

Esta introdução histórica serve apenas para sublinhar a desconfiança que sinto pela natureza das massas embrutecidas e alienadas dos valores humanos mais profundos. O Humanismo está em crise. Eu sei. Têm-mo dito vezes sem conta. Vive-se num conforto estranho e instável, numa espécie de fim de festa como sucedeu na Viena de Zweig. Em 1929, hoje e no futuro, a classe média, alemã, francesa ou portuguesa, tolhida pela crise e pelo pânico só precisa de um líder demagogo para se pôr por aí fora a linchar tudo o que entender como ameaçador ou diferente. Exagero talvez.

A memória das infâmias, na história universal, ou a memória de catástrofes parece nada contribuir para o evitar das mesmas. Esta distância e em simultâneo, familiaridade televisiva, que temos de todos esses massacres levaram a uma anestesia geral sob a forma de um recuo do mundo real, uma incapacidade de choque levando à desistência do agir. Que tal suceda com as classes médias cumuladas de pequenos nadas no seu quotidiano, tal não nos espanta; mas como poderá tal coisa suceder com os intelectuais? Não será estranho a ninguém que um inconsciente tudo espezinhe em nome daquilo que não é mais do que uma perspectiva apertada; mas o que dizer sobre quem tem por formação acesso a todas as operações necessárias para a obtenção e divulgação dessa consciência colectiva necessária? O que dizer do abandono da luta daqueles cuja vida e pensamento gira em torno daquilo a que se chama “cultura”?

Artur Zmijewski


Sabemos o que se cria quando se apaga a memória a alguém retirando-se a essa pessoa toda e qualquer ferramenta crítica; obtém-se um servo. E era esta justamente a base do conceito marxista de alienação; É este conceito amplamente actual perante o embrutecimento já não pela forma do trabalho mas pela forma de consumo. Aliás, a actualização foi amplamente realizada por Debord em A Sociedade do Espectáculo. O fantasma do horror inimaginável não se ultrapassou e a sua evocação está e esteve sempre ao alcance do intelecto. Transmitir para um lugar que possibilite o agir, as visões do horror é uma responsabilidade ética do poder pensar. Rememorar esse terror é uma das mais graves e necessárias acções da poética politizada.

Mas o sonho de que a educação generalizada poderia trazer consigo uma economia planetária justa parece falhar nas bases. A escola submeteu-se aos interesses sistémicos da sociedade de consumo. Acreditámos que a educação seria o anfiteatro político por excelência, o lugar da experimentação em democracia de coisas tão opostas como a aprendizagem de modelos adquiridos e a liberdade crítica para os ultrapassar, viver as hierarquias para as subverter na livre experimentação de símbolos e linguagem, simular novos modelos de coexistência e produção de efectividade. O que sucede é o contrário: os professores mantêm uma autoridade baseada em leis corporativistas onde o entusiasmo juvenil da experiência e da partilha descobre bem cedo o seu ocaso para se transformar em desilusão, desistência ou em oportunismo. Habitei intensamente a vida durante dez anos de uma escola superior de Arte e Design. Muitos dos que viveram ao meu lado partilham (secretamente) esta mesma desilusão - artistas e intelectuais, com méritos nas suas áreas de trabalho, pura e simplesmente comportam-se como mercenários perante os piores exemplos de usurpação tecnocrata e merceeira daquilo que deveria ser o ensino e transmissão de ideias e valores.

O permanente auto-questionamento ético de uma escola é perpetuamente silenciado pelas suas estruturas de poder (pensar cansa!). O resultado da traição dos intelectuais na escola de artes é a automação do processo de transmissão de conhecimentos em função da criação de “artistas-funcionários” submissos ao sistema de mercado. Mas este é um dolo generalizado nas universidades em geral e por arrastamento levado à totalidade do tecido social.

O apelo vai sendo feito à insurreição do pensamento, a um reatear da chama da liberdade crítica. Aos artistas, ao poeta, ao pensamento crepuscular, ao que ultima o seu desejo em poder o intangível cabe a grande parte da luta naquilo que para além de guerra, é, só e apenas, um incomensurável acto de amor, sem lugar nem tempo fixo.

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