terça-feira, 21 de abril de 2009

Escritos de Artista (10) Conclusão

AES+F

(continuação) Outro factor é ainda mais determinante para a inexistência de critica realizada por artistas plásticos a objectos, eventos ou textos realizados por curadores; as origens das carreiras profissionais são na maior parte das vezes diversas. Se um curador é também um artista então os problemas resumem-se ao já focado na relação crítica entre artistas, mas de feição menos complicada. Com efeito, quando um artista realiza uma curadoria, esta actividade não é levada tão a peito como a sua produção artística própria. Perante uma crítica bem-intencionada desenvolvida por um outro artista a reacção não será então tão má. Maiores dificuldades surgem quando o curador é um crítico ou um intelectual. Dois factores prejudicam a subsistência de um diálogo que suceda a uma crítica inicial por parte do artista: em primeiro lugar as origens profissionais que podem ou não legitimar, aparentemente, um ou outro discurso. Um artista tem habitualmente um percurso artístico e um nome na praça construído com aquilo que chama “Arte”. Um crítico, oriundo muitas vezes das ciências humanas, construiu toda a sua obra justamente pela crítica, pela investigação teórica, enfim, pela publicação do seu pensamento e opiniões fundadas. As competências ou inclinações de uns são efectivamente diversas das do outro. O modo de olhar também. O resultado escrito das reflexões de ambos naturalmente revelará pontos de vista diversos e por vezes polemicamente contraditórios.

Uma dificuldade inerente à atribuição de legitimidade crítica a um artista é a comparação da crítica ao seu trabalho “artístico”. No entanto é perfeitamente concebível a existência de um gosto, opinião e modo de olhar de um artista perante o mundo que pouco tenha a ver com o trabalho pelo qual ele é conhecido; as pessoas não são uma espécie de locomotivas em trilhos predeterminados e por outro lado, a obsessão com a coerência, aplicada demasiadas vezes como um juízo de valor sobre este ou aquele trajecto artístico, serve mais a uma catalogação fácil e ao palato do coleccionador do que para caracterizar a qualidade poética desse trabalho. É portanto perfeitamente possível o desenvolvimento de uma crítica liberta da relação com a actividade prática do artista. Mesmo que a perspectiva de um artista sobre determinado evento seja facilmente lida como uma extensão das preocupações ou inclinações expressas no seu trabalho, tal facto não retira obrigatoriamente a propriedade à observação feita.

A crítica profissional nascida da estratificação funcional que se foi formando com o desenvolvimento do mundo das artes, foi sendo responsável, a par das contribuições académicas para os estudos de arte pelas restantes ciências humanas, pela consignação dos discursos escritos dos artistas a uma manifestação enquanto tal. A partir de meados do século XVIII e com o acelerar da modernidade os artistas começaram a escrever furiosamente. Com as artes ainda estruturadas em pintura e escultura encontramos alguma filosofia da arte (Hogarth é um dos primeiros a escrever sobre poética e política), teoria da cor (Runge), diários, contos, manifestos. A crítica quotidiana não é o género mais frequente de entre estes. Em Portugal o único artista plástico com uma larga produção literária foi, como já pronunciámos, Almada Negreiros; é claro que no seu caso a duvida (frívola) subsistirá sobre qual das artes terá a supremacia na sua obra. António Areal e Álvaro Lapa são dois exemplos mais recentes de artistas com grande capacidade crítica mas não publicaram regularmente. Se tivessem sido coetâneos das possibilidades tecnológicas que hoje se oferecem á escrita quem sabe o que teriam feito?

A verdade é que hoje parecem estar os papéis de quem é quem e faz o quê, perfeitamente delineados no âmbito do mundo da arte portuguesa. Os artistas fazem coisas e quando escrevem estes são “escritos de artista”. Este blogue pretende simplesmente, contrariar este mau habito de designar deste modo tal coisa e formar uma plataforma exterior à produção de arte, de registos de consciência de quem a faz sobre coisas outras para além do seu trabalho. Não sabemos se este é um acto de transgressão porque em lado nenhum estão inscritos limites ao âmbito de experiência de ninguém. Também pretende este espaço constituir uma base de ensaio para quem quer começar a escrever e a experimentar os resultados do que se publica.

Perante determinados eventos, perante o novo, ensaiam-se novas formas de combinar palavras, semânticas, pontuações, durações. Enfrentamos diariamente desilusões e promessas, actos poéticos que nos impelem à música ou a escrever como música, ou como entendemos música na escrita; outros fazem-nos pensar num mundo concreto, revolver ideias preconcebidas, politica sobre os mais variados temas; sexo, raça, migrações, neo-colonialismo, neo-liberalismo, indiferenciação, vida nua. Outras levam-nos pura e simplesmente a um silêncio, silêncio protector, silêncio de incapacidade de dizer o que seja.

Muntean e Rosemblum

“Demasiados livros?” Lia-se à tempos no Reactor, um Blog de crítica de design da autoria de José Bártolo. “O elogio da produção, há muito, leva-nos a produzir mais do que somos capazes de consumir. Ora este princípio da produção insustentável generalizou-se. Encontramo-lo nas Universidades e Centros de Investigação – os académicos são verdadeiramente condicionados a escrever muito e a ler pouco – encontramo-lo nos gabinetes de design – estando os designers a tornarem-se emissores hiperactivos e, na correspondente medida, frágeis receptores.” Quando redigi a minha tese de mestrado, e foi justamente sobre design, senti um pouco o contrário. Por essa altura, 2001, ainda não tinha acontecido a expansão da blogmania e foi difícil descobrir na web, textos de teoria do design que me interessassem sobre o que andava então a escrever. Estranhamente sucede o seguinte: se a cultura textual trouxe pouca reflexão sobre design em Portugal, a cultura hipertextual e a generalização da possibilidade de publicar, fomentaram este boom de blogues sobre projecto, onde as opiniões acutilantes sobre toda e qualquer intervenção, subsídio, objecto sucedem-se a bom ritmo, de tal modo que permite a JB referir-se a um surplus de escrita. Nas artes sucede o contrário. A navegação nas teorias de arte do século XX e já XXI é cerrada de referências clássicas, escolas, tendências, inclinações, as quais rapidamente ganharam os seus defensores e académicos. O mesmo boom de que falei há pouco tem sido bem mais envergonhado no que diz respeito à fundação de blogues de crítica de arte e do que a rodeia. Existe o de Alexandre Pomar, que traz para este media a experiência que teve ao longo de todos estes anos e a Arte Capital, que é mais um jornal digital do que blogue. A Isabel Carvalho farta-se de escrever no estilo que lhe conhecemos e gostamos, mas de resto nada mais. Estranhamente continuam a existir mais espaço dado a críticas na imprensa (mesmo que este espaço tenha nos últimos tempos a ficar ridiculamente pequeno) do que criados na Internet. Também será importante mencionar aqui alguma crítica de arte que vai sendo feita por críticos de design, nomeadamente o já citado José Bártolo e Mário Moura no The Ressabiator (Não conheço tudo e posso estar a ser injusto por não mencionar outros casos).

Deseja-se mais; deseja-se que, ao contrário do que teme JB, o aumento de artistas a ensaiar escrita sobre o que lhes é dado a ver, melhore a qualidade da crítica neste país, pela exigência de clareza trazida pelo simples aumento de opiniões expressas.

A questão mais importante e que aqui fica suspensa e com a qual iniciámos este ensaio, é o pensar constante sobre o que nos move. A arte cativa-nos e movimenta o imaginário através de soluções que se abrem para espaços de sucessivos de mistérios e razões obscuras, infinitos ao espelho de gás da cinza parda ao negro, prenhe de detritos. E a intenção da escrita, no meu caso particular, surge de um lugar de intervenção onde a pintura não vai. A escrita em mim parte de um lugar preciso. Um asco ou raiva nascido de uma debilidade culpada. Uma revolta em lume brando a meio caminho do luto. Não concebo a deserção do mundo. Mesmo perante a impossibilidade do salvamento universal não concebo a deserção do possível no impossível. Não concebo a libertação para o outro lugar, o das pequenas coisas, variações de luz em tempo perfeito, um portal aqui mesmo ao lado como limiar de outro mundo. Não concebo a viagem sem viver a consciência do outro, da catástrofe desse estranhíssimo outro que um dia imaginei a morrer aos dentes de uma boneca de ferro. A escrita é uma confissão de impotência, a crítica é uma nota de culpa. Todos os artistas são culpados porque não chegámos lá e não concebo a inconsciência colectiva desse facto. Mas eu sou eu. O meu poder messiânico acaba aí nesse sítio onde acaba e que não sei muito bem onde morrer.

Um último esclarecimento sobre o anonimato; este blogue não é só anónimo. É nónimo, homónimo, heterónimo, ubiquónimo, andrónimo, panónimo e pantónimo. Se alguns dos presentes sabem quem são e onde habitam, alguns dos presentes colaboradores ainda não germinaram ou sofrem de alguns problemas identitários e profissionais porque ainda não foram á loja do cidadão. Andam à procura de um cadáver que lhes faça justiça ao imaginário. Outros ainda não decidiram o sexo, a idade ou a cor da pele e não querem que decidam por eles. Outros querem ser sempre e sistematicamente o outro, experimentar para lá dos chãos da corveia de onde vêm.

Este é um blogue de artistas, essa palavra que detesto, por me fazer sentir gado. Sempre preferi a palavra autor. É a minha proposta a quem me lê – alargar o espaço do agir agora à responsabilidade transgressora da autoria.

Este é um blogue de autores.

3 comentários:

  1. Parabêns Gonçalo pelo texto, não concordo 100% mas não deixa de ser gratificante e sabe mesmo bem os muitos minutos de leitura.
    Obrigada.

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  2. Obrigado pela paciência, trabalho e intenção de escrita deste trabalho.

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  3. Agora resta que comece a desenvolver uma participação e a criar um espaço de diálogo com consciência crítica.
    Ninguém nasce com um programa pré-carregado, que lhe atribui um papel na Sociedade.
    Há um desenvolvimento e fazem-se escolhas.
    Ser-se artista, ou autor, é uma delas, mas nesta fase da modernidade nada impede que se possa ser mais de uma pessoa.
    Somos o que o tempo e a nossa vontade nos deixa ser.

    A potêncial não aceitação de que um artista possa fazer crítica de arte é apenas um preconceito formal.
    A única questão é de que um artista-crítico, por se mover no mesmo campo de acção daquilo que também critica poderá levar a um entendimento de que a sua crítica tem uma carga política. Porém vejo isso como o príncipio de um sistema saudável, que não precisa que seja alguém de fora a defini-lo, mas que tem capacidade de se definir ou a criar um discurso (ou mais; base de conhecimento) que permita a sua definição.
    Não fazê-lo é aceitar ser-se "gado", pois por esse ângulo, apenas a figura do "pastor" crítico é que daria sentido à arte e à práctica artística.
    Mas há que contar com o distanciamento, que todos podemos ter relativamente ao ambiente profissional que nos rodeia.
    Somos cidadãos livres e como tal somos igualmente livres de ter uma opinião formada e com uma base teórica sobre os factos.
    Mesmo não tendo uma visão completa sobre o contexto, também do diálogo entre pares pode ajudar a alcançá-lo - é uma questão de derrubar umas barreiras mentais e gerir novas associações, que não tiveram sido ainda assimiladas.
    A crítica não é uma Ciência Exacta, mas sim a base de um processo dialético, que felizmente,o espaço do blog tem a oportunidade de gerar e que ultrapassa as limitações geográficas (não tivesse eu a escrever estas palavras, neste momento).
    É de aproveitar a tecnologia que serve de suporte a esta iniciativa, para lhe dar vida; afirmando ao mesmo tempo a necessidade de existir uma partilha de opinião sincera e justificada.

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