O senhor andava com passo lento de um lado para outro dentro daquela caixa de paredes brancas, e lavava os nossos olhos com ele. Tinham posto as fotografias por aquela ordem, com algum critério agregador a cada sala, quase só um pretexto, e estava bem. Agora, pessoas rodeavam-no e faziam perguntas, porquê isto ou aquilo acerca daquela, porquê cá ou ali acerca desta. O suor rodeava-lhe um pouco a testa larga e dava respostas, cravando bem no chão os pesados e simpáticos pés, para se lembrar de falar apenas do que é crucial e não responder no mesmo gel de intelecto com que o perguntavam algumas vozes. Jochen Lempert. Um pato, trata-se de um pato. Um pato apenas, e com uma bela luz. A resposta é apenas um pouco possível.
Todas as fotografias estavam na parede directamente, sem moldura. Todos os papéis eram baços, mate, tipo papel-de-desenho. Todas as fotos a preto-e-branco, rectangulares. As dimensões variavam muito, desde o tamanho de uma mão quase até ao de um corpo inteiro. Todas as respostas eram muito simples, como o tamanho da grossa mão dele às vezes a conduzir-se no ar para explicar esta ou aquela parte. As pessoas ouviam-no e seguiam o seu trajecto, os intelectos delas ficavam para trás, com dúvidas e tagarelando entre si acerca da simplicidade demasiada daquilo tudo, ouvindo apenas a parte final das frases dele e encaixando depois nesta uma primeira parte que conviesse às suas dúvidas. Ele também teve as suas dúvidas: que grupos de fotos fazer para estas seis ou sete câmaras claras de exposição? que lhes vou dizer eu para responder a esta pergunta que não quer ver? Entre outras coisas muito mais relevantes, é um alemão competente. Cumpre e responde. Fala apenas das circunstancias de cada foto, materiais reunidos em torno de um instante. O que as fotos não dizem ele faz o favor de permitir-lhes continuarem a não dizer. É um fotógrafo técnico de zoologia, para ganhar a vida. Biólogo de formação. E depois faz também Isto. O que se Viu na Culturgest. Era uma paisagem, uma paisagem de animais pensantes que estavam naquela visita guiada, uma migração de gansos de cultura com o artista à cabeça. Sobre eles caía a luz vertical e aberta do Trabalho de Campo de Jochen Lempert ser extraordinário com meios modestos. Foi isto que captámos. Com os nossos meios: meio-modestos, meio-demasiado-entusiasmados-para-reconstituir-em-rigor-o-que-ali-estava. Este um bom sinal: os pensamentos migram para as mãos tremendo e estas esperam apenas escrever o crucial.
É importante falar de atenção e rigor. É importante não mencionar rigidez, não lá estava. É importante falar de calor, mas não de afectação, que também não lá estava. É importante não falar de jogo, porque o que lá estava era apenas a atenção ao sumo lúdico de uma vida que não cessa de outrar-se. É importante falar de desenho, que não lá estava mas era convocado por tudo o que lá estava. Uma textura de folha, uma cabeça de veado encimada para a esquerda, um incêndio numa árvore, a luz de meio-dia a levantar voo num pássaro parado, um bando rigorosamente ponteando o ar em forma de V, uma onda enorme dividida por seis páginas grandes, uma sucessão de cabeças de Dódós empalhados, uma fotografia exacta e involuntariamente igual a outra tirada dez anos anos. "Não penso muito em técnica", disse. Vê-se. Tudo o que foi apresentado na Culturgest por Jochen Lempert dava-se a um ver muito evidente, logo, mas não se dava nunca por inteiro. Nem era obscuro na sua maneira de guardar sempre silêncio. Sem necessidade de fazer jogos ou criar enigmas. Crê-se que sabe que isso surgirá irremediavelmente ao se olhar com muita força para as imagens. Para quê fazer mais peso ainda? Rigor leve. Mesmo quando apresenta um assunto em movimento (um bater de asas, uma massa líquida em agitação, um fogo devorando), a sua atenção desenha sempre com rigor, é sempre Isto, sem petrificação mas também sem desvio. Uma pedra em papel voa. Mesmo quando há um movimento de ambiguação constante dentro de uma imagem, não é pelo ardil que a imagem se apresenta, mas pelo tocante de cada uma das instancias de percepção que convoca. É uma paisagem. É um ganso. Que paisagem. Que ganso. Que modo de um se dobrar noutro.
Vou falar de inocência. Aquela malga pura que normalmente só as crianças parecem ter hoje permissão de segurar. Vou falar de inocência para falar de imagens que devem tanto ao conceptualismo quanto à fotografia de arquivo, tanto a Muybridge quanto a Blossfeldt, mas que se devem sobretudo à atenção curiosa e rigorosamente registada de Jochen Lempert se ter imposto sobre a vontade de fazer arte. Vou deixar esta palavra aqui a ecoar: inocência. Mesmo que doa ou incomode ouvi-la aqui, como as imagens e as palavras de J.L. a lavar-nos a atenção por dentro do nosso cérebro que dentro do museu naquela visita guiada queria arte mas encontrou atenção.
É curioso que foi exactamente essa a palavra que me ocorreu - inocência - para descrever a sensação com que saí da exposição. Não me apeteceu ver mais nada durante uns tempos. Encheu-me. No bom sentido. Perdi a visita guiada.
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ResponderEliminarNão sei se será inocência, mas ao vistar esta exposição fazemos uma pausa, entramos num intervalo de espaço e tempo qualquer. Tudo o que trazíamos ficou à porta ... estas imagens sensíveis transportam-nos para um mundo, que muito embora seja também o nosso, parecíamos desconhecer.
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