quinta-feira, 14 de maio de 2009

Arte sobre Critica (2ª Parte)


(continuação) O que poderá ser então crítica institucional? Constituiu-se no tempo como um ramo temático do conceptualismo originado com o velho Marcelo D., mas sobretudo com abertura de campo experimental aberto dentro do mundo da arte que possibilitasse a inclusão do texto crítico sobre o próprio mundo da arte. Raramente foi esse discurso verdadeiramente auto-corrosivo; quero com isto dizer que, raramente na história da arte pós-duchampiana, o discurso da crítica institucional se voltou com efeitos sobre o próprio produzir artístico. O urinol, ao desmascarar pelo simples facto de ser exposto, todo o maquinismo de entronização operado pelas instâncias que instituem o que é (ou quando é) arte, preencheu a essência de um gesto verdadeira e sinceramente crítico, mesmo que o silêncio posterior de Duchamp tenha incomodado artistas-activistas nas décadas de luta de sessenta e setenta. O que aos meus olhos confere veracidade a gesto de Duchamp não é o gesto isolado da exposição do pissoir mas a consciência a partir perspectiva que hoje nos é dada pelo ambiente social e político dos anos em redor da primeira guerra mundial; - Dadá em redor de Duchamp, para além de outros movimentos e sobretudo escolas (Stijl, Bauhaus, Vkuthemas) é de facto a caixa de ressonância da vontade revolucionária e sobretudo da aliança entre os intelectuais e o progressismo da qual Duchamp retira reflexões e intuições.


A acusação de “traição” apontada aos artistas foi sendo feita e subindo de tom e clareza, paralelamente ao surgimento e à consolidação da consciência revolucionária nas fileiras dos próprios autores. Entendo, nesta perspectiva que se pode falar de crítica institucional verdadeira na retirada ou deserção que o pintor socialista William Morris executa a partir do mundo da arte pela arte em direcção ao credo de uma arte aplicada ao serviço verdadeiro da sociedade (crafts). Aqui está contido um nó importantíssimo e que marcou o início da consciência do design como arte socialmente crítica. Ossip Brik, Tretyakov, Kruchenykh e Levidov (LEF) por volta de 1923, defendiam em termos hegelianos o fim do conceito burguês da arte. Nos anos 60, Germano Celant ao preconizar a arquitectura radical numa Itália em convulsão política actualiza o lugar desse contornar do mundo da arte em direcção à utopia desta vez perante as pesquisas vanguardistas dos gabinetes de arquitectura e design Archizoom ou Superstudio.


Corporizada e sensorialmente expressa com violência a crítica institucional na abjecção do urinol ou da merda de Manzoni o discurso crítico institucional institucionaliza-se. O mundo da arte aceita e incorpora com frisson e prazer a provocação. Se com Duchamp a provocação demorará tempo a ser aceite, com Manzoni é imediatamente deglutida e digerida. Este desvio histórico serve apenas para sublinhar a estreita dependência a partir da realidade sócio-política, das condições de existência de plataformas efectivas para a crítica institucional da arte. Para além do credo Benjaminiano sobre o potencial revolucionário das imagens tecnicamente reproduzidas, só uma convulsão social violenta e hegemónica (Gramsci) estabeleceria as condições efectivas para a produção de uma “arte” crítica ao modo burguês de instituir.


O lugar chave da institucionalização da poética como arte contemporânea continua a ser a assinatura. Foi para Morris a moral de um arte espiritualmente superior e anónima que tomou como modelo crítico para o sistema social e produtivo da sua época. Foi também baseado na ideia de servir uma causa maior, a da revolução, que no século XX o artista revolucionário acabou por viver a tensão entre duas autoridades, a sua e a do partido ou causa. O nome do autor foi, desde que a arte se autonomizou como tal, o centro focal de todos os discursos, a unidade base que permitiu a construção de uma história descritiva, interpretações, discursos apologéticos, monográficos, o supremo índice de catalogação e organização do que nunca poderia ser organizado. A organização de um mercado fez disso a sua condição de base. Se a crítica institucional é dirigida à relação entre o capital e a mercantilização da arte e a sua própria existência como sistema sócio-económico, é na crítica da economia política do símbolo (Baudrillard), incorporado no nome do autor, que encontra a sua nemésis. Um dos autores expostos, Miguel Carneiro, com o seu “cospe aqui” situa-se a si e ao trabalho exactamente neste ponto de tensão entre o anonimato como condição essencial para responder efectivamente problema do sujeito do discurso crítico (quem fala?) e o fim dessa condição a partir do momento em que o próprio acto crítico deixa de ser documento para passar a ser objecto de autor.


Resta a possibilidade de crítica institucional despojada da sua efectividade. Será interessante pensar agora nas motivações de uma critica consciente da sua própria falência. Como criticar o instituir da arte no preciso momento em que a crítica é instituída como tal, inter-pares a outro género dito burguês? Não será a crítica institucional instituída vítima do mesmo jogo de espelhos ao qual Baudrillard submeteu a crítica da economia política? – Um mero modelo de simulação? Mais; será a crítica institucional um mero reflexo narcísico da própria institucionalização personificada nos seus agentes (artistas, curadores e outros)? É este último, aliás, o sentido que leio na já clássica série de desenhos sobre configurações institucionais (museum, gallery, etc.) realizados por Pedro Barateiro e que também se puderam ver nesta exposição. Se estas suspeitas forem verdadeiras como penso, então a crítica institucional é apenas mais um género tão burguês como outros, tão válido ou inválido como outros, pertinente ou impertinente mas apenas na sua efectividade dramatúrgica ou espectacular. (continua...)

2 comentários:

  1. Gostava de te propor mais um elemento à tua reflexão que se prende com uma conversa a que assisti de Jean Luc Boltansky na Staedlschulle em Frankfurt. Numa abordagem à esquerda, à qual ele se sente intimamente ligado como alguém que vive uma memória "poetisada" de 68, faz uma crítica áspera à participação da esquerda no sistema democrático-capitalista.
    A seu ver a crítica dá a ver, torna visível as falhas do sistema, donde, a critica da esquerda, é essencial para a permanente reforma do sistema (teoria que encaixa na perfeição com a teoria da invisibilidade como arma de Jean Luc Nancy) .
    Em arte- porque podemos dizer que ambos os sistemas democrático/capitalista e arte são estruturas rizomáticas - a critica é um movimento reformista, burguês no sentido em que deseja manter a estrutura intocada. O problema aqui parece-me ser a forma como tornamos visível no sentido em que um pensamento crítico toma forma, apresentando-se .
    Existe uma dicotomia na apresentação da peça de Duchamp e na crítica de hoje que não se apresenta antes re-apresenta-se (representa-se), dando lugar a uma visibilidade que tem a ver com a compreensão do objecto que assim se torna confortável porque manuseável.

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  2. Mas, Hugo... uma coisa é crítica; outra é arte. Ambas podem conviver na mesma situação ou objecto, mas as finalidades são diversas. Creio na crítica política, creio na força poética da arte; tal como creio na força poética de muitas coisas para além da arte (Crítica poética, por exemplo) Creio mesmo e ainda na possibilidade de uma colusão entre poética, política e justiça (um pouco o lugar da razão entre liberdade e igualdade. A arte não é o sítio exclusivo da acção crítica de um artista. Porque não a acção política pura e dura? porquê esta exibição de "engagement" exclusiva à produção artística? Porquê todos estes sermões dados de púlpitos suspeitos...?
    Mas quase todos com mais ou menos piada fizemos declarações políticas e particularmente de política anti-institucional nos nossos trabalhos. Mas não lhes gosto de chamar obras... opus, com toda essa carga autoral e solene. Prefiro pensar a reflexão sobre as condições de produção de arte, reflectidas no trabalho "artístico" como ensaio. O ensaio mantem-se sob escrutínio permanente, sobre a sua autoria, autoridade, consequência.

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