sexta-feira, 17 de abril de 2009

Escritos de Artista (9)



Mike Kelley

(continuação) Entre as ligações dentro do círculo profissional com que um artista tem de lidar estão curadores e críticos. Manter uma boa relação com estas forças é para alguns artistas ainda mais importante do que o respeito genuíno que possa gerar entre pares. De uma relação mais estreita com determinados agentes pode originar-se uma ascensão meteórica ao “estrelato” regional e a uma facilitada promoção internacional. Os efeitos podem ser confusos num meio apertado como o português. A formação de um crítico ou curador é muito diversa da de um artista. As razões profundas, os motivos, as vocações que levam uns e outros a fazer e escrever são diversas. É frequentíssimo entre artistas sentir-se uma incredulidade comum face ao súbito “endeusamento” pela crítica ou pelos curadores desta ou daquela personagem face a uma aparentemente evidência de “burla” poética. Quem terá razão? O debate poderia contribuir para o progressivo iluminar de cada caso particular. A verdade é que tanto os críticos como os curadores, por todas as razões que facilmente se invocariam, têm uma consequência capital na promoção profissional de um artista. Cair nas boas graças de determinadas personagens, infelizmente poucas na nossa local praça, pode significar o concurso de galerias, a facilidade na obtenção de bolsas, preferência de coleccionadores e a pertença a um grupo de seleccionáveis para grandes eventos internacionais. Em sentido inverso pode suceder o caso de um artista lançado ser “queimado” por más críticas. Não acreditamos porém, que tal suceda com trabalhos e percursos consistentes e por outro lado, quando existe um maior número de críticos e curadores de grande carácter intelectual e coragem, quando existe um maior número e concorrência de veículos de divulgação de eventos, crítica, debates; quando existe maior disseminação e qualificação na distribuição de apoio a projectos, mecenato, em suma, oportunidades, a qualidade expressa das ideias, em directa proporção à liberdade vivida das opiniões faz com que a falta de justeza de discernimento se sinta menos nos seus efeitos e implique também uma muito menor determinância nos humores, ou gostos individuais desta ou daquela personalidade.

Existe então claramente uma diferenciação de classe entre produtores e legitimadores da obra de arte. A validação da obra é essencial, note-se, à própria existência dela como objecto artístico e ao complementar conferir da designação de artista ao seu produtor. Os legitimadores representam a consciência pública, como sendo os seus representantes mais bem preparados para transmitir ao resto do corpo social o que este doravante deverá entender como histórico. Um curador ao organizar mostras contextualizadas de determinados trabalhos cria ele próprio, simultaneamente, um acontecimento e uma leitura imediata desse acontecimento. Um crítico ao pensar o corpo artístico contribui, pelo seu lado, para a construção de uma imagem histórica de uma obra, contextualizando-a.

Num sistema aberto onde teoricamente falamos de produtores intelectuais, capazes de manifestar pensamento e livres para o fazer; - os artistas, os seus legitimadores e os seus críticos; - nada parece obstar a que se produza, então, colectivamente e com qualidade o debate sobre poética e política. Mas aqui a permuta já não se realiza entre iguais e é aqui que se constitui todo o problema. Os modos de produção são diversos mesmo quando ambos os campos usam a escrita como meio primordial. Quando um artista escreve a crítica desenvolveu já em seu redor categorias para uma pré-concepção que permite a um observador exterior colocar o texto entre as fronteiras que o fazem adivinhar como exteriorização artística. Confunde-se crítica de artista genuinamente ou como uma estratégia de lhe diminuir a implicância como “escrito de artista”. Sendo respeitado como tal, como um escrito inestimável para ser estudado para se compreender a obra artística do seu autor é no mesmo acto e movimento, ao ser relegado a um estatuto “especial” ou mesmo superior, incapacitado por ser tomado por incompetente para ser texto de eficácia local, jornaleiro e diário.

Monta-se uma exposição consequência de um propósito de uma curadoria. A intenção pode ser expressa ou não em texto, apenas visível pela observação atenta. Pode também corresponder a um gosto, obsessão, tendência por parte do comissário. Poderá também ser construída a partir da obra de um único autor ou a partir de uma colecção. Em todos os casos, mas particularmente naqueles cuja produção e patrocínio implicam responsabilidades elevadas – como as produções do estado, ministério da cultura, fundações e outras – devem, pelo que significam ao existir, ser objecto de crítica pública. Os artistas, se por um lado pertencem a esta esfera pública e estão munidos de conceitos operativos de crítica mais do que suficientes para o fazer, situam-se como já se contemplou, na estranha posição potencial de crítico e produtores de objectos criticáveis. Num local limite deste caso, imagine-se um autor exposto numa grande retrospectiva a auto-criticar publicamente o seu trabalho e o modo como foi manifesto. Tal sucede com frequência mas muito retrospectivamente. Um dos problemas característicos do meio nacional corresponde à excessiva proximidade devido à exiguidade do meio, dos responsáveis pelas grandes produções, de qualquer iniciante de práticas artísticas. Como já dissemos, no circuito das inaugurações todos se encontram frequentemente, mais do que uma vez por semana. As cumplicidades impedem que se expressem opiniões com franqueza sobre o trabalho realizado. As razões para tal são humanamente compreensíveis ao procurar-se evitar um conflito mas por outro lado perdem-se ocasiões para a existência de um debate clarificador. (continua...)

5 comentários:

  1. Ainda andava a pensar no comentario ao texto anterior, quando surgiu este ultimo, com questoes e reflexoes que considero igualmente pertinentes.

    Queria so' alertar para um facto. Nao sao unicamente os artistas que estao sujeitos a um processo de legitimacao - os proprios curadores e criticos, tambem o estao.
    Como tal, o "ambiente de compromisso" da Legitimacao Artistica e' tripartido, nao recaindo o peso unicamente sobre os artistas.
    Os artistas serao o motivo ou os criadores da reaccao em cadeia, mas quando a reaccao comeca - e as escolas de arte "fabricam" todos os anos mais artistas - que trazem consigo uma vontade em mudar (em versoes radicalistas, que acabam por esmorecer) ou abracar o caminho da legitimacao anunciada (como referido no "Escrito de Artistas #8").

    O facto de um curador, ou critico, em inicio de carreira, ou mesmo com carreira em progressao, apresentar um dado artista que vai ou desenvolve trabalho "la' fora" ou que tenha um peso dentro de coleccoes importantes no Pais dar-lhe-'a pontos e tambem o colocara' numa posicao de ascencao de carreira.
    Fisicamente e' como se fosse um metal, que ganha um aumento de temperatura, por se ter ligado a um "hot artist" - ganha credibilidade, pela credibilidade (ou poder) que o artista a quem se associou, tem.

    A relacao entre artistas, curadores e criticos nao e' de todo Taylorista e as variaveis externas nao sao claras o suficiente, para se apontar armas a alguem em particular.

    Uma das formas de controlar ou tentar regularizar esta situacao e' criando uma consciencializacao ao nivel do tecido que produz realmente - o plano do artista.
    Mas para isso, tem de haver uma atitude diferente e que penso que este blog e' um passo muito importante: os artistas devem expressar-se e criar um contexto entre si e dentro do possivel desenvolvendo um conhecimento e uma forma de falar sobre ele fomentando uma discussao ao nivel das practicas do seu trabalho.
    Sem isso estao sujeitos a uma contextualizacao conveniente e movida por "personal agendas", que pouco ou nada reflectem a realidade criativa.

    Visto que os "intermediarios" nao ajudam o desenvolvimento do meio, a nao ser por motivos que os ajudem a promover a si mesmos, entao que se faca um "bypass", dentro do possivel.
    O facto de hoje em dia se querer atingir a profissionalizacao de diversos sectores dentro e 'a volta do tecido produtivo ("layer" dos artistas) nao pode ser uma razao para que nao se faca uma reflexao e se corrija o que nao esta' a funcionar - e que ate' ajuda a uma estagnacao do meio.

    Na minha optica, cada um dos intervenientes tem um papel importante, dentro do contexto global, mas se nao contribui positivamente para o enriquecimento desse mesmo contexto, entao e' superfluo e deve ser abandonado.

    Relativamente ao espaco de oportunidade. Essa talvez seja um dos maiores problemas que consigo identificar ao nivel do Pais.
    Na realidade, o que existe e' uma miseria envergonhada - recursos escassos, que transformam a veracidade artistica em jogos de politica de poder: quem tem mais amigos, quem e' amigo ou tem apoio de quem.... etc...
    Um ambiente de abundacia minimizaria todo este impacto.
    Porque o facto e' que havendo um mercado que funciona dentro de um nivel e que tem quanto muito, uma centena de coleccionadores assumidos (e estou a ser optimista) nao pode dar muito mais do que da' actualmente.
    E' dificil existir um conceito de "carreira artistica", quando, por escassez de recursos, existe uma accao de esmagamento (rei morto, rei posto) que acontece a grande velocidade.
    A cotacao de um artista acaba por ser tanto maior, quanto o seu factor de "irrequietude", isto 'e, quanto mais um artista se desloca por inumeras residencias alem-fronteiras, participacao em Bienais, exposicoes fora, etc... mais bem visto se torna aos olhos de quem lhe comprou trabalhos, de quem o apoiou, de quem o curou, de quem o divulgou (atencao, que nao digo criticou).
    Pela Teoria dos Stakeholders, todos tem a sua share no sucesso, quando o artista tem sucesso.
    E a Arte acaba por ser isto: a hipotese de participacao na equipa vencedora e a partilha de um lugar no podio.

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  2. Não. É por acreditar que a arte é uma outra coisa é que escrevo. Mas decerto concordarás comigo; refiro-me sempre neste texto ao mundo socio-político da produção artística e ao modo como este determina, ou pelo menos influencia a produção poética em si. Concordo absolutamente na tua análise sobre a demanda de reconhecimento e legitimação da curadoria. Mas deixo aqui um ponto que importa muito. A curadoria é produtiva política e poéticamente. Exige-se a um curador que plasme uma visão, um valor em discurso, no modo como seleciona este ou aquele grupo de artistas. Dou como exemplo, tremendo bom exemplo a exposição "Melancolia", de Jean Clair que esteve em exposição em Berlim e Paris, circa 2 anos atrás.

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  3. O que refiro, sobre a partilha do lugar no "pódio" é mais uma crítica à forma como o mercado da arte se desenvolve ou tem desenvolvido. Acredito que o período económico actual obrigue a que aconteçam algumas mudanças.
    Mas a arte não é o mercado, embora a sua profissionalização dependa dele e de outros intervenientes, para além do curador e do artista - críticos, galeristas, coleccionadores, e outros.
    Penso que a reflexão sobre este ponto (e que é o que tens feito, pelos diversos escritos de artista que têm vindo a ser publicados neste blog) é importante, pois em parte tem um peso determinante na reflexão sobre a produção artística - que sim, vive de uma poética e de uma manipulação de relações entre símbolos.

    O artista não precisa necessariamente de produzir apenas porque é aceite por um mercado que o promove. Existe, porque surge de uma necessidade individual e subjectiva, que o move a produzir arte - ou que seria desejável que assim o fosse.
    Aqui gostaria de te perguntar relativamente à poética, que pensas ser o peso da escola, na procura pessoal dos artistas em relação a essa mesma poética?
    Também, se a Arte de um país periférico, como o nosso, é subjectiva ou apenas trabalha dentro de um conjunto de escolhas que existem e que se encontram já legitimadas pelos países mais centrais?

    Relativamente à curadoria, o que dizes está certo, mas os curadores têm um problema igual aos artistas que procuram uma rápida ascenção na carreira - uma busca por prestígio e afirmação no seu meio.
    Muitas das vezes o valor do discurso aparece num segundo plano (quando aparece), em que o que importa é mostrar um conjunto de artistas, cujo nome desperte curiosidade no público informado (será?), sob títulos generalistas e ambíguos, ou seja, parte de um mau princípio.
    Se a curadoria é feita como uma espécie de exibição de troféus de caça, então não cria qualquer discurso e a sua eventual poética é preterida em relação ao seu lado político.
    Mas mais uma vez, é difícil de culpar algum dos intervenientes em particular, pois o resultado - a exposição, surge de uma colaboração entre curadores e artistas, com o apoio de outras entidades.
    Por outro lado, um curador que apenas possui discurso e vontade de realizar uma boa exposição dentro desse discurso também se poderá ver confrontado com respostas esquivas por parte de artistas e eventuais financiadores, que não lhe atribuem credibilidade (pela falta de prestígio) para expor o seu trabalho, ou usar os seus fundos para criar a exposição.
    A falta de oportunidade é uma constante e a única forma de contornar o problema é unindo esforços (criando espaços de oportunidade), para que se faça o melhor trabalho possível aprendendo com os erros que se cometem.
    E aqui sim, os críticos deveriam cumprir o seu papel e fazer uma crítica real sobre o que lhes é apresentado - não num papel de carrascos supremos, mas sim fazendo uma análise o mais rigorosa e exaustiva possível, que permita que tantos artistas e curadores (e outros mais invisíveis, mas que merecem ser referidos, como produtores e instaladores das peças no espaço expositivo) percebam o que o "outro lado" observou e o que é que o seu trabalho possa ter desencadeado ou não - podendo haver melhorias a fazer nos diversos planos, de forma a criar uma visão mais consistente entre o discurso e lado mais práctico e visível (a exposição).

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  4. A escola é muito importante mas apenas como uma variante da escola geral da vida (isto parece um lugar comum). Quero dizer com isto que a escola de artes é fundamental se atenta á realidade. Isso responde já parcialmente à segunda questão sobre o génio do lugar, deste lugar. este lugar do mundo é tão especial como outro qualquer. A única desvantagem será sempre a falta de dinheiro, financiamento, troca de ideias característica das plataformas de nomadismo (como Berlim ou Londres ou etc.)e alguma impossibilidade de se jogar poéticamente na vanguarda tecnológica. De resto, se acreditarmos ou pudermos realizar o melhor sem estar tão dependentes de uma magnanimidade produtiva, penso que Portugal tem tudo para se fazer quase tudo. Era neste sentido que a escola se devia colocar; explorando a máxima possibilidade do real. A escola dever-se-ia constituir como o lugar de experimentação colectiva a todos os níveis, vivencial, poético, socio-economo-político. Um lugar de transgressão experimental mantendo m respeito essencial pelas leis interiores, ou caminhos, do desenvolvimento de cada um dos seus participantes. O que sucede na maior parte dos casos é a imposição de um visão ou outra académica, preguiçosa (recomendando ao alunos seguir este ou aquele artista, quando em cada aluno existe uma forma, uma vontade poética própria única e inscrita mais ou menos secreta.) Acedito que a escola deve saber deixar ir em frente sustentando criticamente mas em liberdade. No fundo a ideia é antiga. Consiste em fornecer instrumentos físicos e metafísicos (e patafísicos) para a vida, a primeira parte, elo menos, de uma vida profissional. A escola continua sempre se o meio criativo for bom.

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  5. Gostei da tua visão sobre a escola e apesar de já teres feito algumas referências anteriormente, noutros escritos, nunca é demais lembrar.
    Percebo da tua resposta, que a escola deveria ser o espaço de experimentação (simulação) da realidade, que tenta não impôr, mas amplificar o potêncial criativo de cada (potencial) futuro artista. Também entendo que existem dificuldades e sinceramente, embora fosse agora outra conversa, é preciso ter-se uma sensibilidade extra, para se ser bom professor e durante o nosso caminho académico contam-se pelos dedos aqueles professores que fizeram a diferença. Felizmente existem.
    Um dos pontos que colocas, da transgressão e que entendi como desafio é importante, pois sem desafio não se consegue dar o salto na aprendizagem sobre aquilo que cada um poderá fazer e que não teve oportunidade de demonstrar anteriormente; também a importância da experimentação colectiva, que pode ser a base de colaborações futuras ou confronto com outros diálogos, que permitam uma auto-consciencialização.

    Relativamente a outros pontos que referes, penso que a falta de fundos sente-se mais a partir do momento em que se existe uma necessidade de (ou se é forçado a) se profissionalizar.
    Também acredito que não é apenas o país que pode ser um factor limitador no que respeita ao desenvolvimento artístico, na sua essência.
    Se a falta de fundos é um facto e depende essencialmente de entidades externa; quanto à troca de ideias, essa poderia ser conseguida, pois depende únicamente da vontade das pessoas, em que isso aconteça.
    Talvez a dimensão portuguesa não seja a de Berlim, Londres ou Nova Iorque, mas teria a sua dimensão à escala e provavelmente maior do que a que se poderá pensar.
    O facto de não haver uma confrontação e troca de ideias leva a que também não se gerem discursos, que pela nossa experiência enquanto "país deslocado" poderiam até trazer algo de novo, dentro do contexto global.
    Penso que para além da práctica, também deveria existir alguma produção teórica e que de alguma forma pudesse ser "exportada" (a Web é uma realidade global e ainda usada um pouco aquém do desejável).
    A não existência dessa teoria também leva a que a práctica se tenha de forçar a certas regras, ditas contemporâneas, mas que ganham mais sentido dentro de outras realidades mundiais, que não exactamente a nossa - como se a falta de comunicação gerasse uma igual falta de identidade, tanto ao nível individual, como colectivo.
    O chamado "mundo ocidental" não é assim tão homogéneo quanto isso e sente-se a diferença, assim que se sai do país e se vai para outro lugar do mundo.
    Mas isso não significa, e como dizes, que Portugal seja pior ou melhor que outro país.
    Outros países podem atribuir mais apoio financeiro à arte, mas os artistas e outros intervenientes também se vêem a braços com outros problemas, que os impedem de ter um sistema perfeito.
    E na verdade, o que é o sistema, senão nós mesmos?

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