sábado, 11 de abril de 2009

"a mumificação cultural leva à mumificação individual."

Devo principiar por referir quatro casos recentes da vida cultural portuguesa, os quais têm vindo a ser, ou foram brevemente, debatidos publicamente ou não, ou que não o foram de todo.

Refiro-me à:

à demolição do Bairro da Meia-Praia em Lagos; bairro de planeamento SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local) construído, juntamente com um amplo grupo de outros bairros em variados pontos de Portugal, pela população local com o apoio das Brigadas SAAL em 1975/ 76, visto que foi enfim aprovado em 2008 o plano de re-ordenação da zona, incluindo a demolição do bairro, em troca da construção de um conjunto de hotéis de 4 e 5 estrelas, aldeamentos turísticos e campos de golfe; processo que se encontra já em processo e que é apoiado pelo Ministério da Economia.

à quase demolição da moradia construída pelo Arq. António Varela e dos painéis de azulejos de Almada Negreiros, caso para o qual foi finalmente encontrada uma resolução positiva este início de mês: a classificação da moradia como imóvel de interesse nacional.

ao esvaziamento e abandono em que se encontra o Museu de Arte Popular em Lisboa, o único pavilhão ainda existente da Exposição do Mundo Português de 1940, com murais da autoria de Manuel Lapa, Eduardo Anahory, Carlos Botelho, entre outros, e um vasto e singular espólio. (relativamente ao Museu de Arte Popular devo referir o recente artigo da Marta Mestre, L+Arte Março. 2009).

e à sucessão recente de casos, mais difusos sem dúvida, mas igualmente alarmantes, da venda do espaço público da cidade de Lisboa à mecanismos de publicidade, nomeadamente a grotesca transformação do Terreiro do Paço e da rotunda do Marquês de Pombal pela tmn, ou o teatro e passadeiras do Inatel que se estenderam ao longo de toda a Rua Garret em inícios de Março. Ambos os exemplos podem ser traçados à aprendizagem efectuada pelo design/ publicidade
em relação às artes visuais (situacionismo; performance) bem como justificados pelo redireccionar dos fundos para a bem necessitada CML; mas nem uma nem outra linha de pensamento absolve os mesmos.
















As medidas e lógicas entre cada caso são evidentemente distintas, mas urgência que parecem provocar é transversal. Não me parece demais necessária a explanação das especificidades de cada caso, visto as problemáticas e simbolismos de cada qual serem de conhecimento comum. Não deixa no entanto de ser relevante, por evidente, a lacuna, mais do que a opinião, de imposição firme da comunidade artística perante estes. É provável a culpa ser partilhável — no fundo são casos a ser eminentemente tratados pelos órgãos de Lei de uma Sociedade Civil e soberana — mas, e se o momento trata de património, de legados comuns, de uma consciência e salvaguarda deste e/ ou da perda de referências futuras, que o momento sirva à coesão dos agentes e produtores de uma cultura que se faz e reivindica agora. Visto encontrarmo-nos em falha, só tal coesão, um olhar atento, poderá tornar a falha em produção.

[Franz] Fanon escreve, num contexto amplamente distinto mas citável, “a mumificação cultural leva à mumificação individual”. A frase pode ser invertida, pois uma cultura existe; apresenta-se, destrói-se, é apropriada, reivindica-se. Aqui, onde nos posicionamos, é o indivíduo, enquanto político, que está em falta, e se o indivíduo a comunidade – se esta existe. Falo aqui de um comunidade, com a dificuldade na diferença, isto é, tanto discordante quanto passível de consenso, a qual na pluralidade se permita ainda uma visão comum capaz de imposição perante legados, e por necessidade, futuros. Falo de uma visão comum, estruturada na diferença mas aberta de potência, de soluções e reinvidicações partilháveis. Esta é pelo menos, a comunidade da qual gostaria de falar, por apenas nesta e através desta se poder pensar um cenário capaz, futuro, para já, mas o qual julgo tão urgente quanto iminente de existência.
Ou seja, a realidade perante a qual nos parecemos confrontar é uma na qual cada qual é a exclusividade do seu Indivíduo, a sua própria esfera de subjectividade – se tanto – mas aparentemente, entre cada qual para com cada outro, nada mais que essa presença. Representamo-nos, uns perante os outros, sem nunca efectivamente nos chegarmos a apresentar. Colocamo-nos sempre e outra vez na esfera da possibilidade, falhando deste modo o necessário salto da individualidade à singularidade vital à relação singular-plural imanente a uma comunidade que se possa intitular enquanto tal – pois esta só se pode fundamentar precisamente na simultânea estreiteza e abertura dessa relação. É preciso começar pela voz, depois pela palavra seguida da discussão. É vital criar estruturas, ou apropriarmo-nos destas – na iminência do conflito, mas igualmente da transparência, e logo de ideologias.

Não temos de tomar o Museu de Arte Popular, mas poderíamos faze-lo. Aquela tradição é nossa; temos vindo a aproximar-nos desta, a apropriá-la e a reenquadrá-la por consequência, como se de uma arqueologia se tratasse. A reencontrar significados, raízes, um terreno que é nosso, com inerências e lacunas próprias, mas capaz de ser cultivado, de germinar. Façamos arte como se deveria ter feito agricultura neste país.

Ocupar o Museu faria, agora, todo o sentido, demarcando efectivamente o encontro entre Arte Popular, Modernismo e uma vontade colectiva efervescente. Uma vontade de unir passado e presente, diferenças e virtudes, criar um agora possível de algo que não uma repetição tautológica do mesmo.

Porque não uma RGA – reunião geral de artistas – no Museu de Arte Popular? Frente aos murais e perto do rio.

5 comentários:

  1. Parabéns pelo artigo que relembra a urgência de uma comunidade artística a vir/construir.
    As dificuldades para o êxito de uma RGA são, contudo, grandes, pois vivemos num clima artístico de sequeiro (em que cada um só quer saber de si), aniquilando aquele que tenta crescer em seu redor.
    A erva daninha (aqueles que continuam a crescer em maior número e ficam-se como plantas do meio; e são vistos como plantas más por uma minoria especializada/ pelos falsos intelectuais) estão prontos para a RGA. Eu próprio tenho sondado vários artistas de diferentes latitudes para perceber como se poderia criar uma associação de artistas que visasse a criação de uma comunidade, através de um banco de tempo em que se trocariam "skills".
    Em resposta à palavra "associação" recebi palavras como "sindicato", "greve" e até "fechar os museus a cadeado".
    A cultura é aquilo que se faz e aquilo que não se faz. Mas a cultura somos também nós, artistas e activos como parte da sociedade.
    Todos à RGA!

    ResponderEliminar
  2. Olá,

    Gostei do texto e senti a vontade em se criar um clima de dinâmica social.

    O texto denota uma actualidade de vários factos que de tanta visibilidade terem se tornam invisíveis.
    As mudanças dão-se sub-repticiamente aos olhos inquestionáveis de todos demonstrando, em parte, o sistema de educação que fomos sujeitos - o da obediência cega.

    Num ambiente destes - em que se obedece, não se questiona e não se comunica, é natural que a cultura reflicta a situação.
    No (longo) texto do Gonçalo Pena (escritos de artista #7), este mesmo facto é referido.

    Pela competitividade e produtividade sacrifica-se a dita Liberdade de Expressão.
    Mas com que fim práctico?
    Viver em Democracia é isto de viver sem questionar as decisões tomadas por alguns, no nome de todos?
    Somos hoje melhores cidadãos por estarmos calados?
    Concerteza que não, mas por outro lado somos bons consumidores de decisões de outrém - e consumimos calados, ou abstemos-nos de participar nessa mesma "Democracia".

    Os recursos são limitados, mas isso poderia ser uma forma de se fazer uma gestão "criativa" sobre a matéria viva que dá riqueza ao país e que é a população que o compoem.
    A frustração (de se ser alheado das oportunidades, da capacidade de decisão, de ter voz) dá lugar a uma abstenção e distância cada vez maior das decisões e força as pessoas a procurar a sua afirmação por objectos sem sentido.
    Apenas uma decadencia económica, como a que se sente mais agora (porque a "crise" não existe apenas porque acontece nos EUA ou é primeira página dos jornais, ela já existe à muito tempo) pode inverter a tendência dos últimos anos.

    Aqui, o papel da Arte deverá ter um papel determinante na consciencialização da mudança - não fazendo o esperado (e que algumas vezes se resume a um valor estético e fetichista, que serve as "elites"), mas curando a mudança através da construção de alternativas práticas.

    Quero dizer com isto que o efeito do "alerta" canalizado na Arte poderá ser tão político, quanto o de uma RGA. Para isso será necessário que a vossa Arte, enquanto artistas e criadores, se encontre embebida dessa mesma força e que use do seu poder de materialização, para criar um diálogo com a sociedade onde vivem - originando o motivo para o diálogo e a reflexão.
    Curem a sociedade, porque ela está doente.

    P

    ResponderEliminar
  3. Em relação ao título trocava, isto é, "a mumificação individual leva à mumificação cultural".
    não concordo com uma RGA por achar que a consciência da perca de direitos e a desvalorização do Patrimonio é um problema de todos e não só dos artistas.
    Em relação ao comentário do Hugo, não consigo perceber o porquê de um sindicato e não ir através da criacção de uma associação de artistas ao qual protege os direitos dos artistas e analisa a imposição das condições precárias no mundo das artes e muito mais.
    Bem sei que sindicatos são também associações que surgiram no séc XIX a partir da revolução industrial e que se pode fazer ligações com a "industria" museológica, das fundações, colecções privadas, galerias, não será esta uma falsa ligação? Prefiro associação de artistas.
    um abraço translocal

    ResponderEliminar
  4. Nem a brincar, mas na Artforum de Marco estava um artigo sobre o recem falecido Willoughby Sharp (em http://www.artforum.com/inprint/id=22111).

    O conjunto de textos escrito por Liza Béar e Hans Haacke relatava varios episodios marcantes da vida deste artista/editor/curador. Destaco os seguintes:

    * Liza Béar:"
    November 25, 1968

    We go to the opening of “The Machine as Seen at the End of the Mechanical Age” at the Museum of Modern Art. Significantly, in January 1969 it’s to become the site of a political action we organize pronto when Willoughby gets a phone call from Takis, who is challenging the right of MoMA to include one of his “Telemagnetic” sculptures in the exhibition without his consent (even though the museum owns the work). In full public view, Takis cuts the cord and carries the piece into the Sculpture Garden, where Willoughby and others sit on the ground and guard it; I’ve called the press. With other artists and critics including Hans Haacke, Tom Lloyd, Tsai, and John Perreault, we soon draft thirteen demands to the museum. This action must have touched a nerve; it precipitates an artists’ rights movement and the formation of the Art Workers Coalition."

    * Hans Haacke:"
    In New York in January 1969, perhaps inspired by the student revolts in Paris, where he lived, the Greek artist Takis, accompanied by Willoughby, Liza, and a few friends, kidnapped a work of his that had been included, against his wishes, in “The Machine as Seen at the End of the Mechanical Age” at the Museum of Modern Art. A few days later, several of his stablemates from the Howard Wise Gallery and some others met in Willoughby’s apartment to draft a list of artists’ rights for presentation to MoMA. Within a very short time, this small group grew exponentially. Calling themselves the Art Workers Coalition, these artists challenged major New York museums with petitions, often backed by demonstrations, sit-ins, and guerrilla actions. In addition to demanding artists’ rights, the coalition called on institutions to open their programs to black artists and women and to make admission affordable to everyone. It also attacked the boards of trustees for being part of an establishment complicit with the Vietnam War.
    "

    ResponderEliminar
  5. Pelos vistos a demolição do Museu de Arte Popular avança...

    deixo uma frase que o Ernesto de Sousa cita do Almada (grande defensor do popular, do ingenuismo, do pitoresco, selvagem, etc, etc

    “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa, salvar a humanidade”.

    Marta Mestre

    ResponderEliminar