segunda-feira, 9 de março de 2009

Escritos de Artista (3)





















Ernest Griset

(Continuação) A existência de uma classe “intelectual” ou “criativa” como defende Richard Florida, com modos de consumo próprios, nómada, de emprego precário tornou-se possível exactamente pelos mesmos eventos e canais que tornam hoje omnipresente ao nível global, a prática neo-liberal. São estes a queda do bloco de leste, a expansão da banda larga, aumento de poder de organizações universais como o Fórum Económico Mundial e etc. Se observarmos o caso particular europeu verificamos que a expansão do mercado único, a introdução do Euro, a possibilidade dos voos low-cost, possibilitaram a mobilidade de centenas de milhares de pessoas pelo espaço europeu em resposta a empregos ocasionais. No mesmo processo, a divisão clássica das ocupações e das fronteiras profissionais entrou em crise. A criatividade, para o melhor mas também para o pior, é hoje como nunca foi um factor determinante na avaliação de qualquer candidato a um emprego em quase todas as áreas.

Nunca como hoje, houve tanto interesse à volta da arquitectura e do design, das artes contemporâneas, das artes do espectáculo. As artes, o alternativo e o mainstream, na sua dialéctica de sucessões, constituem-se hoje como uma mais valia na imagem global da cidade, o chamado “efeito Guggenheim” (Harvey) e um instrumento importantíssimo para a manipulação política da opinião pública. Com a preponderância absoluta da classe média ou sociedade de consumo, o modo de vida low wage mas elitista desta chamada classe criativa constitui um apelo director para as tendências de consumo e factor determinante da moda. Ou seja; esta classe “jovem” criativa com todas as suas ramificações entre os media, management, universidade, vida nocturna, queer, politica e claro, mundos das artes, drogas, design e arquitectura, preenche hoje uma tarefa ainda mais colaborante num sistema de soberania global do que acontecia com a velha classe intelectual universitária na chamada era do liberalismo ordenado. Esta atitude acontece devido em grande parte à crise das meta-narrativas modernas e à resultante desorientação ideológica da pós-modernidade. Sem grandes e histéricas conduções de massa, sem mitos ao alcance da retórica criativa, sem o poderoso modelo marxista e derivações do mesmo, o discurso ideológico desta classe criativa enfraqueceu, tornou-se hedonista ou dividiu-se em especializações próprias.

A arte e a vida cultural começaram, com o ascender da globalização e rapidamente, a constituir mais-valias económicas capitais na promoção de mercados. Neste movimento, que suscitou na era Reagan, fortíssimo apoio e financiamento, sem qualquer arma conceptual de oposição, os novos intelectuais foram se rendendo, não apenas ao mercado, mas ao uso dos seus recursos expressivos como factores legitimadores da política que é hoje de facto, globalmente dominada pela doutrina neo-liberal.

Na solidão da lucidez individual não existe nenhum império benigno e tudo, desde o que comemos até ao modo como nos relacionamos, está contaminado por mentiras concatenadas em mais mentiras para a construção da nossa frágil boa-consciencia. Observadores, alguns economistas, intelectuais e mesmo alguns dirigentes políticos sentem o mal-estar de não se sentir a possibilidade de defesa, a agregação das vozes contra a união dos factos.

As próximas décadas trarão uma catástrofe ambiental inqualificável para Africa, calamidade essa que continua a ser “preparada” na massividade consumista das economias desenvolvidas, essas as mesmas economias que, após terem colonizado, exploram agora os mercados locais, as suas matérias primas, secam as águas, secam o pensamento e a memória, abatem a possibilidade do originário e da diferença para lá de valores de marca comercial.

John Tenniel

A classe criativa, filha de uma classe média que não é mais do que servo-motora (controlada, portanto) do dispositivo, esse mesmo que, na sua figuração mais aterradora e totalitária, Foucault chamou biopoder, replica os vícios e a má consciência da progenitora. Edward Said demonstrou-nos já que qualquer voz emanada do nosso lado da barricada mediterrânica em direcção a esse estranho Oriente ou a essa África das oportunidades, perdeu a legitimidade, não pelo passado mas pelo presente arengar que continua. O sujeito europeu ou norte-americano (caucasiano?) do discurso nunca esteve tão carregado de culpa no acto de enunciar como hoje. Perante a consciência histórica ocidental, perante a perda da inocência em face ao outro, mantém-se um mercado sustentador das formas de arruinar ocidentais como a matriz das relações sempre desiguais de ambos os lados do globo. O pragmatismo da exploração é então alvo de um processo de ocultação sob o discurso do multiculturalismo. Esta falta, o engajamento intelectual em discursos de diversão, cai igualmente sobre os “criadores”. A verdade é que a actualidade crítica da classe criativa sobre as instituições não se sente ou não é efectiva. Frequentemente comprometidos com o magma do mercado e por vezes directamente conotados com os seus porta-vozes políticos, os criativos perderam independência de manobra para a livre expressão da crítica ao sistema. Ao fundirem o discurso político como o artístico é sempre no segundo modo que este é recebido. Por outro lado e apesar de culpados, o potencial desta massa nómada, irrequieta, atenta está ligada à mais humana das faculdades; o pensamento e a sua expressão livre. A poesia exalta o poder pensar, o poder viral e transgressivo sobre todos os discursos instituídos.

A classe intelectual e criativa, de formação maioritariamente progressista, cai, entre muitas outras, em duas faltas recorrentes. Em primeiro lugar é possuída por uma incapacidade ou receio de criticar as instâncias de mecenato sejam estas estatais ou privadas. Esta impotência crítica agrava-se pela conotação que em geral se faz do discurso crítico realizado por um artista, com o interpretável do seu trabalho poético. Esta confusão é desnecessária porque se pode efectivamente separar os dois discursos. A validação de um discurso crítico de um artista está então associada à legitimação não apenas da obra desse artista como da conexão reconhecida entre esta e o dito discurso. A outra falha recorrente, comum aos que pertencem aquilo a que os franceses chamam “esquerda caviar” é a auto-exclusão de qualquer responsabilidade política sobre o sistema simplesmente pela solidariedade abstracta com as vítimas e que tem o seu contra-plano na figuração de símbolos de “iniquidade” contra os quais se destila todo e qualquer discurso crítico (Bush, o Vaticano, o fundamentalismo, Monsanto, McDonalds, Microsoft e Cocacola são os exemplos básicos e comuns desta diabolização) sendo que quase todas as vítimas são vítimas da vilania colectiva da mesmíssima classe média de onde provêem.

James Gillray

A nossa ideia é que, paradoxalmente, no admirável mundo do liberalismo e da plena e literata democracia, critica-se menos e com inferior profundidade. Não podemos deixar de associar esta observação à crítica de Lecourt ao pensamento francês pós-68; o estabelecimento e a entronização (justa) de grandes referências intelectuais como especialistas ou profissionais da crítica, retirou força a uma possibilidade de insurreição do pensamento em bruto e em massa. O facto da percentagem cada vez maior de população de formação universitária não utilizar o seu potencial insurreccional crítico e político no quotidiano torna-se trágico à vista da progressiva desistência dos próprios pensadores profissionais, dos sonhos que tiveram em A.

De todas as categorias profissionais são os artistas, naturalmente, a estar aptos para dar saltos de tigre, viver à custa do poder, com poder, pelo poder e contra o poder, fieis soldados e abomináveis traidores e assassinos, numa existência desequilibrada em mil corpos, pela acção, pensamento, poética, impostura.

E não dançar esta dança macabra com quem nos determina a vida é miséria pior do que morrer. (continua....)


sexta-feira, 6 de março de 2009

Wallace Berman (Verifax Collages)






Descobri-o na discreta galeria Frank Elbaz (Paris). Wallace Berman, nascido a 1926 e de ascendência russo-judaica em Staten Island foi viver para Los Angeles aos nove anos, onde, no envolvimento que foi tendo com o Jazz, substâncias psico-cinéticas, Dada, desporto e esoterismo (particularmente um interesse pela Cabala) desenvolveu também as suas pulsões poéticas. Assim, Berman e bem cedo, tornar-se-ia numa figura clássica do underground da Costa Oeste. A principio aluno de uma escola de artes, rapidamente incompatibilizou-se com a metodologia académica e escolar. Seguindo então no seu percurso próprio, empregou-se e o trabalho que obteve numa fábrica de mobiliário permitiu-lhe não apenas tornar-se autónomo como desenvolver o gosto pela assemblage, o modo de trabalho que melhor caracterizou a sua variada produção. De interesses múltiplos Berman viveu imerso em poesia e criou à sua volta um círculo criativo tornando-se numa das personagens geradoras do movimento beat. "Besides a collagist, painter, photographer and poet; his immersion in art was complete. He not only made it but also inspired others to make it, sparking hidden aptitude in startling places. After meeting him, drifters, movie stars, ex-marines and petty criminals found themselves starting to paint and write."(1) Segundo Dennis Hopper "He affected and influencied seriously involved in the arts in Los Angeles in the 50's. If there was a guru, he was it - the high priest, the holy man, the rabbi."(2). Momento fundador para a sua influência foi a criação da revista Semina (ver imagem), que enviava por correio (foi um pioneiro da mail-art); "The magazine, its pages randomly compiled, mixed Berman heroes like Antonin Artaud and Jean Cocteau with established American poets like Robert Duncan and Allen Ginsberg, then added a slew of younger writers and artists — Philip Lamantia, Jack Anderson, Patricia Jordan, Kirby Doyle, Bob Kaufman, Aya Tarlow, Ruth Weiss, Michael McClure, the great gay poet John Wieners — all barely out of the starting gate. Sent, copy by copy, through the mail, Semina defined a distinctively trippy, sardonic West Coast surrealism. New York had hard, cold Pop; the West Coast had a woozy Peyote-Funk that prefigured the hippie era." (3) Expôs pela primeira vez em 1957 na galeria Ferus. Nessa ocasião chegou mesmo a ser preso por mostrar imagens ofensivas ao decoro. Dedicou-se também ao cinema; um único filme "Aleph" (nome dado posteriormente à sua morte pelo filho) realizado, que ia sendo expandido e que nunca quis mostrar a grandes audiências. Este filme, um mosaico quase abstracto de sobreposições texturadas, impressões fugazes a ritmo alucinante, ilustra muito bem a inclinação de Berman para o universo experimental da livre associação de imagens. Um lado menos imediato e construido da sua obra, são justamente estas colagens, que se tornaram na sua obra mais significativa e madura, o seu principal veículo poético desde 1964 até ao acidente mortal que o matou em 1976. "After World War II, 3M and Eastman Kodak introduced the Thermo-Fax and VERIFAX copiers into the workplace. The copies were of poor quality and continued to darken long after they had been pulled from the machine. Although the office models were relatively inexpensive and easy to use, their special paper eventually cost users a fortune."(4) Wallace Berman via na palavra Verifax qualquer coisa próxima de "true facts", uma associação simbólica que lhe abria lugar a uma asserção de realidade do imaginário. No aspecto mais prático, este método rudimentar de fotocópia permitiu-lhe usar mediuns expressivos que desde sempre lhe foram caros, a fotografia, as artes gráficas e claro está, a colagem. Como "suporte" ou "moldura" utilizou constantemente a fotografia de um pequeno transistor retirado de uma página publicitária. Retirando-lhe o rectángulo do altifalante substituia-o então com as imagens que ia descobrindo. Berman experimentou todas as possibilidades deste dispositivo a fundo. Através dos acidentes que criava com as dosagens de revelador e fixador, dos vários tons e misturas de cor que obtinha, nunca obtinha cópias. Depois compunha as peças, recortando os "originais" que obtinha, realizando assim as imagens finais sob a forma de séries individuais. Foi com as colagens Verifax, a sua obra derradeira, que Berman encontrou por fim, em método, ritmo e forma de disseminação, o meio perfeito de realização de um reencontro das suas origens culturais, o espirito experimental e libertário californiano e por fim o lado mais oculto e profundo das deambulações espirituais nas quais habitou.

(1) e (3) A Return Trip to a Faraway Place Called Underground - NYT 26/Jan/2006
(2) Sophie Dannenmüller (Press Release-Galerie Frank Elbaz)
(4) www.smithsonianeducation.org/scitech/carbons/copiers.html

quarta-feira, 4 de março de 2009

Escritos de Artista (2)



Anatoly Osmolovsky Bread (2006)


(continuação) Numa conversa na recente exposição Lá Fora, na Central Tejo, ao falar com um profissional da crítica de Arte que tenho por amigo, falou-me de um certo blogue anónimo que andava por aí a circular, que ainda não tinha lido, mas que desde logo condenava pelo covarde anonimato de falar dissimulado sobre a obra de quem assina. Disse-lhe imediatamente que era e sou eu (Gonçalo Pena) um dos “cabecilhas” de tal acto de covardia (não gostei de ouvir o reparo e não seria capaz de manter o silêncio). Da surpresa dele nasceu uma conversa onde fomos pondo sobre a mesa questões sobre o anonimato neste lugar específico. É dessa conversa e de conversas posteriores com outras pessoas que nasce este texto.

Esta discussão visa esclarecer as razões mais profundas para a existência de um espaço de crítica para “artistas” e simultaneamente tentar obter dados que permitam avaliar as condições de possibilidade de existência dessa crítica. A questão do anonimato, usual pelo uso de pseudónimos nos mails, no Messenger etc., a bem ou a mal, acabou apenas por ser o detonador destas questões.

Observando o objecto da crítica de arte, ou seja, aquilo que ordinariamente chamamos “mundo da arte” e ao pretender avaliar os regimes de existência desta crítica temos forçosamente de adquirir modelos de análise noutros campos. Esta transferência de âmbito, do mundo artístico para a sociedade em geral, justifica-se pelo facto de qualquer subsistema social replicar a anatomia estrutural do sistema “parental” de onde é originado. O mundo da arte tal como o conhecemos é um fruto necessário das contradições inerentes ao mundo moderno. Obviamente nada disto é novo e pelo contrário, tem vindo a constituir-se como a temática dominante para os discursos politicamente motivados por artistas e curadores (Documenta XII) à procura de objecto relevante numa paisagem caótica de ruínas utópicas e emergências locais. Mas se tal assunto não é novo, não deixa de ser actual e por temos de reavaliar permanentemente os utensílios de análise, será impossível não passarmos de novo por uma revisão do conceito marxista das relações de produção.

A herança marxista é ambivalente à luz da actualidade. Se por um lado faz parte, como símbolo ou discurso científico ultrapassado, consoante a posição política do observador, dessa textura épocal em descalabro (a modernidade), este mesmo marxismo, já não como ciência mas como ideologia (Ricoeur) é por outro lado reavaliada como uma inesgotável fonte de metodologia de combate. Geertz na antropologia recuperou contra as pretensões modernas o valor ideológico como edificador de situações locais de emancipação. O modo como nos podemos valer de discursos não científicos como alavancas válidas para questionar a realidade é um factor libertador para a intervenção popular no seio dos debates especializados. A ideologia, ou o conjunto das coisas que se vão dizendo sobre grandes temas, com mais ou menos “correcção” constituem uma base legitima de questionamento e participação de todos no cenário da excessiva especialização e perda de controlo sobre a actualidade. Nesta perspectiva da recobro da legitimidade operativa do ideológico, o próprio marxismo torna-se então recuperável em alguns, muitos dos seus aspectos como um gerador dessa vontade actualizada da praxis. Embora tenham, desde o século XIX, mudado os termos clássicos da arena da luta de classes (burguesia e classe operária), o instrumento analítico das relações de produção mantém-se então actual no quatro presente de desenvolvimento e crises do capitalismo.

A classe operária transformou-se ou cedeu o seu papel na dramaturgia marxista de “classe do destino” a novos actores devido ás várias transformações operadas na estrutura produtiva.



Martha Rosler


O mundo industrializado ou pós-industrializado mantém-se, porém, central na definição dos modos de vida determinantes e da criação de sistemas que engendram por si outros subsistemas num efeito de transmissão por vagas. A proeminência da China e logo a seguir da Índia, como novas superpotências económicas e novos super-mercados, por si, pouco ou nada importa de verdadeiramente novo às estruturas produtivas da sociedade; foi e continuará a ser sobretudo a evolução tecnológica a verdadeira alavanca revolucionária na criação das novas classes produtivas e por consequência das novas relações daí engendradas. Se nos facultam um parêntesis então daqui surge que o designer é um ideólogo da tecnologia. Seria ele o responsável por transformar numa arena de combate social o interface, o lugar ideológico onde o utilizador ou consumidor é hoje orientado, e não teria de o ser, pela tecnocracia.

A classe dominante industrial, comerciante ou financeira vive uma relação cada vez mais intrincada com o enorme universo assalariado urbano. A recente crise demonstra bem a importância do ânimo desta classe média, que, ao perder a confiança faz soçobrar todo o sistema. Todo o mercado e as suas agências se orientam para a satisfação desta enormíssima fatia da população ocidental. Mais do que produtiva, esta classe é instrumental no modo como consome; é a já velha lengalenga baudrillardiana sobre a sociedade de consumo. A grande urgência hoje, é contrabalançar os efeitos planetários que virão dos biliões de novos consumidores das sociedades chinesas e indianas. Por baixo de toda esta gigantesca e pesada classe média vive outra, a miserável. Esta veio a substituir a do lumpenproletariat (proletários miseráveis) no sistema classista de Marx. São desempregados, imigrantes precários, indesejáveis, populações da africa sub-sahariana, os tais despojados em luta de que fala Negri e afinal o verdadeiro sujeito central da dramaturgia do pensamento pós-colonial.

São os modos de produção a determinar não apenas as classes mas fundamentalmente as suas relações. Marx não poderia prever em pleno século XIX que o modo de produção sobre o qual hoje incidiria a sua analítica do capital seria o complexo gerado pela autonomização e desenvolvimento da tecnologia (há quem defenda que se constitui como uma nova forma de existência “biológica” autónoma tanto da natureza como da cultura) e o consumo motivado na exploração do desejo das classes médias. As relações de classe manifestam-se complexamente neste cenário, aquilo a que frequentemente chamamos sociedade pós-industrial ou simplesmente sistema, efectividade e actualidade. (continua...)

domingo, 1 de março de 2009

O Inferno das Pizz



















Barnett Newman
"Selected writings and interviews"
Edited by John P. O'Neill
University of California press, Berkeley. LA.  1992




















Jean François Lyotard
"O inumano" - consideraçõe sobre o tempo
Trad. Ana Cristina Seabra e Elisabete Alexandre, Ed. Estampa, Lisboa. 1997



















Barnett Newman
"Eve", 1950
Óleo sobre tela. 238.8 x 172.1 cm
Colecção da Tate, Londres.
 











Vista da exposição "Inferno: apareceu em Rio Tinto" de Pizz buin. 
Rock gallery, rua da Boavista nº 84. Lisboa, até 21 de Março.


Na Rock gallery as Pizz Buin apresentam um conjunto de torradas emolduradas. 
Estas torradas queimadas têm como títulos, títulos de pinturas de carácter religioso.
Ouvi falar que, ao mesmo tempo no Espaço Avenida, estão expostas um conjunto de torradas queimadas desta feita com a imagem da Nossa Senhora . 
A diferença entre ambas as torradas não está no motivo mas na forma. 
Enquanto uma das propostas pega literalmente num facto que mereceu a atenção dos media (a aparição da Nossa Senhora numa torrada) a proposta das Pizz Buin desvia-se da mera transferência do quotidiano para  a criação de discurso em torno da representação e da representação negativa.
As torradas queimadas são a negação do título. Para ver algo, Cristo descendo a cruz  ou A aparição seria de facto necessário acreditar; Aliás estar iludido, querer ver onde nada está.
Esta impossibilidade que as Pizz Buin levantam remete  para a obra de Barnett Newman e a impossibilidade de representação que exponenciou nos anos 50. 
Após o Holocausto, não era possível fazerem-se retratos, pintar naturezas mortas ou belas paisagens. Não era sequer possível acreditar no humano como construtor racional de um mundo melhor a vir. 
A obra de Barnett Newman, figura essencial da Arte americana do Pós-Guerra foi, segundo J. François Lyotard, o inventor do tempo Pós-Moderno. Nas suas obras como "The sublime is Now" (traduzido: O Sublime é agora.) temos um campo de côr demarcado ou ampliado por duas linhas verticais (zips).  O agora é essa demonstração de um tempo perdido, e a intensificação da experiência o sublime. Neste contexto, J. François Lyotard vê as pinturas como "Eve", na sua impossibilidade de representação como representação negativa. Esta fórmula ou condição tem repercussões na forma como tomamos o tempo. Um tempo em perda que resgata-nos para um modo ou tempo lento; Que tenta, sem o conseguir, andar para tràs. É nesta forma de desaceleração que eu julgo que alguns artistas conseguem produzir um trabalho verdadeiramente político. 
Em"Pintura e representação política" in "O inumano" Lyotard escreve-nos:"Não foi só a fotografia que tornou impossível a profissão de pintar. Dir-se-ia o mesmo dizendo que a obra de Mallarmé ou a de James Joyce rispostam aos progressos do jornalismo. A "impossibilidade" vem do mundo tecno-científico do capitalismo industrial e Pós industrial. Este mundo precisa da fotografia e quase nada da pintura, do mesmo modo que precisa mais do jornalismo do que da literatura. Mas sobretudo ele não é possível senão com a supressão das profissões "nobres"que pertencem a outro mundo, e com a supressão desse mesmo mundo."
De origem provavelmente diversa (visto serem um grupo de quatro pessoas) as Pizz Buin  levantam uma questão verdadeiramente importante para o meio em que nos inserimos mas com a tónica do riso que nos liberta do meio onde vivemos, demasiado pesado,  e sempre na expectativa, sem coragem de afirmar o que quer que seja.  
Esta exposição consegue colocar todos os espectadores a passar mais algum tempo entre o título e uma mancha negra  que aconteceu  numa fatia de pão de forma, que também é uma pintura negra, de carácter abstracto e informal.
O teor conceptual desta exposição vem da nomeação de uma obra e do intervalo entre esta e a mancha negra.  
A instalação  de carácter museológico, sendo o veículo ideal, caí porém no lugar comum  da utilização da retórica museológica sem adicionar nada a esta temática (1) antes servindo-se dela, por uma boa causa.


(1) "The museum as muse" foi uma exposição feita em 1999 no MOMA de Nova Iorque que  toma como ponto de partida a reflexão sobre o espaço museológico feita pelos artistas: a exposição de Surrealismo comissariada por Duchamp, o quarto do abstraccionismo de Lissitzsky , o Musée des aigles de  Marcel Broadthaers, o Brooklin Museum de Joseph Kossuth entre tantos outros. 




sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Escritos de Artista (1)



















Kerry James Marshall

Inventámos, eu e outros que tais, um blogue de crítica.
E como sucedeu tal coisa? Esses outros que tais e eu, no decorrer do ano passado, 2008 e durante a residência na ZDB tomámos o contacto com o pico de histerismo com a possibilidade fantástica de termos finalmente pós-colonialismo em Portugal! O ponto focal era desta vez colocado à volta dos trabalhos de um pequeno grupo de artistas emergentes angolanos que vivem actualmente em Lisboa e que vão realizando um trabalho com mérito próprio. O facto do meio ser diminuto faz com que novidades se tornem rapidamente um foco gerador de histeria. A identidade tem sido realmente um chavão demasiado utilizado na atribuição de valor e legitimidade na arte contemporânea. O excessivo uso deste critério produz situações algo cómicas. Lá fomos observando, com algum e triste divertimento a instituição desses critérios identitários para a definição da africanidade de uns e a não-africanidade de outros. No reduzidíssimo quintal beirão, entre a adega e o lagar, onde vivemos, lá se vai instituindo sem ser grandemente contestada, uma discursividade para uma poética passe-partout e sem aguilhão crítico para que melhor possa viver à sombra de grandes interesses. Alguns artistas com olho tornam-se rapidamente nos verdadeiros Têtes de Colonne deste ou daquele discurso ou veio discursivo que têm tido nas Documentas o lugar e identificação e vulgarização ao uso. As ideias adquirem-se como no supermercado, numa estante entre várias opções.

O problema não tem a ver com a teoria em si, do pós-colonialismo, tal como não tem a ver com os queer studies, tal como não teria a ver com o marxismo quando este foi abraçado superficialmente por tantos após a revolução. No caso da teoria pós-colonial, não se nega aqui a validade de um discurso que pretende avaliar as relações entre a Europa (neste caso Portugal) e o seu antigo espaço colonial. Irei mais longe; essa avaliação deve ser permanente. Mas o que dizer da rapidíssima transição, no nosso pequeno mundo da arte contemporânea, de um debate que deveria ser sério, fundado e contextualizado para rápido tráfico de nomes reificados á volta e em nome de um discurso que eles próprios não engendraram? O que dizer da súbita histeria sobre questões que em outros países estão em colóquio desde os anos 50 do século XX e passados mais de trinta anos sobre a descolonização? E com que seriedade, poderemos ainda nós querer normalizar apenas pela (aparente) consciência do passado, as nossas relações com esse mundo outro utilizando exactamente as mesmas estruturas de pensamento (capitalismo, mercado liberal, conceitos de “arte” e a tecnologia) que utilizámos durante todo o passado colonial? Como podemos pretender compreender e aceitar África quando ainda todos andamos a ler coisas sobre os EUA como “Império benigno” escritas pelos editores dos jornais nacionais e a desprezar esses islâmicos “terroristas” que vivem ao nosso lado pelo menos desde Carlos Magno? A histeria por África toma aqui em Portugal os contornos irritantemente desonestos dos modernos discursos dos peritos de Washington pelo Médio Oriente. Se eles teimam em não ter voz, representamo-los. A questão que nos surgiu foi o seguinte: - “E o que dizem os artistas azuis, vermelhos, pretos, amarelos e ás bolinhas sobre isso? Terão eles voz?”


















E pensámos; poderemos ter nós voz? Poderemos ter voz para além do que se passa dentro dos parâmetros definidores de “Ceci c’est un object d'Art” sobre este e tantos outros objectos? De repente a coisa já não é apenas sobre a africanidade ou não da minha ou da tua cor de pele, mas sobre Lisboa, aqui, o Porto, a exposição tal, a opinião de sei-lá-de-quem no Público, o futuro da crise, a comunidade de Berlim e a de Malmö ou a influência de Obama na arte contemporânea. A dúvida é sincera. De nós, o último a ter uma escrita poderosa foi o Almada que não tinha medo de ninguém e nada.

Este Blogue pretende ir respondendo a esta pendência. Poderemos nós escrever? Criticar? Teremos nós livre trânsito na poética aventura de falar com a linguagem de todos os dias e para além do café, sobre poesia? O anonimato surgiu como uma possibilidade e sem grandes reflexões. Também decidimos alguns de nós não o ser, e sermos Gonçalos, Hugos e Gabrieis e ser ao mesmo tempo anónimos – ou heterónimos. (continua...)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Ils se Sont Tous Suicidés





Outra referência. Ben Vautier (Ben) expôs até 21 de Fevereiro último na Templon, a mesma galeria à qual está ligado desde 1970. Nascido em Nápoles em 1935 e iniciando o seu percurso artístico como pintor abstracto, abriu no final dos anos cinquenta uma pequena loja ("magasin fourre-tout, lieu de rencontres et d'exposition") em Nice onde vende livros e discos em segunda mão. Em breve esta torna-se um ponto obrigatório de paragem para artistas que mais tarde viriam a ser conhecidos pelo termo impreciso de "Escola de Nice"; César, Arman, Sosno, Raysse e sobretudo Yves Klein, que introduziu Ben no "Nouveau Reálisme" que fundara em 1960 (com Pierre Restany). A relação com o legado de Duchamp torna-se o motivo central das suas pesquisas. Considera então que os Nouveau Realistes, Cage e outros não fizeram mais do que "embelezamentos expressivos" sobre o gesto inaugural da entronização do secador de garrafas como objecto de arte; mas tal como a Beuys, também o silêncio (irónico?) de Duchamp constitui-se como a origem de uma mistificação e de abusos que urge ultrapassar. Pretendendo superar a categoria do belo como instância qualitativa tenta levar adiante a premissa duchampiana de que a arte é como uma caixa na qual tudo o que lá se coloca fica conotado automáticamente como objecto artistico. Fluxus, movimento do qual é um dos iniciadores na Europa em inícios de sessentas, pretende, a partir da paradoxal inversão e extensão (a re-utilização do ready-made pela vulgarização) do gesto duchampiano, establecer uma ligação definitiva entre a arte e a vida pela superação das suas fronteiras institucionais. George Brecht, por exemplo e ao invés de Duchamp, colocava uma cadeira numa exposição para que as pessoas se podessem sentar - esta é a abordagem comum de Fluxus, vis-a-vis à herança de Duchampiana. O humor e a ironia são a táctica habitual. Ben, pelo seu lado, ao descobrir que a arte é sobretudo uma condição ligada ao nome de quem assina, decide enfim fazer uma pintura tendo a sua assinatura como objecto. A partir daí pretende assinar metódicamente tudo o que Duchamp não assinara ainda (daí a sua declaração de inveja por Manzoni).
O ego e o novo tornam-se assim o binómio de uma crítica metódica em Ben Vautier; "L'ego est une de mes matières favorites. D'abord je l'ai en face de moi, en moi. Il me suffit donc de me poser des questions et d'y répondre. Mon intérêt sur l'ego rejoint ma théorie générale de l'art que toute vie est survie et que l'ego est une forme de survie" (Ben). Se o novo é a marca da actualidade da arte, só um novo paradigma de ego ou uma nova humanidade, poderá trazer uma nova forma de arte. Perante esta "angustia do novo" (Bourriaud) a obra de Ben toma então frequentemente a forma de autocrítica (como no famoso "L’art est inutile, rentrez chez vous" ou um tom apocalíptico como na presente exposição.
"Ben prolonge donc le geste de Duchamp. Ben n’a pas simplement signé toutes sortes d’objets (trouvés par hasard), mais aussi des sentiments, des événements, des valeurs abstraites… Ben
Justify Fulla signé Dieu, de faux Martial Raysse, des maladies, l’Afrique, la Bibliothèque nationale, la catastrophe d’Agadir, celle de Fréjus, la fin du monde… Mais l’appropriation selon Ben, comme selon Duchamp, n’exprime rien, au contraire des mouvements qui ont suivi ce dernier, Pop Art et Nouveau Réalisme. Duchamp tentait un choix dépersonnalisé ; chez Ben, c’est le quantitatif (Ben a signé Tout) qui annihile le qualitatif. Lorsque Ben signe Dieu, il n’y rattache pas une littérature pseudo-mystique comme l’aurait fait Klein. Ce geste, dans son exagération et sa répétition, dénonce précisément les abus conventionnels de l’art. Les gestes de Ben, appliqués systématiquement, sont à comprendre comme une méthode. (Catherine Millet 1972)
Ben Vautier, fiel aos príncipios, foi trabalhando sempre neste registo. Foi então prosseguindo numa estratégia que ele próprio apelidou como a de "um cão que mija para marcar território" ocupando todos os nichos possíveis de conceptualismo em conpetição declarada com todos os seus contemporâneos e isto através de acções como demarcações, declarações e assinaturas. Como exemplo, desde 1970 Ben desenvolveu a estratégia de escrever "Le mot ART sur n’importe quoi; Il s'agissait d'écrire le mot art sur n'importe quel objet qui me plaisait. Je désirais que ça soit une série illimitée vendue à très bon marché. Hélas très vite certains de mes "art" furent mis en vente comme originaux, ce qu'ils étaient dans la mesure où ils étaient tous différents. Templon me demanda d'arrêter cette série qui portait tort à mon marché" (Ben). Nos anos oitenta "apadrinhou" o movimento "Figuration Libre" de Robert Combas, Boisrond, os irmãos Remi e Hergé di Rosa. Recentemente e em sintonia com as motivações políticas de Combas, tem sido defensor activista dos direitos culturais das minorias étnicas em França, em particular da lingua occitana.
Na presente exposição, de modo dramático, retorna o mal-estar angustiado gerado da constante atenção sobre o eclodir do novo na história da arte. É o suicídio como solução final para a vida de artistas plásticos contemporâneos, de Maiakovski, Rothko e Nicolas de Staël até Diane Arbus (na foto) que se torna agora em ideia o objecto apropriado por Ben Vautier como arte"(...) Je prends moi, Ben, possession de l'idée de la mort dans l'art car seule la mort est l'absolu." Para esta apropriação é necessário que o artista se suicide como obra. Mas o próprio teria já tentado fazê-lo e deste modo encontrando a validação para a pretensão de posse autoral. "En janvier 1961, je fais part a la presse de mon intention de me faire écraser en forme d'aile de voiture par une presse de l'usine Renault, ou de me faire aplatir par un rouleau compresseur sur une toile qui serait vernie par ma femme aprés ma mort." Um fragmento dessa experiência está escrita na parede da galeria. Ao fundo da mesma, como objectos e mercadorias que celebram o significado real e ao mesmo tempo sendo necessárias ao funcionamento global de todo o sistema artístico, estão as pinturas com frases ou palavras sobre a morte assinadas "Ben". "La Mort est Partout."

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Obra tapada





Ao entrar no stand da galeria Beaumontpublic (Luxemburgo) na feira de arte de Madrid questionámos o porquê daquela obra tapada com um pano preto. O proibido é sempre apetecível, o encoberto reclama a atenção dos nossos olhos já cansados de horas a visitar stands. Lentamente ao levantar o pano encontramos uma belíssima fotografia da série "8 Lessons on the emptiness with a happy end" de Marina Abramovic. Ao que parece, cobrir a obra foi a solução encontrada após um desentendimento entre galerias. Uma outra galeria presente na feira reclamava o direito de expôr esta mesma fotografia.
Pura ironia esta "guerra" no mercado de arte exactamente com uma peça que reflecte sobre a violência causada pelos media na sociedade contemporânea.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Ave Rara (Jen Ray)







Jen Ray (1970) natural de Raleigh, Carolina do Norte é uma ilustradora residente em Perrlin representada pela galeria Jan Wentrup. Tomei contacto com o trabalho dela a partir de desenhos e um vídeo apresentado na Kamel Mennour em Paris, uma animação simples (quase um video-clip) de desenhos alucinantes que recuperam uma certa estética gráfica de setentas (vampes, prismas e plasma).
"No centro do trabalho de Jen Ray descobrem-se desenhos onde as mulheres têm o aspecto de Amazonas dominadoras de um mundo fantástico" - Pois, porque também parece existir ali algo do universo paisagístico de Roland Topor. "Sob a aparência de uma inocência feérica surgem ao contrário obcessões compulsivas e perversões luxuriantes. A decadência, como um revelador extremo do Romantismo, impregna os seus desenhos dentro de uma relação barroca de forças, entre a joie de vivre e a vanitas." (da press release).
O trabalho de Ray vai deambulando, provocador e surpreendente, numa encruzilhada entre a coreografia nonsense do Yellow Submarine e a atmosfera sado-masoquista de Crepax com algo dos excessos de caracterização de algumas pop-star dos anos oitenta. A liberdade associativa que se lê no modo como constroi a pequenas dramaturgias "em parada" nos seus desenhos, abre-lhe um campo de exploração muito particular e individualizado, que, se de algum modo deve às fantasias tardo-psicadélicas o seu universo gráfico, por outro tem também uma relação com a moral do universo libertário da política sexual pós-68. Como em Barbarella, a rainha da galáxia, O trabalho da artista parece gerar-se de uma cat-walk surreal liberta e em veia celebratória.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Giorno na Galeria Almine Rech



John Giorno (1936) é um poeta nova-iorquino que surgiu no início dos anos sessenta no meio da village e que esbarrou com um grupo de artistas que na mesma altura iniciavam igualmente os seus percursos. Eram estes Roy Lichtenstein, Jasper Johns, Rauschenberg, Robert Morris, John Cage, Yvonne Reiner, Carolee Schneeman (tantos nomes alemães!), Trisha Brown e Merce Cunningham, mas sobretudo Andy Warhol a quem esteve especialmente ligado até 1964 (é Giorno a figura pricipal do filme Sleep de 1963).
Perante o contacto com as vanguardas reconheceu o atraso experimental da poesia em relação às possibilidades tecnológicas dos emergentes new media. Como consequência foi um dos pioneiros na utilização da tecnologia não apenas como modo de difusão mas como material de construção poética. Junto a esta produção foi manifesto o projecto de "popularização" da poesia contemporânea que efectivamente foi sucedendo até finais da década de sessenta; "I organized Dial-a-Poem in '68 and it was very successful, because it was the first time the telephone was used for mass communication. Before, it was me calling you and you calling me and that was all. The stroke of luck was bringing together technology, (we had twelve telephone lines and twelve answering machines), with lots of publicity: newspapers, magazines, television, and great content. When it started the New York Times did a quarter page feature story with the phone number; and instantly there were hundreds of thousands of calls. It was free." (de uma extensa entrevista com Hans Ulrich Obrist)
Eventualmente estas experiências conduziram à sua associação a William Burroughs, Allen Ginsberg ou Brion Gysin e à criação da Giorno Poetry Systems, uma associação para a produção e divulgação de nova poesia. "we produced poetry videos, videopaks and films. We formed bands and toured like the rock'n' rollers. We displayed poetry on the surface of ordinary objects, producing silk-screen and lithograph Poem Prints". Giorno, mais do que como poeta, é (ainda) sobretudo um gerador de situações e possibilidades, como um foco energético. Interessa-se hoje pelas possibilidades poéticas do Rap e foi desde oitentas um activista para a prevenção e combate à SIDA. No que diz respeito à década de 60, será interessante establecer um paralelo do esforço produtor individual e tipo de produções de Giorno com as de George Maciunas, activo pela mesma altura e igualmente em Nova Iorque. Mesmo na Europa e logo a seguir à guerra começa-se a investigar o espaço de interacção entre poesia e tecnologia. Em França, por exemplo, Isadore Isou, Maurice Lemâitre e outros desenvolvem desde os anos 50 o International Lettrisme. No Reino Unido, em Londres, no ICA à volta de Reyner Banham e Alice e Peter Smithson dá-se em 1956 o ponto de partida para a Pop com This is Tomorrow. Para além dos conteudos e da dissolução de fronteiras entre alta e baixa cultura, a sinestesia pela tecnologia foi a marca dominante da cultura de sessentas.
Nesta exposição particular, para além de dois videos de poesia-performance (Down comes the rain e Welcoming the flowers), é sobretudo a ligação de John Giorno à geração pop americana e especificamente nova-iorquina (a Warhol e Rauschenberg, especialmente) e ao uso característico da serigrafia, que se encontram sublinhados no espaço billboard que se encontra instalado na Almine Rech. Uma referência.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Our goal is life!















"The wandering chief"
Apresentação de Pedro Neves Marques.
Ontem dia 19, hoje dia 20 e amanhã dia 21 na Sala Bebé do Espaço Avenida, na Rua Rosa Araújo n 19.
Sessões às 22h e 23 h.

Pedro Neves Marques apresenta um conjunto de considerações sobre a vida de Rimbaud, a partir do cruzamento das biografias "Arthur Rimbaud, Somebody else", Charles Nicholl, Ed. Vintage, 1977, e "Rimbaud", Graham Robb, Ed. Picador, 2001.
O texto é apresentado sob a forma de um diaporama com cerca de 50 imagens com um minuto cada.
O tempo de cada imagem que é texto e o facto de o texto de se focar lentamente marcam positivamente a leitura de considerações sobre um momento que não se pode tornar obra, a vida de Rimbaud.
Ainda que, o longo silêncio de Rimbaud produza um eco forte na leitura da sua obra existe por parte de Pedro N. Marques a sensibilidade de não deixar a biografia de Rimbaud se tornar obra. Assim, a sua obra situa-se numa franja, em tensão entre ser autor ou não, podendo equacionar-se mesmo a figura do curador - curare, dar a ver da melhor forma, cuidar, conservar - como posição mais indicada para este trabalho de autor.
A tensão entre um trabalho autoral (que resultaria na incorporação deste texto) e a não autoria exulta tautologicamente o conteúdo apresentando-se em vez de re-apresentar.
A apresentação completa-se com uma vitrine com imagens e uma belíssima edição que funciona em pleno como pósfácio reassegurando a qualidade da escrita e a relação criada entre as duas biografias.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Tino Sehgal na Marian Goodman


Não foi permitido fotografar. Na galeria Marian Goodman Tino Sehgal apresenta-se individualmente pela primeira vez em Paris com a performance This Situation. “Sehgal concebe o seu trabalho como situações construídas onde os materiais são a voz humana, a linguagem, o movimento e a interacção, sem a produção de um objecto concreto.” (Press Release). A performance baseia-se na interrelação de seis actores de sexo e idades variadas que, segundo um esquema pré-determinado conversam alternadamente sobre duas linhas discursivas. Estas linhas são iniciadas com "em 1953 um situacionista disse..." ou "em 2005 alguém disse...", sendo nestas introduções a data variável. Os discursos estão pré-estabelecidos. Quando chega um novo espectador viram-se coordenados e dizem em coro "wellcome to this situation" logo a seguir emitem um silvado sinistro ao mesmo tempo que mudam de posição de modo muito semelhante ao de uma equipa de voleibol e colocam-se em nova pose.
(20/2) Questiono-me sobre a qualidade efectiva do trabalho de Seghal. Existe um objecto que é permanentemente recriado pelos actores que utiliza. As performances podem ser repetidas em qualquer tempo e qualquer parte. A diferença entre o mainstream performativo a que nos habituámos e a aparente "contenção" expressiva ou sobriedade das propostas deste autor, cuja dramaturgia é retirada das práticas sociais características de uma leisure class (party-goers, intelectuais, artistas) é justamente um estranho sentimento de familiaridade com o quotidiano comum de um modo de vida ocidental modelar a que a classe média aspira. Mas a proximidade com este quotidiano é ainda o lugar de uma diferença e consequente desejo; é este lugar ínfimo que fascina mais do que o significado histórico-artistico da não-objectualidade, performatividade, vazio, repetição. Aqui posso fazer um paralelo com a mesma diferença sentida na observação das pinturas de Muntean & Rosenblum. Estes, em composições clássicas a meio caminho entre a tradição compositiva da pintura ocidental e das páginas de revistas, utilizam jovens modelares e estereotipados na actualização daquele "aparente distanciamento" dominador que Castiglione preconizava na figura do homem de corte do século XVI e que se tornou a marca de muitos retratos maneiristas. É em Seghal este, o lugar do encanto que transmitem os seus trabalhos; corpos modelares distantes performando friamente o quotidiano como objecto de desejo. Neste último, o "silvado" emitido elos autores a que me referi coloca em cima de tudo isto um instante curto de sinistra estranheza, o momento da nossa irremediável distância da jouissance.

Em seguida publica-se uma apresentação em francês deste autor que esteve representado duas vezes em Portugal. Na fundação de Serralves em 2005 e na Galeria Cristina Guerra em 2007 integrado na colectiva “For Sale” comissariada por Jens Hoffmann.

Toutes les œuvres de Tino Sehgal ont en commun de résider exclusivement dans le temps et l’espace qu’elles occupent ; dans la mémoire de l’œuvre et sa perception. En dépit de son caractère immatériel, le travail de l’artiste trouve complètement sa place au sein des arts visuels et fonctionne pleinement avec l’infrastructure d’une galerie ou d’un musée. Les œuvres sont activées pendant toute la durée d’une exposition, elles font partie de collections publiques comme privées et perdurent dans le temps par leur réactivation.
A travers son travail, Sehgal explore les pratiques sociales, les conventions et la répartition des règles. Il redéfinit ainsi les paramètres fondamentaux, non seulement de la façon dont l’art se fabrique, mais aussi de la société au sans large : matérialité, idée, originalité, producteur, consommateur, propriétaire et valeur. L’économie politique et la chorégraphie, auxquelles il a été formé, ont joué un rôle fondamental dans le développement de la pratique artistique de Sehgal. Il s’attache aux deux domaines avec la même motivation, à savoir, rechercher la possibilité d’alternatives à la norme de production comme transformation de ressources (naturelles).
Comme il le déclare dans une interview avec Tim Griffin pour Artforum : « La raison pour laquelle je m’intéresse à la transformation des actions… c’est parce que je pense que l’apparence, à la fois, d’une surabondance de biens matériels basiques et de l’homme mettant en danger sa disposition spécifique à la « nature » - dans laquelle la vie humaine semble possible -, remet en question l’hégémonie du mode de production dominant. »
Évidemment cela ne signifie pas de proposer un « Non » essentialiste aux objets matériels en général mais il s’agit plutôt de conduire à la question de savoir comment est-ce que nous pourrions produire des choses qui, d’un côté ne sont pás problématiques, mais qui, d’un autre sont plus intéressantes et complexes, ou moins statiques.

Depuis des années, l’artiste a travaillé avec une diversité d’ « interprètes »
incluant des gardiens de musées, des directeurs de galeries, des enfants, des
chanteurs. Parmi ses œuvres plus anciennes, on peut voir une personne exécutant au sol, une danse lente et pénétrée (Instead of allowing something to rise up to your face dancing bruce and dan and other things, 2002) ; un couple embarqué dans une chorégraphie insensée de baisers plus ou moins célèbres (Kiss, 2002) ; ou deux enfants jouant certaines des œuvres de Sehgal et les offrant à la vente sur le stand de The Wrong Gallery à la Frieze Art Fair (This is right, 2003). Sehgal est né à Londres en 1976, il vit et travaille à Berlin. Il est le plus jeune artiste à avoir représenté l’Allemagne à la Biennale de Venise (en 2005, avec Thomas
Scheibitz). En 2006, il est nominé pour le prestigieux Hugo Boss Prize et en 2007 pour le Prix de la Nationalgalerie für Junge Kunst à la Hamburger Bahnhol à Berlin. Ses expositions personnelles ont eu lieu à la Fondazione NicolaTrussardi, Villa Reale, Milan, Italie (2008), au Magasin 3 Stockholm Konsthall, Stockholm, Suède (2008), au Walker Art Center à Minneapolis (2007-2008), au MCA, Chicago et au Wattis Institute for Contemporary Art à San Francisco (2007-2009), au Museum Moderner Kunst, Francfort (2007) ; à l’Institute of Contemporary Arts, Londres (2007, 2006, 2005) ; à la Kunsthaus Bregenz, Autriche (2006), à la Kunstverein Hamburg (2006), à la Serralves Foundation, Porto (2005); au Van Abbemuseum, Eindhoven et au Musée des
Beaux-Arts, Nantes (2004). Son travail a été montré à la Triennale de Yokohama 2008, Yokohama, Japon, à la Biennale de Lyon 2007, Lyon, France, dans l’exposition “The World as Stage” à la Tate Modern, Londres (2007) ; à la 4e Biennale d’Art contemporain de Berlin et à la Tate Triennial(2006), lors de «Utopia Station » à la 50e Biennale de Venise (2004), et dans de nombreuses expositions de groupe comme au Moderna Museet, Stockholm, au Museum Ludwig, Cologne et à l’ARC Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, entre
autre. Son travail est actuellement visible dans une exposition de groupe “The Fifth Floor: Ideas taking Space” à la Tate Liverpool et dans «Political/Minimal» Kunst-Werke, Berlin e.V- KW Institute for Comtemporary Art, Berlin.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Isto é pintura! #2














A exposição "A analogia do olho"de JCJ Vanderheyden patente na Culturgest em Lisboa é uma exposição conceptual?
Esta pergunta é feita sem qualquer tipo de desdém. A questão prende-se à ortodoxia dos pintores, à filiação da pintura a grupos menores de pensamento, àqueles que tendem a não incluir a pintura como parte de um todo, tendendo a tornar esta um guetto, fixando-a num local e tempo definidos.
Esta exposição despoletou conversas à posteriori nas quais se falava ora com entusiasmo ora com desdém da pinturas de Vanderheyden. Na sua maioria, o descontentamento tem a haver com o facto "...daquilo não serm boas pinturas, de desrespeitarem a Pintura!".
São de facto melhores as noções espaciais em Barnett Newman, mas estas pertencem a um outro modo ou sistema (que é o da representação negativa). E de facto a re-apresentação de uma obra, em diferentes accrochages são herdados de Malevich. Ambas as filiações são dados positivos para a construção de um problema ou a identificação de um pensamento a desenvolver.
Esta exposição não é uma exposição para pintores mas uma exposição para todos. É uma exposição generosa que dá a ver o impulso erótico do pensar de Vanderheyden. A utilização de diferentes modos de modos de apresentação e representação (re-apresentação) da sua obra bem como o re-enquadramento  da reprodução de outras obras de arte são para parafrasear Derrida, uma actividade canibalística. O canibalismo de que aqui falamos é o da assimilação (ver entrevista de Daniel Birnbaum e Anders Olson :"An interview on the limits of digestion" em http://www.e-flux.com/journal/view/33). Uma incorporização, através da experiência, que neste caso se estende ad infinitum pelo permanente movimento, fruto de um impulso erótico que se traduz na vontade de adquirir aquilo que não se tem.

A sua obra, começada entre as duas guerras mundiais, é constituída por um conjunto de elementos que estão directamente ligados à história da pintura.
Na abstracção, que me parece neste caso ser não uma negação do mundo mas uma sublimação deste, resultam pinturas formais que colocam o espectador sozinho consigo mesmo. E as pinturas figurativas, que tomam como ponto de partida, vistas aéreas feitas através das janelas de um avião , tentam ser esse espaço de encontro com a densidade do mundo e remetem-nos para um tempo que diz sempre ser superior a nós mesmos.
Muitas destas pinturas são bad paintings - mas afinal o que é que são más pinturas?- sem um interesse pela pintura como técnica.  Aliás tornando-se interessantes a partir do momento em que desrespeitam os códigos instituídos do que é uma boa pintura, fazendo uma escolha entre certa densidade que vem de uma certa forma de estar no mundo ao invés da escolha por uma pintura que fareja a boa pintura - feita por aqueles que vão ver pintura para perceber como as pinturas foram feitas.
As pintura figurativas de Vanderheyden partem de um momento ideal - a fotografia aérea feita através da janela de um avião - perdendo-se a hipótese de repor essa experiência e, encontrando-a num último momento que não resulta da sua duplicação técnica (o que resultaria em erro) mas sim na reconstrução desta experiência através de outros  símbolos, o que revela um certo carácter expressionista nas obras.
Um terceiro elemento são as imagens  que reproduzem  obras de arte (reproduções de reproduções)  que se desdobram ainda em fotografias de motivos de pinturas e reproduções /variações dos seus próprios trabalhos.

Não quero compreender (identificar um príncipio e um fim) estas pinturas. Quero antes sentir a sua presença no mundo e a forma como estes valores (as várias obras) constituem discurso através da repetição das obras, variações no tamanho e inter-relação destas.
Para mim não existe uma diferença abissal entre os objectos (as portas ou locais de fruição) estética criados por Vanderheyden), as suas pinturas formais, as suas paisagens, as reproduções das suas obras e daquelas que foram de outros e agora são também suas.
É sempre o mesmo trabalho, uma pintura retiniana que ao mesmo tempo evoca uma experiência do corpo; Uma memória do corpo.
Aliás é na transformação da memória, nas suas variações entre maqueta, obra, reprodução e projecção que a obra de Vanderheyden corta com a evolução cronológica da sua obra; Para a poder estruturar rizomáticamente nas mais variadas relações como o mundo, desterritorializando-o e ao mesmo tempo deixando o mundo territorializar a obra para poder iniciar um movimento ad eterno.

Isto é pintura!







Três horas antes da inauguração, fui com K. a casa de J.
K. ouvia atentamente J. enquanto observava as pinturas na sala diante dele. Não sabia ele que do outro lado da parede, no quarto dos rapazes, estava uma peça de Ernesto de Sousa (duas molduras, uma com uma e outra com quatro fotografias a preto e branco com o mesmo motivo vegetal, ou seria fogo? esculpido na pedra. Sobre estas estava escrito "Isto é pintura!").
Outro bom exemplo, que não despertou interesse em K.  foi um Não-Bravo, pintura que Bravo rejeitou por uma pequena imprecisão quase impossível de discernir mas que o fez repetir a tela.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

HARVEY MILK vs SEAN PENN



HARVEY MILK vs SEAN PENN

No seu último filme recentemente estreado entre nós, Gus Van Sant volta a debruçar-se sobre uma história verídica à semelhança do que já havia feito com Elephant (2003), desta vez recorrendo ao formato biopic e retratando a história da ascensão, eleição e assassinato do activista gay e político Harvey Milk (1930/1978)

O filme começa por nos contar a tragédia que o concluirá. O iminente assassinato do personagem principal é pressentido logo na cena inaugural que virá a servir de fio condutor da narrativa, na qual Milk sentado na sua cozinha, grava uma cassete para ser tornada pública no caso do seu assassinato. Este é-nos revelado logo de seguida através da inclusão de uma imagem de arquivo (recorrentemente introduzidas ao longo do filme com bastante eficácia) de Dianne Feinstein, actualmente Senadora do Estado da Califórnia que anuncia a morte dos supervisores Milk e Moscone. A narrativa retrocede cerca de dez anos e leva-nos então através dos últimos anos de vida do personagem que é assinalada pela notável interpretação de um Sean Penn no seu melhor.

Este artefacto narrativo deixa-nos no entanto desde o início com a errada impressão de que Harvey Milk foi um mártir pela causa dos direitos dos homossexuais em virtude de uma atitude demagógica de Van Sant. Não obstante a pertinência e actualidade da história que nos conta o filme, o assassinato de Harvey Milk, é executado por Dan White (também supervisor e colega de Milk) por frustração relativa à sua vida pessoal que decorre da sua incapacidade de sustentar a família e de fazer valer medidas próximas do seu eleitorado politico católico e Irish-American. O facto de Milk ser morto, já que Moscone é o seu alvo principal, terá mais a ver com uma quezília pessoal entre os dois do que com a tentativa de White de silenciar um activista politico.

Temos então um Sean Penn másculo e concentrado, sensível ao ponto de incorporar maneirismos gay com a sabedoria suficiente para os minimizar mesmo abaixo daquilo que seria um estereótipo, que nos guia como Milk, desde Nova Iorque em 1970 com quarenta anos, vendedor de seguros ainda não assumido através do resto da sua vida.
Passando pela mudança para S. Francisco e o início da actividade política em prol dos direitos dos homossexuais e de outras minorias, onde ganha o cognome de “Mayor of Castro Street” em 72, prosseguindo com a sua eleição para Supervisor da Câmara de S. Francisco (primeiro homossexual abertamente assumido a ser eleito na América para um cargo politico) a história culmina no seu assassinato (em 1978) e na vigília a que compareceram mais de 20 000 pessoas para lhe prestar homenagem.

Com este filme Gus Van Sant leva-nos de novo a acreditar que o soberbo Gerry (2002) terá sido um acidente de percurso que ainda tentou prolongar com Elephant e Last Days através da celebrada Death Trilogy que o primeiro havia iniciado. Aqui vemo-lo de volta a uma linguagem mais comercial ao nível do também seu Finding Forrester (2000), pretensiosamente disfarçada com um toque arty, note-se por exemplo a discreta presença de Jeff Koons, do qual se escapam no entanto alguns bons pormenores como por exemplo uma das cenas finais na qual Milk assiste à Tosca de Giacomo Puccini.

O interesse por este formato cinematográfico tão corrente nos dias de hoje - o biopic - que é por si só uma espécie de subgénero do Cinema e da sua história, bem como a abordagem relativamente banal de Van Sant a esta história poderá denotar a proximidade da tão esperada award season ficando assim esta biografia muito atrás de outras que realmente dão razão à existência deste género tais como o poético Wittgenstein de Derek Jarman, American Splendor (Harvey Pekar) de Shari Springer Berman e Robert Pulcini, funcionando este quase como uma antitese do formato ou ainda dos mais recentes Good Night and Good Luck (Edward R. Murrow) de George Clooney, I’m not There (Bob Dylan) de Todd Haynes e Into the Wild (Christopher McCandless) do próprio one and only our beloved Sean Penn.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Four Chambered Heart - Inteligente e Frio




Israelitas e Palestinos, estudantes de cinema, falam de La Pyramide Humaine de Jean Rouch e das diferenças entre comunidades, sob a atenta câmara da portuguesa Filipa César. O objecto central do dispositivo expositivo actualmente na galeria Cristina Guerra, é essa projecção de um vídeo “documental” realizado a partir da posição tomada por Rouch no seu filme de 1959. Este consiste num sociodrama organizado e filmado numa escola onde os estudantes fazem de si próprios. Uma estudante, Nadine Ballot (que será a partir daí a estrela de alguns filmes subsequentes do realizador), chega a uma escola mista de Abidjan. A sua chegada é também o ponto de partida para a descrição ficcionada que a câmara de Rouch faz sobre as relações inter raciais e sentimentais dos alunos uns pelos outros.
Filipa César durante uma residência artística em Israel no Centro para as Artes Digitais em Holon, teve a ideia de aplicar o ponto de vista de Rouch ao conflito israelo-árabe. O ponto de partida não é a chegada de ninguém mas sim o visionamento do filme de Rouch. Os estudantes de cinema de ambas as comunidades sob conhecimento prévio para o que se destina o filme, desencadeiam um acting out em forma de uma suave terapia de grupo. “discutem-no, questionam o papel do cinema, do realizador, as posições de cada um e, desconstroem mesmo o dispositivo cinematográfico ali accionado, realçando as diferenças entre a experiência de Rouch e a de César. Progressivamente, uma conversa sobre cinema é deslocada para um debate sobre Israel e a Palestina, sobre colonialismo e linguagem, culminando na questão da intervenção exterior” (da press release), neste caso a europeia por intermédio de Filipa César.
A exposição notabiliza-se sobretudo pelo lugar que dá a uma reflexão posterior sobre os mais variados aspectos, qualidades e problemas que encena, encerra e enferma. A comparação do filme de Filipa César com Rouch existe apenas num paralelismo das regras do jogo entre realizador e actores. Não seria no entanto o intuito da artista portuguesa fazer um simples remake de La Pyramide Humaine. O resultado é uma construção a partir de Rouch e para se perceber o mecanismo detonador está presente na exposição uma "projecção da projecção" deste filme aos alunos com legendas em hebraico por cima e árabe por baixo. O antropólogo-cineasta realizou uma ficção que está a meio caminho das suas relações com o Leiris de L’Afrique Fantôme, o surrealismo (o nome do filme homenageia o les dessous d’une vie ou la pyramide humaine de Eluard) e a Nouvelle Vague. É um filme com um encanto especial, pedagógico mas ao mesmo tempo lírico e triste. É belo como objecto cinematográfico. O filme de Filipa César é um documentário frio e cirúrgico, ficcionado na medida em que a maior parte dos documentários o são. A ficção é dada pela perspectiva do realizador no acto de filmar e editar, - diz a certa altura um dos alunos; - É um discurso.
Filmado numa sala de aula em repetidos e vulgares grandes planos das faces de cada aluno sustenta-se como obra cinematográfica sobretudo em dois aspectos. O primeiro, o mais interessante e que faz em grande medida a qualidade da experiência de quem o vê, é o ritmo regular e pausado com que surgem faces mais ou menos alheadas ou perdidas em reacção aos statements solitários que vão surgindo na banda sonora dos diálogos; aparentemente não existe ligação sincrónica entre voz e imagem. O efeito é algo hipnótico. O segundo aspecto é o próprio conteúdo temático do vídeo. É por aqui que surgem as questões fundamentais que motivaram este texto. Para um frequentador mais ou menos habitual do DocLisboa, o filme de Filipa César, sendo aparentemente um documento ou testemunho sobre as dificuldades de resolução de uma situação social de conflito, não é um acto convincente. Se tem um interesse relativo como um exercício psicológico de montagem, deixa de o ter a partir do momento em que um grau relativo de exigência de efectividade se imiscui na leitura socio-política do filme. Mas talvez seja necessário então olhar, não já para um documentário sobre a Palestina mas para aquilo que, afinal poderá ser outra coisa.
É certo que, talvez não fosse o pensamento dos alunos o que mais interessaria a Filipa César captar, mas sim a solidão de quem discursa. É esse o sentimento com o qual ficamos a partir de um exercício da nossa memória sobre o visionamento do vídeo. A reforçar esta ideia, a do desinteresse discursivo, está o próprio facto destes alunos serem universitários, habituados por isso ao debate e como tal, nada de verdadeiramente surpreendente suceder ali.
Duas tendências interpretativas contraditórias ficam então em balanço irresoluto: O press release, a temática política, algo óbvia para quem participa numa residência artística em Israel, o texto do guia de cinema datando do ano fatídico de 1948, o conteúdo textual das declarações dos alunos, parecem indicar o empenho da artista na realização de uma forma de arte que de algum modo possa participar no debate sobre a possibilidade ou não de política. Por outro lado, o efeito poético de isolamento de quem fala e a natural mercantilização dos registos da “acção” politizada parecem dizer o contrário. Em última análise, o posicionamento paralelo do público sentado em cadeiras de aula e a receber numa galeria uma espécie de lição, a partir de uma “autenticidade” forçada a figurar a sua separação por língua, religião e cultura, sobre racismo, pós-colonialismo, identidade, torna qualquer adepto ferrenho da paz na Palestina, glacial a este modo de se apresentar o drama real, que existe mas muito para lá do mundo da arte.
É, parece-me, a solidão de quem vive um drama e a indiferença do voyeur, o objecto imaterial dado a sentir no colectivo desta proposta.